Dicionário Histórico de Termos da Biologia

Observaçoens medicas doutrinaes

SEMEDO, João Curvo

[Pág. Título] OBSERVAÇOENS MEDICAS DOUTRINAES De cem Casos gravissimos , Que em serviço da Patria, & das Nações estranhas escreve em lingua Portugueza, & Latina JOAM CURVO SEMMEDO, Cavalleiro professo da Ordem de Christo, Familiar do Santo Officio, & Medico da Casa Real; OFFERECIDAS AO ILLUSTRISSIMO SENHOR RUY DE MOURA TELLES, Arcebispo de Braga Primàz das Hespanhas. LISBOA, Na Officina de ANTONIO PEDROZO GALRAM. Com todas as licenças necessarias, & Privilegio Real. Anno M DCCVII. [p. em branco] [p. em branco] [p. imagem] [p. não numerada 1]
OBsERVAÇAM I.

De hũa Colica nephritica, que affligio ao Excellentissimo senhor Principe de Ligne, & Marquez de Arrouches, em 6. de Janeiro de 1685.

QUERENDO Diogenes Cynico zombar da pompa, & fausto de Alexandre Magno, & darlhe a conhecer que o ser Rey o naõ isentava das pensoẽs da natureza, nem de ser igual aos mais homẽs, metido em hum cemeterio, & à vista do grande Rey, hora tomava nas mãos hũa caveira, hora pegava em outra; a esta arrojava com desprezo, aquella buscava com cuydado ; & vendo-o o dito Monarcha enlevado em tal fadiga, lhe perguntou que fazia alli entre os mortos, estando vivo. A quem o sabio Filosofo respondeo: Ando buscando a caveira delRey de Macedonia vosso pay; mas atègora naõ pude achalla; porque nenhũa differença ha entre as dos soberanos, & humildes. Documento he este verdadeyramente digno de taõ grande Filosofo; porque a morte, as doenças, & as dores nem respeytaõ as Magestades, nem veneraõ as pessoas, nem obedecem, aos cargos; antes com tanta ousadia se atrevem aos Principes soberanos, como aos pastores humildes. Quem havia de imaginar que o Excellentissimo Principe de Ligne, já pelo esplendor do sangue illustrado com os augustos diademas de seus Reaes Progenitores; jà pela profundidade do seu juizo qualificado com a agudeza de tantas obras, & dotado de tantas prendas, quantas nem posso referir, nem me he facil comprehender; porque tanto assumpto he desigual empenho para a curteza da minha capacidade: quem havia de imaginar (digo outra vez) que hum Heroe taõ insigne, & em tudo taõ grande, havia de prostrarse com hũa dor de Colica de tal sorte, como se fosse hum velho muy decrepito? Desculpavel seria o renderse à sobredita dor, se a idade fosse já muyta, ou caminhasse tanto para o occaso da vida, que tivesse os pès metidos na sepultura ; porèm he muyto para sentir, que estando este senhor na primavera dos annos, fosse tam opprimido de dores, que naõ se distinguisse de qualquer humilde, & pobre homem: mas esta he a condiçaõ inexoravel da morte, da dor, & da enfermidade, fazer semelhantes aquelles, a quem a fortuna, & a natureza fez taõ differentes.

Para tratar pois da dor de Colica, com que o sobredito senhor foy cruelmente atormentado , julgo ser razonavel (visto ser doença dos intestinos) saber primeyro que cousa saõ intestinos; quantos saõ; de que substancia constaõ; que figura tem; em que officio se occupaõ; & que sitio lograõ.

Digo pois que os intestinos saõ hũs corpos membranosos, compridos, redondos, & concavos, que nascem immediatamente do orificio inferior do estomago, e se estendem atè o sesso: servem para cozer, alterar, & distribuir os alimentos, & expurgar as sezes : & posto que o corpo dos intestinos seja hum continuado desde o principio atè o fim; com tudo pela variedade da substancia huns se chamaõ grossos, outros delgados: por razaõ do officio, huns recebem, & outros distribuem: por razaõ da figura huns saõ rectos, outros anfractuosos: por razaõ do sitio, huns saõ inferiores, outros superiores: finalmente por razaõ do numero, se reduzem a seis: tres delgados, como saõ o Duodeno, o Jejuno, & o Ilio; & tres grossos, como saõ o Cego, o Colon, & o Recto. O primeiro intestino, começando do estomago, se chama Duodeno, porque tem semelhança de doze dedos; naõ tem muitas dobrezes, & desce para o espinhaço, para dar lugar á vea Porta : tem o corpo pela parte posterior glanduloso; & neste intestino está plantado hum cano, pelo qual se evacuaõ os excrementos. O segundo intestino se chama Jejuno, assim porque o chylo, que desce do estomago, se detem pouco tempo nelle; como porque o humor colerico lhe accelera o movimento; como finalmente pelas muitas veas, que attrahem o chylo para o figado; & porque o sobredito intestino està sempre vasio, se diz Jejuno. O tal intestino he mais delgado que o Duodeno, & bastantemente comprido; collocase em toda a regiaõ umbilical descendo por suas voltas até, o Ilio. O terceiro intestino se chama Ilio, & he mui comprido, & cheyo de muitos gyros; està situado abaixo do embigo. O quarto intestino se chama Cego, & consta sómente de hum buraco, pelo qual recebe, & lança. O quinto se chama Colon, & traz sua origem do intestino Cego no Ilio direito até o rim esquerdo; he o mais largo de todos, & tem muitas glandulas. O sexto se diz Recto, porque vem direito desde a parte alta do osso sacro atè o sesso, no fim do qual apparece hum musculo atravessado, para que os excrementos naõ sayaõ sem se sentir, nem a pesssoa o querer.

Como pois eu tenho assentado que a verdadeira sciencia naõ consiste no estrondoso, ou campanudo das palavras, nem na apparencia, ou pompa exterior dos vestidos, mas nas obras ordenadas com acerto, & effeituadas com felicidade, puz todo o cuidado em conhecer a enfermidade, & os lugares em que estava, para lhe applicar os remedios convenientes; mas como no mesmo lugar (qual he o ventre) hajaõ muitas partes, naõ he fácil distinguir o sitio da dor pela acçaõ lesa,, nem pela retençaõ das fezes; porque tinha este senhor continuos desejos de vomitar, grandes dores no ventre, excessiva adstriçaõ das fezes, repetidas vontades de ourinar, o que fazia gotta a gotta, & com grandissimos ardores. Porèm como estes symptomas sejaõ quasi identicos na dor de colica, & na nephritica, & se equivoquem entre si de maneira, que a dor que começou colica, acaba muitas vezes nephritica, (1.) me vi muito embaraçado para distinguir huma dor da outra; porque sem ter perfeito conhecimento da doença, me exporia a algum sinistro acontecimento: porque se a dor fosse verdadeiramente colica, & eu lhe applicasse remedios diureticos, faria hum erro da primeira grandeza; porque levaria os humores para as veas dos rins, que saõ mais apertadas, & pequenas.

Conheci pois que a dor era verdadeiramente nephritica, assim porque permanecia fixa na mesma parte; como porque sentia estupor na perna da mesma ilharga; como porque as ourinas eraõ delgadas, & poucas; (2.) como porque naõ podia estar deitado sobre a parte dolorosa: o que tudo succede pelo contrario na colica ordinaria, porque nella naõ tem a dor lugar certo, (3.) nem carrega as partes lumbares, falta o estupor das pernas, vem as ourinas mais copiosas, & grossas, o doente sofre bem o estar deitado sobre a parte enferma.

suppostas estas razões, & sinaes diagnosticos, vim a entender que a tal dor era nephritica, & procedia da continuidade soluta do rim por causa de alguma pedra, area, ou lympha mais grossa do que convinha; & resolvi que o remedio devia ser laxante, anodyno, & evacuativo; paraque descarregada a materia, mitigada a dor, adelgaçada a lympha, & abertas as vias, pudesse a natureza deitar fóra de si a causa de tanto mal; & para conseguir estas intenções, lhe fiz lançar huma ajuda emolliente preparada pelo modo seguinte. Tomem de raizes de malvaisco machucadas huma onça; de folhas de malvas, violas, alfavaca de cobra, & de ortigas mortas, de cada cousa destas huma maõ chea; de semente de linho, & de alforvas, de cada cousa destas meya onça; de raiz de aristoloquia duas oitavas; tudo se coza com hum frangaõ em huma canada de agua, atè ficar hum só quartilho; & coandose este cozimento, mandei ajuntar a quatro onças delle huma onça de diaprunis com tres onças de lambedor violado; ordenando que esta ajuda se applicasse morna, para se sustentar mais tempo dentro no corpo, & fazer melhor obra. Porèm como a natureza pela vehemencia da dor estivesse atormentadissima, & mui alhea de si, aproveitou pouco a dita ajuda, porque a naõ reteve, & por isso lhe fiz deitar outra muito especifica na fórma seguinte. Em quatro onças do sobredito cozimento mandei ajuntar huma onça de terebinthina de beta, lavada tantas vezes em agua de malvas, atè se fazer branca, duas gemas de ovos cruas, & dez oitavas de diaprunis, & que se applicasse morna. Mas como as dores se exasperassem mais, & o ventre se endurecesse muito, lhe fiz beber tres onças de agua benedicta vigorada, obrigado de tres motivos. O primeiro, porque a natureza desde a primeira hora da dor tinha muitas vezes vomitado alguma colera, com o que sentia alivio. (4.) O segundo, porque com a experiencia de muitos annos tenho observado que nenhum remedio aproveita tanto nas dores nephriticas, como saõ os vomitorios de agua benedicta. (5.)O terceiro, porque naõ ha remedio, que tanto lave o ventre, quando está endurecido, nem tanto o aperte, quando está relaxado, como saõ os vomitorios: assim o diz Hippocrates, (6.) & eu o tenho tambem experimentado a ssim.

Deilhe pois tres onças de agua benedicta vigorada; a qual supposto obrasse copiosamente por hũa, & outra via, & tenha maravilhosas virtudes para curar muitas doenças, como dizem graves Authores, (7.) não venceo de todo as dores, nem as afflições; porque naõ tem a Medicina remedio algum tam magnifico, que aproveite igualmente a todos; & por isso às pessoas, a quem o vomitar he mui custoso, se naõ devem applicar vomitorios com tanta confiança, como àquellas, a quem he facil. Por esta causa appelei para tres onças de mannà desatado em quatro de oleo de amendoas doces tirado sem fogo; porque deste remedio tenho visto grandes maravilhas em casos semelhantes. Porèm como dores tivessem jà tomado grande posse, desprezáraõ a efficacia de tam especifico medicamento.

Nesta obstinaçaõ do mal, como o corpo estivesse evacuado bastantemente, & naõ ouvesse febre, & fossem passadas seis horas depois de ter comido, mandei preparar o seguinte banho, de que tenho visto effeitos maravilhosos. (8.) Tomem hum arratel de amendoas doces bem pizadas, & dous molhos de alfavaca; tudo se coza com vinte canadas de agua, & este cozimento fervendo se deite em huma bacia grande, misturandolhe tanta agua fria, quanta for necessaria para que toda fique morna; metendose o doente dentro, conheceo tam grande melhoria, que estendeo lhe nam seria necessario outro remedio; & com muita razaõ; porque, como diz Galeno, (9.) a agua morna suspende as dores, abranda a acrimonia dos humores, tempera o calor das entranhas, abre as vias da ourina, faz deitar a pedra, & tem outras muitas virtudes, com tanto que se dè com as tres condições seguintes: a primeira, que se dè sem horror: a segunda, que nenhum membro principal esteja fraco: a terceira, que no estomago, nem nas primeiras vias haja copia de cruezas.

Logo que o doente entrou no dito banho, reconheceo grande alivio, & com elle esteve duas horas; porèm passadas ellas, repetio a dor com mayor crueldade; & vendo o enfermo que ella crescia, entendeo que era chegado o fim da sua vida, & por isso mandou chamar a hum Religioso da Companhia, para se confessar. Oh Deos eterno ! que confusaõ, & labyrinyo ouve em toda aquella casa ! quantas lagrimas se derramàraõ ! quantos suspiros se ouviraõ ! quantas deprecações ao Ceo se fizeraõ! quantas reliquias sagradas se buscáraõ ! quantos Religiosos de conhecida virtude se conduziraõ ! Passo em silencio as promessas, os votos, & as esmolas, que o Eminentissimo senhor Cardeal fez pela saude de seu muito amado sobrinho, vendo-o em tanto perigo.

Neste tempo pedia o doente com enternecidos rogos, & suspiros lhe applicassem algum remedio, com que se tirassem as dores, ou se moderasse tam cruel tormento. Para isso lhe mandei lançar huma ajuda de quatro onças de caldo de gallo velho, duas gemas de ovos cruas, huma onça de terebinthina de betacom dez oitavas de diaprunis; & sobre a parte dolorosa lhe appliquei (alternadas vezes) hora um paõ vindo do forno partido pelo meyo, & embebido em leite de cabras; hora redenhos de carneiros mortos mo mesmo aposento, para que com o calor natural sortissem melhor effeito; hora filhozes de alfavaca frita levemente em banha de flor, & oleo de macella, a que mandei ajuntar igual quantidade de bosta de boy fresca, & tres gemas de ovos; hora oleo de amendoas doces frito com folhas de erva santa, & mangerona; porèm era taõ grande a pervicacia do mal, que nenhum alivio teve com algum destes remedios, por mais anodynos, & decantados que sejão.

Aqui se esgotou o sofrimento do enfermo, & quasi desesperado se levantou da cama despido, & descomposto, andando de casa em casa com tam apressados movimentos, como se estivesse furioso, ou fóra de seu juizo. Neste lugubre espectaculo, & ultima desconfiança da vida o animei, dizendolhe que brevemente se veria restituindo à sua perfeita saude com hum medicamento, que em casos semelhantes me naõ deixára envergonhado. Ouvida esta alegre nova, renasceo no sobredito senhor Marquez a esperança da vida, & pondo de parte toda a tristeza, & lembrança do muito que tinha padecido, tomou o medicamento, que lhe mandei preparar na fórmula seguinte. Tomem de calomelanos turqueti bem preparado meya oytava, de diagrydio sulfurado seis grãos, de laudano opiado, feito por maõ de bom artifice, tres grãos; tudo se misture com o que bastar de confeição de hyacinthos, & formense quatro pilulas, que tem maravilhosa propriedade para render semelhantes dores, assim porque saõ narcoticas, pelo laudano opiado que as fixa, & adormece; como porque saõ purgativas, pelo calomelanos, & diagrydio, com que saõ compostas. Tomadas as ditas pilulas, se tirou totalmente a dor, & dormio toda a noite com grande quietação, (o que não podia fazer avia muito tempo) & passadas seis horas acordou aos estimulos da purga, & obrou com tal felicidade, que ficou livre vinte & quatro horas, mas passadas estas, tornàraõ a vir as dores; donde vim a suspeitar que eu me tinha enganado no conhecimento da doença, como succedeo a Galeno (10.) comsigo mesmo; & que a pertinacia da dor procedia de algum sangue fervente, & bilioso, conforme o testimunhavaõ a vivacidade, & temperamento do enfermo, & que por isso seria necessario fazerlhe algũas sangrias, para temperar a impetuosa ebulição, & orgasmo do sangue. Mas como o Marquez fosse nascido, & creado me Flandres, aonde as sangrias se naõ usaõ tanto, como em Portugal, resistio ao meu voto; principalmente, porque naõ era costumado a semelhante modo de curar: com tudo foraõ tam concludentes as razões com que o persuadi, que se resolveo a estar pelo meu conselho. Porèm fazendo eu reflexaõ sobre a grandeza da sua pessoa, naõ Obstante a muita confiança, que em mim tinha, lhe naõ quiz applicar as taes sangrias, sem consultar a outros Medicos de mayor nota, seguindo nisto o conselho de seneca, (11.) o qual diz que quanto hum Medico for mais subtil, & engenhoso, tanto mais ha de procurar o conselho dos outros nos casos perigosos, sem se ensoberbecer; porque muitas vezes permite Deos, em castigo da presumpçaõ, que os que sabem menos, vençaõ aos que imaginaõ saber mais, guardandose os milagres da Medicina para os humildes. O mesmo aconselha Hippocrates (12.) dizendo, que nos casos perigosos naõ será afronta ao Medico fazer chamar outros, para que da consideração de muitos se venha em conhecimento da enfermidade, & do remedio que se deve fazer para conseguir a saude. Por esta razaõ expuz aos senhores Medicos novamente chamados tudo, o que tinha succedido, & eu tinha obrado desde o primeiro instante da doença; ouvida por elles toda a narração do caso, & ponderado os remedios, que se tinhaõ applicado, naõ achàraõ que reprehender; antes se esprayàraõ em louvoires meus, de que sempre considerei indigno; & por isso de commum consentimento resolvèaõ que usariaõ sómente de tres generos de remedios. O primeiro, seriaõ algumas sangrias nos pès, para que diminuida a carga dos humores, ficassem as vias mais patentes para expéllir melhor as areas, ou pedras, que presumiaõ aver nelle. O segundo, seria outra purga composta de calomelanos, tartaro, & diagrydio. O terceiro, seriaõ algũas amendoadas de pevides de melancia, & caroços de ginjas, & quinze grãos de semente de bisnaga feitas em agua cozida com folhas de pimpinella, nas quaes se desfariaõ dez grãos de tartaro violado com huma onça dé lambedor de violas magistral; com os quaes remedios (repetidas vezes tomados) lançou duas pedras, & algumas areas, & desde aquelle dia desapparecèraõ as dores, & ficou são.

Porèm como os humores acres, & tartareos sejaõ a causa de semelhantes queixas, temi que a malicia, & caracter terminal dellas (postoque por entaõ estivesse amortecida) tornasse a resuscitar, & afiligisse novamente ao enfermo; & por isso, para temperar as en??anhas naturaes; & rebater a sasugem, & acrimonia dos humores, ordenei com approvaçaõ de todos que por cincoenta dias bebesse em jejum hum quartilho de leite de burras mungido daquelle instante, como manda Galeno. (13.) E aproveitou o tal remedio de maneira, que naõ foy necessario outro, & desde aquelle tempo atè hoje naõ padeceo mais semelhante doença.

Advirto aos senhores Medicos modernos, que naõ attribuaõ a temeridade, ou ignorancia o misturar eu remedios narcoticos com os purgativos; porque devem saber que tam fóra está de ser erro, ou ignorancia a tal mistura, que antes a julgo por pratica muito boa, & digna de ser imitada, & applaudida. Nem sou tam ignorante, ou falto de vergonha, que no espaçoso theatro de toda esta Corte, & em tanta concurrencia de Medicos doutissimos me atrevesse a louvar,o que naõ tiesse observado com repetidas experiencias. Nem a estas minhas Observações falta a razaõ; porque, se estando as dores no seu mayor vigor derem algum remedio purgativo sem ir misturado com algum narcotico, como he o laudano opiado, naõ poderà o dito remedio purgativo fazer o seu effeito; pois a natureza està divertida com a violencia da sensaçaõ dolorosa; & consequentemente nem provocarà evacuaçaõ, nem farà utilidade alguma: & pelo contrario se os medicamentos narcoticos se derem sós sem companhia de medicamento purgativo, posto que aliviem a dor tirando o sentimento às partes dolorosas, naõ tiraraõ a causa, & ficando ella no copo, acometerà novamente ao enfermo, & quicá com mayor crueldade. Replicaráõ os Medicos principiantes, dizendo: Logo se os remedios opiados por isso se devem misturar com os purgativos, para que tirando o sentimento da dor, façaõ os purgativos o seu effeito; tambem tirando os narcoticos o sentimento, naõ irritaràõ os purgativos a natureza, nem purgaràõ os humores, & por consequencia será escusado misturar huns cim outros? A esta duvida respondo, que os remedios opiados, ou narcoticos, em quanto estaõ dentro no corpo, tiraõ com tanta efficacia o sentimento, que nem a dor do achaque se sente, nem a irritaçaõ da purga se percebe; mas passadas algumas horas, nas quaes a virtude narcotica, ou estupefactiva se gasta, quando jà o doente está livre da dor, começa a sentira irritação do medicamento purgante, que se occultou, em quanto o remedio narcotico teve vigor; & por consequencia purgada a materia morbifica, se tira a causa efficiente das dores fom grande utilidade dos enfermos.

Desta Observaçaõ consta, como cada hum destes remedios faz o seu effeito em diversos tempos, sem que a virtude de hum encontre o effeito do outro. Fallo verdade, creame quem quizer, ue eu naõ obrigo a alguem a que me crea. se com tudo ouver algum Medico tam pertinaz, & inflexivel, que reprove este modo de curar, veja as Observações de Riverio, (14.) & nellas achará, em termos identicos, huma colica, que teve certo homem, a quem naõ aproveitando remedio algum, mandou dar seis pilulas compostas de uma oitava de azevre, oito grãos de diagrydio, & quatro de laudano opiado; & em poucas horas se tirou a dor, & pelo discurso do dia foy purgando, & ficou totalmente saõ. O mesmo methodo de curar Observou Poterio, (15.) misturando remedios opiados com os purgativos, todas as vezes que no mesmo tempo avia grandes dores com grande necessidade de purgar, & por este estylo fez prodigiosas curas.

OBsERVAÇOENs MEDICAs DOUTRINAEs.

OBsERVAÇAM II.

De huma tosse vehementissima, e repentina, a que sobreveyo hum fluxo de sangue pela boca, que teve o Illustrisstrissimo senhor D. Fr. Diogo Ventura Hernandes de Angulo Velasco sandoval, Arcebisbo Embaixador de Carlos II. estando em Lisboa, no mez de Julho de 1688.

AInda que he cousa taõ difficultosa curar a hum doente, a quem assaltaõ muitas enfermidades juntas, como sustentar a humas casas, que por muitas partes estaõ cahindo; como tudo he timbre, e obrigaçaõ de Medico Catholico pôr todo o empenho possivel para soccorrer aos que se valem do seu amparo, e o Medico, que naõ se compadece do seu proximo estando enfermo, he indigno de ter nem o nome, nem a apparencia de homem; e sem embargo que para emprezas grandes naõ bastaõ forças pequenas, e eu conheço as poucas que tenho, nem por isso me escusei já mais de fazer o que entendo que he conveniente aos doentes, antepondo as suas vidas ao meu credito; e sucede muitas vezes, que em premio do meu bom zelo, me favorece Deos de tal maneira, que venço algumas doenças gravissimas, de que mayores Medicos tinhaõ desconfiado, e deixado por incuraveis.

A dous de Julho de 1688. deo huma tosse secca vehementissima, e repentina no Illustrissimo senhor Arcebispo Embaixador de Carlos II, e pela excessiva força com que tossia, ou pela muito acrimonia, ou quentura do humor que a irritava, se lhe abriraõ as veas do peyto de tal sorte, que lançou grande quantidade de sangue pela boca; e como este simptoma he mui formidavel, e causa grandissima desconfiança aos mais doutos, e experimentados Medicos, e desanima aos mais valerosos corações, prostrado de animo, pallido de rosto, e desconfiado totalmente da vida, mandou logo chamar ao Consessor, e ao Medico juntamente; e depois que tratou de sua alma, e pedio a Deos perdaõ de suas culpas, fallou comigo do modo seguinte: Muito tempo ha, Doutor amavel, que tinha desejo de communicarvos mui familiarmente, porque me tinha chegado a noticia a grande curiosidade, e singular destreza com que exercitais a arte de curar; porèm naõ sei porque descuido, ou com que pejo rustico deixei de pòr por obra esta vontade; mas agora, que me acho em lance taõ apertado, e em taõ arriscada occasiaõ, a quiz tomar com as mãos ambas, para que no perigo, em que estou posto, me livreis da morte, que certamente estou temendo. Pelo que deveis saber que desde o principio da minha vida tive hum temperamento calidissimo, e por esta causa bebi sempre agua nevada nos tempos calurosos; e como por descuido dos que vendem a neve, ou por outra causa se naõ achasse, foy necessario beber agua com o calor do tempo; o que he muito contrario ao meu temperamento, e costume; e desta occasiaõ, e falta de refrigerio, referveraõ os humores, e se exaltaraõ a hua acrimonia, e corrosidade taõ grande, que irritaraõ a aspera arteria, e as fibras do bose, para que rompesse em tosse secca, e ferina, que durando muitas horas, enfraqueceo de tal modo ao peito, que me fez lançar naõ só escarros de sangue, mas hum fluxo delle taõ copioso, que perdi a esperança da vida, e se alguma tenho (depois de Deos) he no vosso patrocinio; por tanto vos peço tomeis por vossa conta vencer huma doença taõ perigosa; da qual se eu escapar, ( como espero) naõ só vos ficarei perpetuamente obrigado; mas confirmarei a boa opinião, que de vosso grande talento tenho concebido.

Depois que o illustrissimo doente me deo conta do mal que padecia, e descansou hum pouco da sua pratica, lhe fallei do modo seguinte: Deveis saber senhor, que todas as tosses procedem do bofe offendido, e irritado, ou por idiopathia, quando o mesmo bofe naõ aparta, nem deita fóra de si os excrementos, que resultaõ do alimento com que se sustenta, e conserva na sua individual nutriçaõ, e entaõ sentindose o bofe aggravado, e estimulado do mesmo excremento, pertende deitallo fóra por meyo da tosse, se o póde conseguir, se tira logo a doença; mas se a desgraça he tal, que naõ pòde separar os ditos excrementos, se reprezão, e amontoão no mesmo bofe, e ahi se engrossaõ cada dia mais, e andando os tempos, se convertem em pedra, como já vi; e daqui procedem as tosses continuas, e desesperadas, ou fympathicamente se offende o bofe, quando os humores serosos se destillaõ da cabeça, e cahem dentro nelle, e vellicaõ, ou mordem as suas membranas nervosas; ou quando os taes soros apartandose da massa sanguinaria, se transfundem pelos vasos pulmonares, ou por huma resudaçaõ entraõ na membrana interior da traca arteria, que he muito mimosa, e sensitiva; e daqui nasce que no principio he secca; porque como a materia he entaõ muito delgada, naõ obedece aos impulsos da faculdade expulsiva, porque naõ tem esta em que fazera sua força. Tambem se offende o bofe por sympathia, quando algum tumor, ou inflammaçaõ do figado, ou de outra qualquer parte interior aparta o diaphragma, como succede em alguns hydropicos: (1.) ou quando alguns vapores, ou humores acres vellicão as membranas nervosas da aspera arteria, ou do bofe, como succede muitas vezes no principio sezões, que movem aos taes humores, ou vapores. Finalmente offendese o bose por sympathia, por alguma intemperança quente, ou secca, ou aspereza dos instrumentos, e orgãos, que servem para a respiraçaõ.

Explicadas assim as causas, de que procede a tosse, disse ao doente, que aquella, que de presente o molestava, naõ procedia de tumor do figado, nem do baço, nem do mesenterio, nem de outra parte que apertasse o diaphragma, pois nem com o tacto das mãos se sentia, nem com a vista dos olhos se divisava; porèm que eu entendia que o tal fluxo de sangue procedia sómente do excessivo fervor, e quentura delle, para o que ajudava muito o incendio do tempo, e a falta de agua nevada com que se tinha creado; pela qual razaõ me parecia que para aplacar a effervescencia, e acrimonia dos humores, aviaõ de ser mui proveitosas alguas sangrias. Mas (ò bom Deos !) tanto que fallei neste remedio, se irritou o sobredito senhor contra mim de tal modo, que para lhe abrandar a ira, foy necessario dizerlhe as seguintes palavras com aquella brandura, e modestia, com que devemos fallar a semelhantes pessoas. Naõ julgue Vossa Excellencia que sou taõ amigo de sangrar, ou taõ grande antagonista do sangue humano, que por qualquer leve causa o mande tirar; comtudo, no presente caso, entendo que he necessario fazer algu͂a descarga delle, por muitas razões. A mais urgente he; porque o sangue, que sahe do nosso corpo, ou sahe, porque pecca na quantidade, ou na qualidade, ou no movimento. se pecca na quantidade, naõ podemos diminuilla melhor que tirando-o. se pecca na qualidade, de nenhu͂a maneira se pòde tirar melhor do que tirando-o, pois elle he a materia, em que a tal quantidade se sustenta. se finalmente pecca no movimento erroneo, caminhando para onde naõ convém, de nenhum modo se pòde divertir melhor que tirando-o, e divertindo-o para outro lugar com as sangrias; (2.) porque me consta que os Medicos desta Cidade, e os do mundo todo curaõ os fluxos sanguinolentos com sangrias, naõ só com muito applauso, mas com grande utilidade dos enfermos. Todas estas razões, ainda que taõ claras, e concludentes, foraõ taõ mal recebidas do dito senhor, que me affirmou mais facilmente se deixaria enterrar vivo, que consentir que o sangrassem.

Nesta repugnancia do doente, lhe disse que naõ tinha razaõ em resistir tanto às sangrias , porque a ninguem eraõ taõ necessarias como aos Principes, e pessoas illustres; porque estes como usaõ de alimentos mais substanciaes, que os pobres, e tem vida mais descansada, que os humildes, criaõ muito mais sangue, e por esta razão tem mayor necessidade de que lho tirem: mas porque os senhores illustres ou por melindre, ou por soberania naõ admittem muitos remedios, nem obedecem taõ promptamente aos Medicos como os humildes, por isso muitas vezes saõ menos bem curados que a gente commua: e jà Galeno, (3.) e outros fizeraõ esta observaçaõ, e eu a tenho tambem feito.

A todas estas razões se ensurdeceo o sobredito Embaixador de tal modo, que me naõ respondeo palavra, com que me vi obrigado a recorrer ao mais efficaz remedio, que tenho alcançado com a experiencia de muitos annos; o qual he segredo, de que faço tanta estimaçaõ, que o preparo em minha casa, só para o deixar nella a meus herdeiros. Chamase o tal remedio, segredo de estancar sangue de qualquer parte que sahir. O modo com que se applica, he o seguinte. Mandei que em hum gral de pedra pizassem quatro duzias de folhas de salva verde, e se deitassem de infusaõ, por tempo de duas horas, em meyo quartilho de agua de tanchagem quente, e que passado o dito tempo se coasse a dita agua com forte expressaõ, e que entaõ misturassem dous escropulos do tal segredo com huma onça de xarope de rosas seccas, ou de murtinhos, e que tomandose este remedio, bebesse logo em cima delle a agua da infusaõ das folhas da salva, e deste modo fosse tomando o sobredito remedio, sete, ou oito dias successivos, pela manhãa em jejum, e à noite, tres horas antes de cear ; e rara vez succederà que o sangue naõ se estanque com tanta certeza, felicidade, e brevidade, como observei no dito senhor Embayxador, que em tres dias sarou pela virtude do meu remedio.

A agua que o doente bebeo (em quanto tomou o meu remedio, e muitos dias depois delle) mandei preparar do modo seguinte. Ordenei que se cozessem em panela de barro tres canadas de agua da fonte com huma oitava de pò de alquitira branca, e outra de pò de raiz de tormentilla, chamada por outro nome pentafilaõ, e vulgarmente, solda; e que nesta agua coada se desatassem quatro oitavas das minhas pílulas antifrebiles, chamadas por outro nome, absorventes, ou alcalicas; as quaes se acharaõ em minha casa, ou nas boticas de saõ Domingos, de Joaõ Gomes silveira, morador ao Chiado, ou de Joaõ Baptista Leitaõ, morador à Cruz de Cata-que-farás. Porque estes boticarios as tem verdadeiras feitas por minhas mãos ; e as que mais se vendem em outras boticas debaixo do meu nome, saõ falsificadas; que a tanto excesso tem chegado a depravada consciencia de algũs homens. E desta agua bem vascolejada mandei bebesse todas as vezes que tivesse sede; porque naõ ha remedio, que tanto aproveite nas doenças, em que ouver abundancia de humores acidos, e corrosivos: porque as sobreditas pilulas constaõ de muito alcali vazio, que absorbe, e toma em si toda a acrimonia, que rompe, e fere as partes internas, e excita as dores.

Finalmente aconselhei ao illustrissimo enfermo, que para moderar a tosse, (que muito o perseguia) estivesse em hum aposento de ar bem temporado, porque se fosse muito quente, adelgaçaria mais os humores, e faria mais tosse; e se fosse muito frio, constiparia os póros, impediria a transpiraçaõ, e faria mayores damnos. Ordeneilhe que naõ cobrisse a cabeça com barrete, ou qualquer cousa, nem consentisse perfumes cheirosos no dito aposento : que naõ usasse de lambedores, nem de cousas doces; porque na opiniaõ dos modernos, (4.) e pelas minhas experiencias saõ muito nocivos, porque aos tossigosos se convertem em colera, e irritaõ mais a tosse. Tambem lhe ordenei que comesse pouco, e naõ dormisse muito, principalmente nas horas de sésta: que evitasse todas as paixões do animo, exceptuando as que fossem de gosto, e alegria. Ultimamente lhe ordenei, que se quizesse preservarse de taõ perigosa doença, abrisse huma fonte no braço esquerdo, e outra na perna direita; e observando pontualmente estes conselhos, (tirando o das fontes, e sangrias, que naõ, por particular aversão, que sempre teve a estes dous remedios) conseguio perfeitissima saude.

Advirtaõ os leitores, que eu naõ só tenho preparado o remedio com q͂ se estanca o sangue de qualquer parte que sair, mas muitos outros de admiraveis virtudes, para curar algumas doenças, a que os remedios ordinarios naõ podem valer, e que os naõ faço por ambiçaõ do dinheiro, porque dou boa parte delles de graça aos amigos, aos pobres, e aos parentes; mas que os faço pelo gosto que tenho das excellentes curas, que com elles obro: e os faço tambem por credito da Arte, porque me lastimo de ver que sendo a Medicina huma sciencia taõ nobre, esteja hoje, como diz Hippocrates, (5.) taõ abatida, e mal avaliada pelo pouco que sabem alguns que a exercitaõ, que a naõ estimaõ como Rainha das sciencias; mas a desprezaõ como se fora huma vil escrava, enganosa, inconstante, caduca, e ordenada só a fim de roubar o dinheiro alheyo; porque dizem os praguentos, que os Medicos naõ fazem mais que multiplicar visitas, sangrar, e mais sangrar, e affectar sabedoria na discriçaõ das palavras, e no rigor, e severidade, com que trataõ aos doentes fastientos. Confesso que naõ posso sofrer se façaõ taõ grandes injurias a huma Arte taõ nobre, e fertil de remedios, nem a seus professores, quando consta a todo o mundo que naõ tem o guarismo caracteres, que bastem para contar o numero sem numero de remedios, que ha para qualquer doença. Queixemse embora dos Medicos que naõ estudaõ, e que o tempo que aviaõ de gastar em revolver os livros, o desperdição, e perdem em jugar, conversar, e lisonjear; donde se segue que sendo mais professores do descanso, que do estudo, tem introduzido no povo alguns abusos taõ prejudiciaes, e taõ arreigados, que se alguem pertende emendallos, acha contra si ao povo, e e a nobreza toda, cujos ouvidos estaõ preoccupados, e cheyos de dictames errados; e daqui procede que os Medicos estudiosos, e amantes das letras, se vem muitas vezes desprezados, quando mereciaõ ser applaudidos; destes taes Medicos preguiçosos, e inimigos dos livros, se queixa tambem Valefio, dizendo que não fazem mais que sangrar, e se alguem lhes falla em applicar remedios exteriores, respondem que naõ convem, sem que o corpo esteja evacuado; se lhes fallaõ em remedios, que se tomaõ por dentro, respondem que saõ escusados, porque se saõ quentes, augmentaõ a febre; e se saõ frios, fazem obstrucções, e destas se segue a podridaõ, e consequentemente a febre: se lhes apontaõ alguns cordeaes, ptifanas, ou remedios benzoarticos para resistir à qualidade venenosa, e à podridaõ dos humores, os naõ admittem, dizendo que oppilaõ: se cuidaõ em acudir às faltas do somno, ou em mitigar alguma dor, ou em aplacar algũ delirio, tambem o condemnaõ, dizendo que isso he curar o symptoma, deixando em pè a doença. Pois que se ha de fazer? pergunta o doutissimo Valefio (6.) aos Medicos, que tudo contradizem, e nada estudaõ. Respondemlhe: sangrar. E depois disso (pergunta outra vez o mesmo Valefio) que se ha de fazer? Respondemlhe: sangrar. E depois de sangrar que se ha de fazer? Respondemlhe: Tornar a sangrar. E feita a sangria, que se ha de fazer? Nada mais. Oh breve regra, e breve Arte ! exclama o mesmo Valefio, dizendo: Com muita razaõ se despreza huma sciencia, que consta de taõ pouca fabrica, como he sangrar, e mais sangrar. Destes Medicos que isto só fazem, queixemse embora os doentes, e todas as queixas seraõ ainda poucas; mas dizer mal de todos sem excepçaõ, he crueldade, e injustiça grande; porque temos neste tempo alguns Medicos tam curiosos, e incansaveis na liçaõ dos livros, e na indagação de grandes remedios, que nem reparão em trabalho, nem em perder a vida, e saude, só a fim de saber, e ter preparados alguns medicamentos de superiores virtudes para curar doenças, de que os homens certamente aviaõ de morrer, se faltassem remedios efficazes para as vencer, e Medicos doutos para os applicar.

OBsERVAÇAM III.

Da senhora D. Cecilia Maria de Meneses, a qual na idade de menina foy muy robusta; mas quando mais crescida fez tantos excessos em comer barro, em beber muita agua, e em se perfumar com demasiados aromas, que veyo a enfermar com huma febre, e suor continuo, acompanhado com tosse, estillicidio taõ feroz, que todos entenderaõ que estava hectica; e sem embargo que para curar a tantas doenças juntas lhe applicassem os Medicos os melhores remedios da Arte, nem por isso teve melhoria: e sendo eu chamado para curar a dita senhora, a achei taõ magra, taõ fraca, e taõ tossigosa, e febricitante, que entendi morreria brevemente, e levado deste temor me quiz despedir della, receando que me expirasse nas mãos: porèm foraõ os seus rogos taõ poderosos, que não pude defenderme, e assim entrei a curalla, dandolhe a minha agua antifebril, as minhas pilulas contra estillicidios, e o meu especifico antihectico: com os quaes remedios escapou da morte com grande credito meu, e dos medicamentos.

NAõ sou taõ obstinado sequaz da Escola Hermetica, que me naõ preze muito de ser discipulo da Hippocratica: nem quando louvo os remedios Chymicos, deixo de conhecer se devem grandes applausos aos Galenicos. Prova seja desta verdade a seguinte cura que fiz, valendome dos remedios, e conselhos de huma, e outra Escola.

Foy a senhora Donna Cecilia Maria de Meneses na idade da adolescencia dotada de taõ perfeita saude, e acompanhada de forças taõ diamantinas, que parecia feita de outra materia; mas o tempo que tudo acaba, e as doenças que a ninguem perdoaõ, lhe mostràraõ que participava com igualdade das leys commuas; (1.) porque enfermando a primeira vez, abrio a porta a taõ continuas doenças, que sem estar convalescida de humas, tornava a cahir em outras.

Neste tempo, àlem do apparato, e disposições morbosas, que as enfermidades prolongadas costumaõ deixar, comeo grande quantidade de barro, e bebeo agua sem medida, naõ attendendo aos damnos, que lhe podiaõ resultar. Taõ grandes foraõ os que se lhe seguiraõ, que hum anno todo esteve com febre, fastio, dores de cabeça, tosse, e outros mil symptomas, por cuja causa lhe derão cento, e vinte sangrias. Naõ me atrevo a afirmar que taõ excessiva effussaõ de sangue fosse a causa de se fazer de tão robusta, tão fraca, e de tão sadia, tão enferma; mas Galeno, (2.) que tem mayor autoridade que eu, o insinua, dizendo: Aindaque algu͂s doentes naõ sentem logo os dãnos, que as muitas sangrias lhe fazem; com tudo depois que as forças se enfraquecem com ellas, cabem os doentes em enfermidades teimosas, e ficaõ toda a vida enfermos; descorados, balofos, fracos de vista, de estomago, de fígado, e de nervos, e por esta causa huns se fazem hydropicos, outros apopleticos, outros paralyticos, outros asthmaticos, e com qualquer leve enfermidade morrem, ou chegaõ a grandissimos perigos; o que naõ succederia, se os ouvessem sangrado com mais cautela, e moderaçaõ. O que eu posso dizer com toda a certeza he, que depois dos sobreditos excessos, sempre esta senhora viveo queixosa, e assim avia de ser, porque, como diz Valesio, (3.) As muitas sangrias enfraquecem mais que qualquer outra evecuaçaõ, accrescentaõ as cruezas, impedem os cozimentos da mesma sorte, que quem tirasse o fogo a huma panela, que està cozendo; retardaõ as convalescenças, dispoem para hydropesias, e para muitas doenças: como observei nesta senhora atè a idade de trinta annos, e tendo jà chegado a elles, lhe sobreveyo huma terçãa continua; para remedio da qual mandou chamar ao Medico da sua casa, que lhe assistio sete meses, fazendo quanto foy possivel por curalla; porèm taõ longe esteve a doença de renderse às diligencias da Arte, que antes se enfureceo com grande excesso, porque demais de a não largarem a febre, e as dores de cabeça, lhe sobrevierão outras de dentes, e hum estillicidio salgado, e tão copioso, que não achando bastante porta para sua descarga, cahio parte no peyto pela banda interior; que lhe causou huma tosse secca; parte pela banda exterior, que lhe fez no lugar do osso sternon hum tumor tamanho como meya laranja; parte cahio nos musculos das mandibulas, e pescoço, e lhe fez algumas glandulas como amendoas; parte cahio nos olhos, e se derreteo em lagrimas tão salgadas, e mordazes que lhe escaldavão o rosto, e lugares por onde corriaõ; finalmente parte cahio nas juntas dos hombros, e joelhos, nos quaes lugares introduzio huma fraqueza, e laxidão tão excessiva, que não podia mover qualquer destes membros sem grande sentimento; e o que lhe dava mayor cuidado, era ver que a febre a não largava: persuadiose que seria acertado suspender os remedios por algum tempo; tanto porque estava já no fim de Novembro; (desabrido mes para as curas) quanto porque se sentia muito quebrantada; e porque entendeo que tambem era remedio deixar algumas vezes de fazer remedios; (4.) e como tomou esta resolução, despedio ao Medico, e ficou passando com as referidas queixas.

Mas como a enfermidade se tinha senhoreado da natureza, nem se restaurou com o descanso, nem depoz a ferocidade com as tregoas; antes de dia em dia foi cahindo em mayores debilidades, e chegou a romper em suores continuos, que não só a emmagreciaõ muito; mas a faziaõ cahir em alguns desmayos.

Vendose a pobre senhora naufragar entre a scylla, e Caribdis de tantas miserias, teve para si que estava hectica, e assım se resolveo que naõ queria já remedios humanos, pois lhe não tinhão aproveitado os muitos que lhe fizeraõ: e se alguem a persuadia a que chamasse outros Medicos, ou tomasse novos medicamentos, se enfadava, e excandescia de modo, como se lhe fizeraõ huma grande afronta.

Naõ faltou porèm hum homem de respeito, que lhe deo de mim tão boa informaçaõ, que se resolveo a chamarme, e assim lhe fiz a primeira visita em dez de Novembro de 1668. e devendo estar pallida, e descorada por causa de tão larga enfermidade, observei tinha humas chapeletas, e cores incendidas no rosto, que juntas com a febre lenta, magreza, tosse, suores nocturnos, e aspereza da pelle, me deraõ inteiro conhecimento de que estava hectica; e depois que tomei larga informaçaõ do muito que tinha padecido, me despedi sem lhe applicar remedio, até que por conselho de Valhes (5.) pudesse com a repetiçaõ das visitas certificarme se a febre era só hectica, ou se era complicada com outra podre; e achei que eraõ ambas: podre, porque tinha crescimentos tercianarios; e hectica, pelos referidos sinaes: e assim tratei de curar logo a podre, como condiçaõ, sem a qual se não podia curar a hectica, dandolhe para isso a minha agua antifebril, em quantidade de quatro onças, tres dias alternados. Deste remedio se conseguio curarse a febre podre; mas a tosse, e estillicidio perseveràrão como dantes. Lembraraõme então as louva dissimas pilulas de Hiera de Pachio, dizem Trincavello, (6.) e scribonio Largio taes excellencias para os estillicidios, e tosses importunas, que me resolvi a darlhas, sem que me fizesse medo a febre hectica: porque eu não sou daquelles Medicos, que se consideraõ qualquer quentura no remedio, não querem usar delle, por mais excellenteque seja: eu costumo olhar para a virtude do remedio, se elle tem grande prestimo para curar a doença, não me acovarda o ter mais, ou menos quentura. Quente he a salsa parrilha, e todos a dão aos gallicados, ainda que tenhão febre. Quente he a quinaquina, e ninguem duvida dalla em hűa febre terçãa, ou quartãa, por mais que o doente arda em Vesuvios de fogo. Quentissima he a agua de porco spim, e na febres malignas a daõ todos, por mais que a febre seja ardente. Como pois eu visse que a tosse perseverava, e a febre podre se não despedia, entendi que no estomago avia alguma saburra, e humores tartareos, que fumigando à cabeça, fomentavaõ a tosse, e o estillicidio: e como soubesse que as pilulas sobreditas tinhão grande prerogativa para as taes queixas, lhe dei nove vezes, de quatro em quatro dias, quatro escropulos cada vez; e foy o successo taõ milagroso, que se tirou a febre, e a tosse.

Vencida jà a febre podre, e a tosse, entrei a considerar que a febre hectica, e a magreza podião proceder de obstrucções das veas lacteas, e uterinas, pois lhe faltavaõ as purgações mensaes avia muitos tempos, e tinha comido tanto barro: e julguei juntamente que os suores nocturnos denotavaõ grande fraqueza na faculdade retentiva da terceira região; pois não retinha aquella humidade, a que os Doutores chamaõ Ros, Cambio, ou Gluten, que he muito necessaria para a nutriçaõ, e sustento das partes; mas antes por fraqueza a deixava exhalar em suor com damno irreparavel da doente.

Feitas estas considerações, achei ser necessario algum remedio, que extinguisse o calor hectico ateadorias partes solidas, abrisse as veas lacteas, e uterianas, confortasse a primeira, e terceira região: e como todas estas virtudes juntas só se achem no Antihectico de Poterio, (por razões que abaixo direi,) e eu o tivesse preparado com toda a perfeição, tive grande esperança que com o tal Antihectico a avia de livrar de tão grande perigo. Os que estudárão a Chymica, sabem preparar o tal remedio; mas aquelles, a quem não amanheceo ainda a luz, e o conhecimento desta Arte, saibão que eu o tenho feito para os que quizerem usar delle. Tem este Antihectico (como diz Poterio) (7.) admiravel virtude contra as febres hecticas, lentas, e habituaes, tirandoas dos ossos; abre as oppilações mais profundas, conforta as entranhas, apaga o calor estranho, facilita a respiraçaõ, mata as lombrigas, e aproveita as outras doenças, que deixo de dizer, por naõ enfadar. Os que saõ fiscaes das acções alheas, naõ avaliem por encarecimento o dizer eu que o dito Antihectico conserva as suas virtudes, e chega com ellas inteiras atè a terceira regiaõ; porque como he medicamento metallico, naõ vence o calor natural, nem padece taes alterações no estomago, figado, e mais partes que se enfraqueça, aindaque fique duzentos annos dentro no corpo; e esta quiçà seja a razaõ, porque os remedios Galenicos naõ abraõ taõ efficazmente; porque como saõ feitos de ervas, raizes, folhas, flores, fruitas, ou sementes, que saõ cousas mais proporcionadas com o calor do nosso estomago, de tal sorte os póde este vencer, e transmutar, que quando sahem delle para aproveitar a outras partes jà naõ levaõ a virtude, que dantes tinhaõ, ou muito pouca; o que naõ succede aos remedios metallicos, que alteraõ, e fazem os seus effeitos, e naõ saõ alterados, nem destruidos. Exemplo sejaõ desta verdade os pòs de Quintilio, que se os deitarem de infusaõ duzentas vezes em vinho, ou em agua, sempre obraõ os mesmos effeitos, sem perderem cousa alguma da sua virtude, nem do seu peso, nem sabor; porèm se tirarem duas, ou tres infusoẽs de ruibarbo, ou de sene, ou de qualquer outro remedio vegetavel, perdem de tal sorte a virtude, que jà a segunda infusaõ obra pouco, e a terceira nada: e assim como os remedios vegetaveis perdem as forças, e virtudes com as differentes infusoẽs, a perdem tambem com as differentes alterações, que recebem nas passagens, que fazem do estomago para as outras partes; o que naõ succede aos remedios metallicos, porque sempre conservaõ as suas virtudes, pois o calor natural as naõ póde cozer, nem domar eternamente.

Tornando ao nosso caso, digo que depois de vencida a febre podre, e a tosse, me emprenhei em curar a hectica, dando à dita senhora (trinta dias successivos) quinze graõs de Antihectico, misturado com huma onça de assucar rosado, e doze graõs de sal de Marte, tendo respeito à hectiguidade, e às obstrucçoẽs. Acabados os trinta dias do sobredito remedio, com que teve notavel melhoria, lhe fiz usar (por dous meses) de humas salvinas, que demais de curarem as febres teimosas, facilitaraõ muito a camara, e se prepararaõ de modo seguinte.

Tomem duas onças de farelos de trigo, e com agua da fonte se lavem duas vezes, e com meya canada de agua commua se cozaõ em tigela de barro por hum quarto de hora, e entaõ se coem, e espremaõ com grande força e deitando fóra os farelos, ajuntem a esta agua huma colher de farinha de avea, e cozeraõ tudo até que tome grossura de caldo de farinha, e se adoce com hum pouco de lambedor de abobora, ou de violas, (e esta he a salvina,) e passadas quatro horas jantava; e na entrada da noite lhe dava outra, e passadas quatro horas ceava. Mas porque o corpo ainda estava magro, e esquentado, lhe mandei fazer sobre as costas humas irrigações de leite de peito, quatro vezes no dia, paraque pelas veas lumbares se comunicasse a frescura, e humidade a todas as partes magras e resecadas. E foy Deos servido que todos estes remedios lhe aproveitassem de maneira que recebo saude taõ perfeita que em final de agradecimento de meu serviço, me fez digno de humas alviçaras abonadas de sua generosidade.

OBsERVAÇAM IV.

Da mesma senhora, que estando com a conjunçaõ mensal, comeo varias fruitas, as quaes, ou por muitas, ou por frias, & flatuosas, lhe causaraõ taõ grande aballo no estomago, que brevemente as vomitou com tanta violencia, que se lhe originou huma pontada no lado esquerdo, taõ aguda, & insoportavel que me obrigou a sangralla no braço da parte dolorosa, sem fazer caso da conjunçaõ; & foy o successo taõ feliz, que dentro de tres dias ficou boa, & livre da morte.

sEria cousa enfadosa referir aqui as muitas doenças, que as mulheres padecem por causa da madre; basta dizer em summa que a madre he authora de infinitas calamidades; porque, como diz Hippocrates, (1.) dos meses reprezados, ou por qualquer causa diminuidos, ou demasiadamente profusos trazem gravissimas doenças os seus principios. Em confirmaçaõ desta verdade me seja permitido referir a Observaçaõ seguinte.

Naõ sey em que hora infausta estando huma illustre senhora com a purgaçaõ mensal, comeo muita quantidade de peras, melancias, melões, & outras fruitas humidas, & flatuosas, com que se irritou, & offendeo o estomago de forte, que brevemente as vomitou com impeto mui arrebatado; & como o estomago, & o ventre tenhaõ grande communicaçaõ, & parentesco, se resentio tambem a madre, & se suspendeo logo a purgaçaõ, & desta reprezada, ou retrocedida para as partes superiores se originou huma grande pontada no lado esquerdo, à qual sobrevieraõ febre, tosse, & dificuldade de respiraçaõ: presumio a enferma que a dor era ventosidade causada da fruita que comèra, & levada desta consideraçaõ applicou sobre o lugar da dor alguns daquelles remedios, que saõ mais louvados para as ventosidades: humas vezes applicou pãnos de baeta quentes defumados com alecrim, & alfazema; outraz vezes alfavaca de cobra, e losna borrifadas com vinho, & volteadas ao fogo sobre hum testo novo; outras vezes saquinhos cheyos de sal, farelos, & de milho miudo, tudo torrado; outras vezes banha de flor, misturada com hũas pingas de espirito de alfazema; outras vezes aguda da Rainha de Ungria, misturada com pò de raiz da butua; outras vezes finalmente pò de esterco de ratos levemente fervido em oleo de macella: mas como nenhũ remedio destes lhe aproveitasse, entendeo que tudo procedia da madre, & a esse respeito bebeo duas onças de agua de flor de laranja misturada com outras duas de agua de erva cidreira, & hum escropulo de pò de pedra cordeal legitima; porque esta bebida tem particular propriedade para curar as dores, que da madre procedem: porèm vendo a doente que tambem este remedio lhe naõ valia, passou ao uso das ajudas carminativas, feitas de caldo de gallinha cozida com alfavaca de cobra, oortelãa, semente de linho, erva doce, palhas alhas, & cominhos, ajuntando a cada ajuda destas, duas onças de oleo de lirios brancos, huma onça de oleo de endros com meya onça de benedicta: mas quiz a desgraça, que a febre, a tosse, & a pontada cresceraõ com tal excesso, que entendeo que se lhe acabava a vida.

Desconfiada a doente dos remedios humanos, buscou os divinos, & depois de tomar o santissimo Viatico, me mandou chamar, sendo alta noyte; & sem embargo que a grande distancia do caminho, & a disconveniencia das horas podiaõ dar motivo para alguma escusa, naõ deixei de obedecer promptamente ao seu mandado; porque a generosidade com que tratava aos Medicos, facilitava todo o trabalho. Chegado que fui ao aposento da enferma, a achei taõatormentada com dores, que me naõ pode fallar; & tomandolhe o pulso, conheci que demais de estar ardendo com febre, tinha a respiraçaõ taõ apertada, a vista taõ turva, & ancias taõmortaes, que entendi seria impossivel deixar de naufragar a nào daquella vida combatida com tam desfeita tempestade; comtudo naõ quiz largar o leme, por mais que a via lutando com as ondas da morte. Naõ ficou diligencia que naõ fizesse para tomar da dita senhora algumas noticias mais particulares da sua doença; mas como naõ pude conseguir, me contentei com o que pude, aceitando a informaçaõ, que os assistentes me deraõ, posto que interrompida, & mal explicada pelo grandissimo pranto, que em todos avia. Porèm da vehemencia da dor, do excesso da febre, da frequencia da tosse, da dificuldade da respíraçaõ, & da facilidade de estar deitada sobre o lado queixoso, conheci que a doença era hum pleuriz legitimo, a que os Doutores chamaõ Exquisito, & que a pleura tinha huma inflammaçaõ interior com que se abrazava; & como para curar as taes inflammações naõ haja remedio mais presentaneo que as sangrias, como ensina Galeno, (2.) eraõ estas mui convenientes, & necessarias.

Moveose porèm huma grande duvida sobre o lugar em que se avia de fazer; porque como a enferma estava no segundo dia da purgaçaõ mensal, era mui factivel que o fluxo de humor, que corria para o lugar doente doente, trouxesse a sua origem das partes uterinas; porque a vehemencia do vomito deo occasiaõ a que retrocedessem para o lugar da dor. Parecia ao marido, & a todos os circunstantes, que era mais seguro sangrar no pè do mesmo lado, conforme o aconselhaõ os mayores Medicos do mundo: porèm de outra parte se estava vendo que a pontada hia crescendo ao galarim, & que durava avia quatro dias, & que as forças estavaõ mui prostradas, & enfraquecidas, assim pelo grande fastio, que de presente tinha, como por huma larga doença, que poucos dias antes tivera, que seria impossivel escapar por beneficio das sangrias feitas em lugar taõ distante; & por consequencia seria mais acertado fazellas no braço do lado enfermo, paraque com mais pressa, & menos dispendio de forças se acudisse à dor; porque alèm de que gravissimos Authores (3.) nos aconselhaõ que acudamos primeiro àquella enfermidade que mais nos apertar, & de que temermos mayor perigo, o entendimento, & a razaõ persuadiaõ tambem o mesmo, & que se deve fazer em todo o tempo, que a necessidade o pedir; porque se com o medo da calumnia (por estar actualmente correndo o sangue mensal) a mandasse sangrar nos pès, ou avia sangrarsse duas vezes no dia, ou quatro: se duas, naõ se podia esperar melhoria pela grande distancia do lugar, & aerto da doença: se quatro, paraque a frequente repetiçaõ do remedio supprisse a distancia da parte queixosa, naõ eraõ as forças capazes de taõ copiosa descarga. Desprezando pois o temor da gente ignorante, que a olhos fechadoaffirma se naõ deve fazer sangria alta, em quanto correm os menstruos; mandei fazerlhe ligaduras bem apertadas em ambas as pernas, & dahi a pouco tempo a mandei sangrar na vea d’Arca do braço doloroso.

Naõ faltaraõ pessoas, a quem pareceo temeridade, & demasiada ousadia sangrar nos braços, a quem actualmente estava baixando o sangue mensal; porque diziaõ que a tal sangria a avia de matar, porque chamaria o sangue de baixo para cima. Mas para convencer a supina ignorancia dos que sendo idiotas, querem parecer mais sabios que os Medicos doutos, lhez fiz ler as palavras dos mayores homens do mundo, (4.) os quaes uniformemente concordaõ que as sangrias (pedindo-o a necessidade) se devem fazer na parte de que se esperar mayor utilidade; de forte que se hũa mulher tiver hum pleuriz, ou garrotilho apertadissimo por mais que corra o sangue mensal, ou do puerperio, se naõ ouver alivio com algumas sangrias baixas, podemos (fazendolhe primeiro fortissimas ligaduras por cima dos joelhos) sangralla no braço com toda a confiança, sem fazer caso de que esteja sobre parto, ou menstruada; porque como ambas estas doenças sejaõ muito agudas, & perigosas, & corraõ despenhadamente para a morte, pedem que lhes acudaõ com grande pressa.

A mesma doutrina nos manda observar Francisco Valeriola, (5.) o qual mandou sangrar no braço a sua filha estando parida de quatro dias, porque lhe deo hum pleuriz apertadissimo , & vendo que com as sangrias baixas naõ tirava fruto, a livrou da morte com as altas.

Esta mesma opiniaõ confirma sennerto, dizendo, que aindaque aquelle movimento errado, que o sangue mensal, ou lochial faz para a garganta, ou para a pleura, se naõ deve ajudar com as sangrias do braço; com tudo, se virmos que feitas algumas sangrias baixas persevera a dor, ou se augmenta, mandemos sangrar no braço sem temor algum; porque he crivel que o humor, que causa a pontada, ou o garrotilho, este já fixo, & embebido na parte dolorosa de tal sorte, que já a revulsaõ baixa lhe naõ ha de aproveitar, & por esta razaõ he precisamente necessaria a evacuação feita pelas veas mais vizinhas da parte offendida. Galeno (6.) fallando em termos identicos nos dà o mesmo conselho, dizendo que se alguem sangrar naquellas veas, que naõ tiverem communicaçaõ com a parte dolorosa, que a tal sangria nem aproveitarà para a doença, & offenderà sempre a saude.

sejame permitida a licença para confirmar a doutrina destes grandes homens com o seguinte exemplo, que proponho para a gente vulgar. se hum tanque estiver cheyo de agua, & fecharem a fonte, que corre para elle, o mais que poderaõ conseguir com esta diligencia, serà que o tanque naõ tresborde, mas a agua, que jà estiver dentro no tanque, naõ se poderà tirar, por mais que façaõ, salvo abrindo no mesmo tanque hum cano por onde ella saya: naõ de outro modo, se estando huma mulher actualmente com a purgaçaõ do parto, ou com a conjunçaõ, lhe sobrevier hum pleuriz, hum garrotilho, ou hum frenesi, andarà muito acertado o Medico, que a mandar sangrar nos pès, vendo que o humor faz movimento errado para as partes superiores; mas se fazendo o Medico algumas sangrias baixas, crescer a doença, ou os symptomas que a acompanhaõ, poderemos entender que o humor está já embebido na parte doente, como a agua no tanque; & assim como para tirar esta, he preciso fazer huma abertura no mesmo tanque: da mesma sorte para tirar o sangue, que está embebido na pleura, ou na garganta, he necessario tirallo sangrando nas veas mais vizinhas da parte dolorosa; & se nem isto bastar, deitaremos na parte duas ventosas sarjadas, ou ao menos huma duzia de sanguisugas, como o tenho feito algumas vezes com taõ grande sucesso, que se naõ temèra enfadar, nomearia aqui as muitas pessoas, a quem livrei da morte com ellas.

Taõ poderosas foraõ estas razões, & de tal sorte serenàraõ os alborotados animos dos circunstantes, que os mesmos, a quem poucas horas antes parecèraõ as sangrias dos braços mais prejudiciaes que o mesmo veneno, me rogaraõ que as mandasse fazer no braço do lado queixoso, como eu o tinha ordenado; & chamando ao sangrador Miguel Pinto, a sangrou com sucesso taõ feliz, que antes de duas horas fallou, & deo grandes esperanças aos que só as tinhão de sua morte. Fizlhe então algumas perguntas; a que respondeo dizendo, que se sentia muito aliviada, mas que ainda tinha dor, & tosse, & que por isso me pedia lhe quizesse applicar alguma medicina, com que lhe alcançasse a saude. Mandei logo ao boticario de são Domingos, que preparasse huma canada da minha agua antipleuritica, & que de seis em seis horas tomasse meyo quartilho della morna, vascolejando primeiro o frasco. Tambem mandei fomentar a parte dolorosa com o oleo da abobora, o qual supposto obra effeitos maravilhosos nas pontadas, naõ fez nesta occasião o proveito que costuma; porque como o pleuriz, por ser legitimo, he mais interior do que he o bastardo, não pode o dito oleo penetrar tanto que tirasse a dor; neste aperto mandei deitar duas ventosas sarjadas sobre a a pontada, & foy o effeito tão presentaneo, que antes de doze horas se desvaneceo a a enfermidade com grande credito do meu nome.

Deste sucesso aprendão os Medicos modernos a não temer o uso das ventosas sarjadas, assim para as febres malignas, como para os pleurizes, & para todas as dores teimosas, porque conforme as minhas experiências, & as de gravissimos Authores, (7.) nenhum remedio he mais eficaz para todas as dores rebeldes, do que as ventosas sarjadas, porque chamão os humores da parte mais nobre, & profunda, para a parte menos nobre, & mais superficial; se hoje não vemos os milagrosos effeitos, que ellas fazem, he, porque as applicamos, quando os doentes estão agonizando, & disso se queixa sentidamente Valesio. (8.) No caso porèm que o doente seja tão melindroso, & delicado, que naõ queira sofrer as ventosas sarjadas, pode o Medico, em lugar dellas, deitar nas parte dolorosa quinze sanguisugas tres diaalternados, porque que com ellas vi maravilhosos effeitos em semelhantes pleurizes, & dores obstinadas.

A agua antipleuritica tive muitos annos em segredo, mas em serviço do bem comum a ensinei a fazer na minha Ployanthea nova fol. 30. num. 23. agora faço publica a preparaçaõ do admiravel oleo da abobora na maneira seguinte.

No mes de Agosto se tomem tres aboboras, & se lhes raspe muito sutilmente a pellinha exterior, & logo se fação das ditas aboboras em telhadas compridas, & estreitas, & se lhe tire todo o miolo branco de tal modo que fique só a casca verde sem cousa algũa do branco; & pezandoestas tiras lhe ajuntem outro tanto pezo de azeite velho, o melhor que se puder achar, & em huma panela de barro forte se ferva tudo por tanto tempo, quanto for bastante para se gastar a humidade da abobora; o que conhecereis por dous finaes: o primeiro, se moando huma palha no dito oleo, & chegando-a lavareda de huma candea, arder sem espirrar: & o segundo, se virdes que as ditas talhadinhas estão torradas, & quasi feitas em carvão; isto feito, areis o olo por hum panno de linho bem tapado, & então ferrareis o tal oleo duas vezes com seis pedacinhos de ferro virgem, quero dizer, com ferro que nunca fervisse de alguma cousa, & entaõ se traga o dito oleo ao sereno vinte noites: & este he o oleo maravilhosissimo com que se curaõ os pleurizes, principalmente os bastardos, esfregando a pontada com elle bem quente, & cobrindo com papel mataborraõ, & enfaxando com toalha defumada com alecrim, ou alfazema, & continuando dous, ou tres dias com estas fomentações, indubitavelmente fará o grande proveito que costuma.

Aquelles Medicos que depois de terem esta noticia dada por hum homem de setenta annos, taõ vizinho da morte, como cheyo de experiencias, não quizerem usar deste cordeal, nem do oleo da abobora, por desaffeiçaõ que tem à minha pessoa, darão estreita conta a Deos dos doentes que lhes morrerem por falta destes quasi milagrosos remedios, (9.) querendo mostrar ao mundo que o desprezarem-nos he porque sabem outros melhores; vaidade, & soberba de que ja Galeno (10.) se queixava.

OBsERVAÇAM V.

De humas dores de estomago insoportaveis, acompanhadas com azedumes tao isofriveis, que obrigagavaõ ao doente a vomitar todos os dias o que comia, so tinha alivio,en quanto esstava em jejum, ou depois que vomitava; mas como naõ podia consevar a vida sem comer, o assaltavaõ as mesmas queixas tanto que comia; para remedio dellas tomou varios medicamentos, mas taõ desgraçadamente, que perdeo as esperanças de ter saude, & por esta razaõ despedio aos Medicos. Neste tempo teve noticia que eu preparava hum efficacissimo remedio para aquelle mal; & chamandome, lho appliquei com taõ feliz fortuna, q vivendo depois disso vinte annos, naõ podeleo mais semelhante enfermidade.

He cousa affentada entre os Medicos, que a fraqueza do estomago, & os maos cozimentos delle, delle, saõ a causa occaional, & efficiente dos flatos, das azias, das dores, dos arrotos, de mil outras enferminades, que padecem os corpos humanos.

Tambem he causa averiguada que as cruezas, & corrupções dos humores se podem gerar tanto da intemperança fria, como da quente; assim como as causas efficientes das sobreditas dores, & flatos saõ differentes, o devem tambem ser os emedios: conheceremos pois que a causa de quealquer das referidas queixas he fria, se virmos que os flatos, ou arrotos saõ azedos; ou que o estomago he fraco, & coze muito devagar os alimentos, ou se a pessoa for muito velha; mas se os arrotos forem amargosos, fedorentos, ou nidorosos a modo de ovos chocos, he cousa certisssima que a causa, de que procedem, he quente. Isto assim presupposto, vamos ao nosso caso.

Francisco Juzarte da Fonseca, Provedor que foy doa Armazens, morador no bairro de Alfama, padeceo no anno de 1668. humas dores de estomaggo acompanhadas com huma azía, ou azedume tão insoportavel, & com huns flatos, & arrotos tão continuos, que no discurso de muito tempo, raro foy o dia, que deixasse de vomitar espontaneamente, ou metendo os dedos na boca para isso: porque so tinha alivio, em quanto o estomago estava despejado; mas como comia, o assaltavaõ dores tão execrandas, azías taõ horriveis, & flatos taõ importunos, que perdia a paciencia.

Nesta affliçaõ não sabia o doente que caminho avia de seguir: porque se não comia, se desmayava com fraqueza; & se comia, morria com dores: para chamar outros Medicos, se naõ achava com animo, porque tinha perdido toda a fé, & boa opiniaõ, que em algum tempo tivera da Medicina. sabemos porem hum grande seu amigo que elle estava com esta aversam lhe disse que o obstinarse, & fugir do conselho dos Medicos era erro, & loucura indesculpavel; que logo logo chamasse Medico, porque ao depois lhe naõ valeria arrependimento,porque infallivelmente morreria.

Feito este protesto, & intimado este desengano tão formidavel, como verdadeiro, se resolveu a chamar Medico, & me escolheo por director da sua cura, porque noticia que eu sabia alguns remedios de relevantes virtudes, com que curava achaque desesperados.

Logo que o doente apontou a minha pessoa, me chamàraõ, & depois da informaçaõ que me deo das suas queixas, entrei a considerar que o calor do corpo, a magreza das carnes, & a idade em que se achava davaõ grandes indicios, que assim as dores do estomago, como os arrotos, (postoque azedos) procediaõ mais da quentura das entranhas, & dos hypocondrios, que de frialdade; & levado desta consideraçaõ me resolvi a sangrallo seis vezes nos pès, para o refrescar. deitandolhe depois disto oito sanguisugas na veas sedaes; & nas noites ajudas de ameiejoada feitas de caldo de frangaõ cozido com ameixas, violas, & farelos lavados; ajuntando a cada cinco onças deste cozimento morno a agua de tres claras de ovos bem batidas, & duas onças de lambedor violado, sem levar sal, nem oleo, nem outra cousa, que irritasse a natureza; porque deste modo se susstentaõ dentro no corpo muita parte da noite,refrescão muito as entranhas, & dispoem a natureza para purgar. (I.) Aceitou com summa obediencia os sobreditos remedios, & aindaque todos eraõ admiraveis, & experimentados, não teve alivio com elles: porque assim como humas terras saõ boas para vinhas, outras para olivaes, & outras para sementeiras; (2.) da mesma sorte algúas naturezas peyoraõ com os mesmos remedios. com que outras sarão. Daqui se me abrio porta para presumir que as sobreditas dores, flatos, & azías procediaõ de causa fria: nem era fóra de razaõ esta conjectura; porque os symptomas referidos se augmentàraõ muito com os medicamentos frios; o que naõ succederia, se procedessem de quentura. Como pois entendesse que de causa fria procediaõ, lhe fiz tomar (em dias alternado) quatro escropulos de Hiera de Pachio, missturandolhe hum escropulo de pò da tunica interior da muela da gallinha, na qual poz Deos admiravel virtude, & propriedade para confortar o estomago, (como diz Dioscorides) (3.) curar as dores delle, as colicas, & os soluços. Nem me contentei só com este remedio; mas sobre o estomago lhe mandei por hum paõ vindo do forno ensopado em vinho tinto, que prumeiro fosse cozido com hortelãa, segurelha, & losna, polvorizado com pòs de canela, & aromatico rosado. Porèm como nem com esta medicina taõ celebrada, & efficaz conseguisse alivio, lhe aconselhei que antes de jantar engulisse todos os dias quatro grãos de pimenta branca inteiros, & comesse huma duzia de amendoas doces torradas, ou huma onça de bom chocolate, ou huma pouca de salsa verde; & que no dedo annular trouxeste hum annel de tambaca. Mas vendo eu que todos estes remedios, sendo mui applaudidos da experiencia, lhe naõ fizeraõ proveito, comecei a suspeitar que os flatos, dores, & azías naõ podiaõ peyorar depois de tantos, & taõ maravilhosos remedios, se a causa fosse fria.

Em labyrinthi taõ confuso me achei muito tempo duvidoso sobre o caminho que havia de seguir, temeroso de o errar; mas como conheci que as dores, soluços, & azias se exasperavaõ igualmente com os medicamentos quentes, que com os frios, escolhi hua es trada, naõ por onde atè aquelle tempo s e tinha ido, mas por onde era razaõ que se fosse: porque os Medicos antigos, aindaque fossem taõ prudentes como as cobras, não querem, como ellas, despir a sua pelle, ou vestido velho, para vestirem outra gala nova, porque tem para si, que sabem tudo, & levados deste desvanecimento, & presumpção, avaliaõ por erro da primeira grandeza diminuir, ou accrescentar alguma cousa a doutrina dos que primeiro escrevèraõ, & entendèraõ que as doenças se podem só curar com remedios, que tenhaõ qualidades contrarias, & manifestas contra ellas: v.g. enfermidades dades dades quentes com remedios frios, enfermidades frias com remedios quentes doenças seccas com medicinas humidas, & doenças humidas com remedios seccos: quando observamos hoje, que ha muitas doenças,que só se devem curar com remedios, que obraõ com qualidades occultas,& semelhantes,como saõ as maleitas, terçãas, & quartãas, cuja febre, sendo quente, & secca, se cura com quinaquina, ou com o vinho da sua infusaõ, que he quente, & secco: as erysipèlas, que sendo seccas, & quentes, se curaõ muito bem com agua ardente, ou com espirito de vinho alcanforado, que he quente, & secco: as febres de oppilaçaõ, que sendo algumas bem ardentes, se curaõ com aço, que nada tem de frio, nem de humido.

Tambem observamos que muitas enfermidades procedem dos acidos errantes exaltados, & subidos de ponto, & naõ se podem curar sem remedios antacidos abundantes de alcali vazio, & absorbente dos succos acidos, que saõ os estimulos que descompoem o concerto, & fermentaçaõ do estomago. Como pois eu tivesse experimentado que qualquer dos remedios, que tinha applicado para as sobreditas queixas, se tivessem baldado, naõ pude deixar de entender que por isso se naõ tiraraõ, porque procediaõ do succo acido exaltado, o qual naõ costuma obedecer ás sangrias, nem às purgas, nem às sanguisugas, nem aos remedios quentes, ou frios, (como os antigos queriaõ) mas sómente se rende aos remedios antacidos especificos. Achando pois o caminho por onde se devia ir, deixei o por onde se costuma caminhar, & assim dei duas vezes no dia ao doente seguinte antacido, que quero ensinar a todos para utilidade publica. Tomei de mercurio preparado com oleo de enxofre, feito por campana, hum escropulo, de aljofar, & de coral bem preparados, de cada cousa destas huma oitava, de osso de veado, & de dente de Engala preparados sem fogo, (como sabem os grandes Chymicos) de cada cousa destas quatro escropulos, de oleo de cravo da India cinco co co gottas, tudo se misture muito bem; & deste remedio antacido dei (em dias alternados) trinta grãos para cada dia, misturados com huma pouca de agua cozida com canela, ou com folhas de ortelãa verde; & antes de tomar seis vezes o tal remedio, desapparecéraõ as queixas sobreditas por modo de milagre, & ficon o doente com perfeita saude.

Huma advertencia muito necessaria quero fazer aos Medicos principiantes; & he, que hum só absorbente, ou antacido naõ he bastante para absorber, & fixar os differentes acidos, que offendem a nossa natureza; porque hum absorbente pede o acido hypocondriaco, como he o crocus martís preparado sem vinagre; outro absorbente pede o acido dos soluços, como saõ a agua de porco spim, & os aljofres; outro absorbente pede o acido que faz as convulssões spasmodicas do bofe, da madre, & do cerebro, como saõ a aguadas cereijas negras, os pòs de guteta, a unha de graõ besta, o oleo de pao de buxo, ou de aveleira, o esterco de pavaõ macho junto com quinaquina; outro absorbente pede o acido que faz as dores gallicas, como he a parrilha, o mercurio precipitado doce, o guasaco, outro absorbente pede o acido das diarrheas, como he o cristal bem preparado, & a agua da infusaõ do raibarbo; finalmente outro absorbente pedem os azedumes do estomago, cujo remedio se acha a infallivelmete nas minhas pilulas antefebriles, cujas virtudes se pòdem ver na minha Polyanthea nova fol. 847. até fol. 850. Mas porque nem todos sabem preparar taõ differentes absorbentes, por essa razão nem a todos he facil curar semelhantes doenças : se eu me achara com tantos cabedaes, ou com tantos premios, que por minha morte deixasse bem a minha casa, nenhuma duvida teria em revelar alguns segredos grandes, que a custo do meu estudo, & trabalho tenho alcançado no discurso de muitos annos; mas como nem por ley divina, nem humana esteja obrigado a tirar de mim o credito, para o dar a outrem, por esta razaõ guardo comigo a manufactura de alguns remedios mais fingulares; & como por conselho de Cicero (4.) o segredo particular naõ se ha de fechar com tanto aperto, que algum dia o naõ possa abrir a benignidade, nem manifestar com tal devassidaõ, que caya em desprezo, por isso tomei por expediente dar noticia a todos dos remedios que preparo por minhas mãos, dando tambem a todos hum roteiro das doenças paraque fervem, & do modo com que se applição, & desta forte nem falto com a obrigaçaõ de socorrer aos doentes nos seus perigos, nem envileço os remedios publicando a preparaçaõ delles. Contentemse pois os meus naturaes com acharem feitos alguns medicamentos efficazes para curar doenças, que naõ obdecem a mil remedios compostos de muita fabrica; & todas as vezes que algum Medico zeloso da saude do proximo offerecer algum remedio efficaz, & bem experimentado, será malicia diabolica não querer usar delle, só por não dar essa honra ao seu inventor, querendo antes fatigar aos doentes com outros remedios menos seguros, & mais penosos que a mesma enfermidade;nem será razão que o respeito dos Medicos antigos possa tanto com nosco, que nos obrigue a usar de remedios asperos, & mal preparados, se soubermos outros mais benignos, & perfeitos, principalmente sendo certo que a experiencia, & a razão fizeraõ a arte, & naõ a opiniaõ.

OBsERVAÇAM VI

De bumas camaras de sangue taõ rebeldes, que desprezàraõ aos mais efficazes remedios da Arte; & da grande resistencia, que a doença fez às diligencias dos Medicos, vieraõ a conhecer que as camaras procediaõ de qualidade gallica: & naõ se enganàraõ; porque examinando bem o caso, souberaõ que o doente tivera hum bubaõ,& huma gonorrbea, que supprimio intempestivamente, & daquelle dia por diante começou a ter camaras, que sú obececèraõ aos remedios alexipharmacos da qualidade gallica.

sE attentamente considerarmos as doenças, a que os homens estaõ sujeitos, nenhuma acharemos, debaixo de cuja capa, e rebuço se occultem tantos achaques, como debaixo da qualidade gallica, porque ella se transforma de maneira em todas as doenças a que se ajunta, que naõ se dará algũa, por mais nova, & rara que seja, com quem se naõ possa unir, & casar de tal modo, que (como outro Proteo) represente a mesma indole, & semelhança. Quantas vezes imaginamos que as dores dos membros saõ de gota, & ella saõ gallicas? Quantas vezes presumimos que as camaras de sangue procedem de chaga dos intestinos, ou de inflammaçaõ do figado, & ellas procedem de infecçaõ venerea, que imprimindose no sangue, o corrompe de maneira, que irrita, & obriga a natureza a que o deite fora como cousa damnosa, & offensiva? Quantas vezes cuidamos que os vagados saõ procedidos de vapores perversos gérados na cabeça, ou mandados a ella de outras partes inferiores, & a experiencia nos mostra que tem por fundamento a qualidade gallica? Quantas vezes entendemos que as febres continuas, lentas, & habituaes tem por causa a seccura, & e a quentura das partes solidas, & ellas trazem o seu nascimento da qualidade venerea? Quant- Quantas vezes vemos rouquidões, tosses, eftillicidios, febres, dores, ictericias, alporcas, magrazas, pallidezes, & outros symptomas infinitos em numero, & diversos em natureza, & quando cuidamos que provem de differentes causas conforme as diversas postulancias de cada huma, vimos a saber que nascera da mesma fonte gallica, mayormente quando experimentamos que as ditas doenças se naõ curaõ com remedios especificos, & indicados por ellas; mas com medicamentos que dominaõ, & arrancaõ a sobredita qualidade? Donde he razão que entendamos que nem todas as doenças se haõ de curar conforme pedem os seus sinaes: de maneira, que nem por Francisco ter dores de cabeça, lhe avemos de applicar logo remedios cephalicos: nem por Paulo ter febre, lhe avemos de applicar logo sangrias, & bebibas refrigerantes: nem por Joaõ ter camaras de sangue, lhe avemos de applicar logo purga de ruibarbo, & myrobalanos citrinos, nem outros remedios adstringentes, & consolidantes; porque estes medicamentos ainda que parecem bem indicados, & pedidos pelas sobreditas doenças, comtudo a experiencia de muitos annos me tem ensinado que saõ muitas vezes baldados, & infructuosos, porque as enfermidades a que se applicaõ, procedem de qualidade gallica, que so se deve eradicar com medicamentos, que tem dominio sobre a dita qualidade.

Em confirmaçaõ desta verdade me sesa permittida licença para referir o seguinte caso, que me passou pelas mãos em 23. de Julho de 1689. Hum nobre mancebo, cujo nome quero passar em silencio, contrahio, por causa de hum ajuntamento impuro, huma gonorrhea purulenta, & hum bubaõ na verilha direita; & como por vergonha propria, ou por respeito de seus pays naõ quizesse manifestar o seu peccado, lhe applicou, por conselho de hum homem ignorante, certo remedio, com que se resolveo a inchaçaõ & se supprimio o esquentamento com tanta brevidade, como desgraça, & desde aquella hora por diant- diante lhe sobrivieraõ camaras de sangue acompanhadas com acerrimas dores de barriga: para remediar a estes symptomas, se lhe deitàraõ innmeraveis ajudas lavativas, abstersivas, anodinas, vulverarias, & adstringentes, mas todas sem proveito: & como as dores dos intestinos eraõ insoportaveis, foy necessario fazerlhe algumas sangrias na vea d’Arca do braço direito, assim pararevellir os humores que faziaõ as camaras, como para ttemperar a acrimonia delles; tudo porèm baldadamente. Appellàraõ entaõ os Medicos para o usso da agna de beldroegas cozida com alquitira, & para os alimentos engrossantes, como saõ as mãos de carneiro cozidas com arroz, & duas oitavas de limadura de osso de veado; o xarope de sorvas, os caldos de goma, os pòs do cipò, as tunicas interiores das castanhas, & para outros engrossantes de igual virtude; porèm como nenhum remedio destes aproveitasse, antes fosse de mal para peyor, me chamaraõ, paraque desse o meu voto em hum caso taõ contumaz, & inflexivel; & informandome eu com toda a miudeza do enfermo, me naõ deo conta de bubaõ, nem do esquentamento supprimido por pejo de seus pays, que estavaõ presentes no tempo da informaçaõ: o que naõ he razaõ que façaõ os pays, quando os Medicos visitaõ aos filhos; nem os senhores, quando os Medicos visitaõ aos escravos; nem os Prelados, quando os Medicos visitaõ aos subditos, pelos naõ porem em risco de enganarem em hum negocio de tanta importancia, como he a vida. Queixouse ssómente das dores de barriga, & das camaras; & vendo eu o sangue, que com ellas deitava, como condiçaõ taõ necessaria, que sem ella se naõ podem curar bem, achei que o sangue vinha poucomisturado com a camara; final (como diz Galeno) (r.) de que a parte ferida eraõ os intestinos baixos porque se foraõ os altos, viria o sangue muito mais permisto com o excremento, pela grande distancia, que se mete desde o lugare ferido atè o sesso. Neste caso julguei com Fernelio (2.) que as ajudas eraõ mui-to -to mais necessarias, do que seriaõ, se a ferida estivesse nos intestinos altos, porque naõ podem chegar là. Ordenei pois que todos os dias lhe deitassem duas ajudas, que juntamente fosssem abstersivas, & refrigerantes, preparadas de modo seguinte. Cozaõ hum punhado de cevada com casca em duas canadas de agua da fonte atè ficar huma, & entaõ se recheará o vaõ de hum frangaõ com assucar rosado ordinario, & nesta agua o cozeràõ atè que fique hum quartilho, ao qual se ajuntará hum punhado de farelos de trigo lavados em quatro aguas, & dando mais hua leve fervura se coara com toda a força, & deste cozimento se tomará meyo quartilho, ajuntandolhe duas onças de çumo de tanchagem, & hua gema de ovo, & se deite esta ajuda tibia pela manhãa em jejum, & outra ao sol posto, & e se continuaraõ duas vezes no dia por tempo de oito dias. Pontualmente se executou este receito; mas sem embargo destas ajudas serem louvadissimas, & por mim muito experimentadas para semelhantes casos, foraõ as dores, & camaras taõ rebeldes, que foy preciso tornallo a sangrar na vea d’Arca do braço direito, para divertir os humores da parte queixosa; & darlhe duas sangrias na costa da maõ direita, na vea chamada salvatella, para temprar o incendio, em que o figado, & entranhas se abrazavaõ ; porèm como destas sangrias naõ colhesse fruto, appellei para a agua seguinte, que tempera o calor, & reprime maravilhosamente os cursos, & se prepara deste modo. A duas canadas de agua de beldroegas destillada por alambique de vidro, ou vidrado, mandei ajuntar huma oitava de pò de alquitira branca, & meya onça das minhas pupilas antifebriles, & desta bem vascolejada, & toldada mandei.bebesse o doente em quanto durassem os cursos; mas como os effeitos deste grande remedio naõ correspondessem aos meus desejos, & experiencias, lhe fiz tomar, duas vezes no dia, huma oitava de raiz de erva limonio feita em pò; à qual raiz (depois de Deos) deve o excellentissimo senhor Marquez das Minas a sua vida, porque por meu conse- conselho a tomou estando desconfiado dos Medicos por causa de humas camaras rebeldissimas. E como nem este taõ decantado remedio lhe aproveitasse, mandei que por hum funil tomasse os bafos de vinagre forte cozido com esterco de burro, rosas balauscias, çumagre, & bagas de murta; nada porèm bastou. Nesta porfiada resistencia do mal, entendi que os humores colericos com o seu grande calor, & acrimonia adelgaçavaõ, & aquentavaõ o sangue de tal maneira, & o faziaõ taõ mordaz, que a mesma natureza exasperada, & desafiada se via obrigada a deitallo fòra pela via da camara; & assentei comigo que nenhum remedio avia de curar as ditas camaras, fenaõ purgando os humbres, que as faziaõ, porque de outra sorte durariaõ atè o fim da vida. Receiteilhe entaõ para tres dias aquelle meu admiravel xarope contra as camaras, cuja composiçaõ acharaõ os curiosos na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 6. sot. 372. Num. 6. & 7. Comtudo como nas cousas humanas nada seja tão firme, & perpetuo que não tenha suas fallencias, faltou este remedio contra milhares de experiencias minhas; mas nem por isso perdi as esperanças de que avia de curallo com o meu admiravel segredo de estancar sangue, applicandolho seis dias sucoessivos de manhãa, & de tarde na fórma seguinte. Tomei quatro escropulos de trociscos de estancar sangue, & fazendo-os em pò os misturei com huma onça de xarope de sorvas, & bebendo-os em jejum tomou em cima delles meyo quartilho de agua de beldroegas, ou de murta, porque de qualquer dellas tenho grande conceito; porèm nesta occasiaõ foy a sorte menos favoravel, porque os cursos continuàraõ com a mesma porfia, & crueldade. Em tormenta taõ desfeita, & quasi perdido o leme, não pude deixar de assentar comigo firmemente, que teima tão constare só podia nascer de qualidade gallica; & para me certificar se a minha conjectura era verdadeira, estando só com o doente, & sem testimunhas a vista, examinei a verdade, & achei que o enfermo, fermo, porque seus pays não fossem sabedores do seu peccado, recolhèra hum bubaõ, & supprimira huma grande gonorrhea, & que daquelle dia por diante o assaltàraõ as dores, & as camaras, que padecia; com esta certeza cobre animo, & tive por infallivel que o avia de curar, & para isso lhe dei, dous dias alternados, estando em jejum, tres onças de agua benecta vigorada porque não tem a Arte Medica remedio, que tão prompta, & fielmente cure todo o genero de camaras como a dita agua, não só porque evacua o humor colerico, que costuma irritar, & fazer as camaras; mas porque valerosamente o deita fóra, divertindo-o, & revellindo-o da parte queixosa; & descansando quatro dias, lhe fiz tomar, nove vezes em dias alternados, hua pilula de seis grãos de mercurio precipitado levado, o qual para todas as doenças, que procedem de qualidade gallica, he taõ poderoso, como a clava de Hercules; & o que naõ puderaõ fazer tantos, & taõ maravilhosos remedios, como saõ os referidos, fizeraõ só os vomitorios, & o mercurio, (3.) porque conseguio com elles huma saude perfeitissima: graças sejão dadas a Deos.

Desta observação conheceràõ os Medicos modernos o muito que importa à sua honra, & à vida dos doentes examinar com toda a miudeza as causas das enfermidades, pois por falta do conhecimento dellas se naõ conseguem maravilhosas curas, muitas vezes parecem as causas humas, & ellas saõ outras: eu vi nevoas, & inflammações dos olhos, que peyorando com os collirios mais affamados da Arte, faràraõ com os mercurios tomados oitos vezes em dias alternados: vi rouquidões do peyto, que nem com lambedor de oleo de amendoas doces feito sem fogo, & amassado com alfenim, nem com o lambedor feito de mucilagens de malvaisco, pò de alcacuz, & assucar cande violado, nem com o decantadissimo xarope de Erysimo de Lobelhe tirevaõ alivio, & se curàraõ bem com repetidos xaropes de Dom Fernando: vi tosses seccas, & antigas, que nem com o lambedor de codeas de pão, nem nem com gemas de ovos brandos misturadas com hu didal de oleo de semente dos nabos, nem com o electuario chamado Diacodio, nem com pilulas de cynofloso se puderaõ curar; & só com laranjas bicaes comidas em jejum muitos dias se vencèraõ, como as pessoas curiosas poderàõ ver na minha Polyanthea da segunda impressaõ tr. 2. Cap. 49. Fol. 323. n. 8. Aonde nomeyo aos doentes, que curei de tosses com as ditas laranjas. Tambem vi inflammações de garganta, que não aliviando com os gargarismos de leite, & agua de cisterna, nem com os de arrobe de amoras, com agua de tanchagem, & sal prunelle, só tiveraõ saude com salsa parrilha. Quantas doenças padecem ainda hoje os homés, que estaõ postas no catalogo das incuraveis, porque lhes naõ conhecemos as causas de que procedem? Isto se deixa ver no presente caso, que em quanto as camaras de sangue se forão curando como taes, não ouve alivio; mas tanto que conheci que a qualidade gallica era a causa dellas, logo se vencèraõ com o mercurio, que he o mayor antidoto da dita qualidade, & de todas as doenças que della procedem.

Observaçam VII.

De humas alporcas, que nasceraõ no pescoço de certo fidalgo illustrissimo, & se atrribuiraõ a qualidade gallica; mas vendo os Medicos q quantos mais remedios especificos lhe applicavaõ, tanto peyor lhes succedia, entenderao que a causa eraõ as raizes de quatro dentes podres; mas porque tirandose os taes dentes, cresseraõ os inchaços com notavel excesso, perderaõ a esperança de curallo, de maneira que se despediraõ, depois de se terem fatigado muitos annos na pertençaõ da saude. Neste tempo fui chamado, & tive por moralmente certo, que a causa dos ditos inchaços naõ era o humor gallico, como se presumia ; mas que era a lympha grossa reprezada, & naõ circulada nas glandulas salivares & adenosas do pescoço, & que o verdadeiro remedio avia de ser adelgaçar a dita lympha, & humores, & fazellos circular; & para isso lhe dei remedios, que fossem volatilizantes, alcalicos, & absorbentes: & como as minhas pilulas antistrumaticas tenhaõ todas esstas virtudes, por isso lhas dei no discurso de tres messes, em dias alternados, em quantidade de quatro escropulos; & foy o effeito taõ feliz, que sarou radicalmente com grande credito meu, & admiraçaõ dos que em cinco annos naõ puderaõ dar hum passo na melhoria.

1. Na Observaçaõ antecedente disse que muitas doenças se naõ hão de curar, atandose os Medicos rigurosamente às indicações, que à primeira vista se lhes offerecerem; porque vemos cada dia doenças, que parecem proceder de causas mui alheyas da qualidade gallica, & não obstante isso, se não podem curar sem remedios especificos, & oppostos à dita qualidade. Pelo contrario digo que nem por isso se devem curar as enfermidades com medicamentos antivenereos, quando virmos que resistem aos outros remedios, por -

Observaçaõ VII.

porque bem podem naõ obedecer aos mais efficazes, sem que procedaõ de qualidade gallica. E porque esta doutrina naõ pareça livremente dita, quero referir hum caso, que observei em 12. de Mayo de 1678.

2. Cinco annos avia que Dom Francisco de Castro tinha na garganta huns tumores duros, & seirrhosos; & porque os Medicos, de quem o dito senhor fiou a cura da sua doença, entenderaõ que semelhantes tumores eraõ gallicos, assentaraõ uniformemente que tomasse remedios especificos contra a dita qualidade, & para isso (depois de o sangrarem nos pes as vezes que foraõ necessarias) lhe receitaraõ cinco xaropes para cozer , & adelgaçar os humores viscosos, & glaciaes, preparando - os na fórma seguinte. Tomem de passas sem grainha duas onças, de folhas de avenca, de escabriola, & de ouregãos, de cada cousa destas huma maõ cheya, tudo se coza em panela de barro com fogo lento em agua bastante para seis xaropes, & coandose este cozimento, ajuntaraõ a cada cinco onças delle onça, & meya de oximel simplez; & depois que os humores estiveraõ preparados nesta fórma, lhe deraõ logo huma purga feita do sobredito cozimento, desatando nelle duas onças de xarope magistral pro morbo, chamado vulgarmente xarope de Dom Fernando; usando, depois disto de seis apozemas feitas com avea, raizes de almeiraõ, salsa parrilha, & pao Guajaco; ajuntando a cada apozema duas onças de xarope pro morbo: deraõlhe finalmente, cinco dias alternados, a conserva Turquesca em quantidade de duas onças cada dia; & sem embargo que com todos estes remedios purgou copiosamente, nem por isso sentio melhoria. Adimiraraõse os Medicos de que naõ aliviasse com remedios tao decantados, & por isso fizeraõ nova conferencia, na qual resolveraõ que tomasse suores de estufa, & executasse a dita resolução; mas nem tomando quarenta, diminuiraõ os caroços. Admiràraõse segunda vez os Medicos, porque se tinhaõ persuadido que os ditos inchaços naõ podiaõ proceder senaõ de qualidade gallica, E ma -

Observações Medicas Doutrinaes.

mayormente em hum figaldo solteiro, moço, rico posto em sua liberdade, & sem pay a quem respeitasse; circunstancias capazes para se presumir teria militado debaixo das bandeiras de Venus, & colhido os frutos, com que ella costuma hospedar aos seus affeiçoados. Mas como as esperanças dos homens sejaõ muitas vezes erradas, & enganosas, naõ era novidade que as cousas succedessem contra as razonaveis presumpções de todos; & ainda que no largo, & espaçoso campo da Medicina ajaõ muitos remedios, que obraõ por sympathias, & antipathias occultas, (I.) naõ quizeraõ os Medicos assistentes ussar delles, nem largar o leme na tormenta, pois tinhaõ tomado posse delle na bonança; & e assim fizeraõ nova conferencia, em que se resolveo que se applicassem os remedios mais valentões, & e efficazes que ha na Medicina contra a qualidade venerea, como saõ o Turbith mineral, o calomelanos, o mercurio precipitado doce, as unturas de azougue, & os fumos do cinabrio. Tudo se executou á risca, mas tudo sem proveito.

3. Daqui appellàraõ os Medicos para o ultimo subterfugio, dizendo que a causa porque o doente naõ melhorava (depois de tão efficazes, & bem premetados remedios) eraõ humas raizes de dentes podres, que se queria sarar se resolvesse a tirallas, porque se assim o naõ fizesse, naõ teria saude em quanto vivesse. Obedeceo logo o illustrissimo senhor a esste conselho (2.) porque mayor dor lhe causava o verse falto de saude, & de successaõ, do que as que avia de padecer no arrancar dos dentes. Mas (oh desgraça grande !) depois de sofrer o enfadoso enjoamento, & fedor das unturas, a importuna salivaçaõ dos mercurios, as penosissimas fumaças de cinabrio, & o insoportavel martyrio de lhe arrancarem quatro dentes, cresceraõ os caroços com excesso; porque os remedios, que fazem grandes dores, àlem de que assanhaõ, & irritaõ as partes dolorosas, attrahem para ellas mais humores.

4. Nem he para admirar que as unturas de azougue

Observaçaõ VII.

gue fizessem mayor damno; porque, como todos sabem, os medicamentos de azougue, por mais bem preparados, & correctos que sejaõ, sempre escandalizaõ a garganta, a boca, & o pescoço; porque abrem as veas, & glandulas salivaes, & movem para a boca, lingua, & garganta os humores lymphaticos, que fahem por salivaçaõ, & baba. E como por sentença de Galeno (3.) seja prohibido levar os humores para a parte offendida, porque a offendem mais; bem se deixa ver que os ditos tumores se aviaõ de augmentar com o humor, que para a garganta correo. Nem tambem he para admirar que os suores de salsa naõ aproveitassem; porque as medicinas sudorificas evacuaõ sómente os humores tenues, & serosos, & ficando a parte mais grossa, & viscosa dentro no corpo, consequentemente ficavaõ os humores mais estagnados, & menos fluidos, & circulaveis; & por isso necessariamente aviaõ os caroços de ficar mais duros, & difficultosos de vencer. Em tão grande teima, & resistencia do mal appellarão para o uso das fontes, & para huns riscos do oleo de ouro applicados sobre os caroços; ordenando que bebesse agua cozida com duas oitavas de flor de verbasco, ou de raizes de vincetoxico. Tudo se fez; mas tudo desprezou a natureza como se fosse de pedra. Envergonhados os Medicos vendo frustradas as suas diligencias, aconselharaõ ao doente que fosse para outra terra, (4.) esperando vencer com a melhoria dos ares, o que com tantos remedios naõ puderaõ conseguir. Avendo pois de buscar novos ares, se deliberou ir para França, livrando neles, & na bençaõ milagrosa do grande Monarca Luis XIV todas as esperanças de sua saude. Neste tempo disseraõ ao illustrissimo enfermo que eu tinha curado semelhantes doenças a muitas pessoas depois de deixadas ao desemparo. Animaraõ tanto estas noticias ao desconfiado senhor, que me mandou chamar em 15. de Abril de 1678 pedindome lhe quizesse valer em tão grande aperto. Confesso ingenuamente que esta supplica me causou taõ grande compaixaõ, co - E 2 mo

Observações Medicas Doutrinaes.

mo temor, vendo que os outros Medicos mais doutos, & experimentados naufragaraõ em taõ desfeita tempestade; porèm como naõ pudesse escusarme a petiçaõ taõ justa, lhe prometti fazer quanto pudesse por curallo de tão penosa enfermidade; & sem embargo que todos os remedios, que os Doutores lhe applicaraõ, fossem ordenados com grande razão, & fundamento eu entendia certamente pela rebeldia, & desprezo que a doença fez das diligencias da Arte, que se naõ avia de attribuir a causa gallica, pois nem diminuhio, nem aliviou com os remedios mais efficazes, que contra a tal qualidade se lhe fizeraõ; mas que só se avia de attribuir à lympha engrossada, viscosa, & reteuda nas glandulas salivaes, & partes adenosas do pescoço, ou à circulaõ do sangue impedida, & parada, porque qualquer destas causas basta para fazer alporcas rebeldissimas; & para curar estas, me vieraõ à memoria muitos remedios amuletos, & especificos, que abraõ por virtudes occultas, como saõ as folhas verdes dos pepinos de saõ Gregorio levemente pizadas, & quentes, trazidas sobre os caroços por tempo de tres meses, & renovadas cada dous dias: as folhas verdes de marcavala trazidas outros tres meses, & renovadas cada dous dias: a raiz do orgevaõ trazida ao pescoço, & renovada cada oito dias: o emplastro feito de gomma Ammoniaca, & pos de raiz de Norça: a fomentaçaõ do oleo dos lagartos: as flores do verbasco trazidas hum anno ao pescoço dentro de huã bolsa de linho delgado: espinhaço da cobra do Brasil, chamada Zuche: a maõ de hum defunto, que morresse de morte subita, posta huma hora sobre os caroços. Finalmente occorreraõme outros muitos remedios de iguaes virtudes; mas de nenhum quiz usar, por mais que a experiencia de muitas pessoas os qualifique por bons; porque certa, & constantemente tinha entendido que os sobreditos tumores, & alporcas naõ procediaõ de outra causa mais, que da lympha grossa, viscosa, & reteuda nas glandulas salivaes, & partes adenosas da garganta, como acima disse, cujo

OBsERVAÇAM VII

verdadeiro remedio devem ser os dissolventes, & volatilizantes, & todos aquelles, que constarem de muito sal volatil, & forem absorventes antacidos; paraque os volatilizātes dissolvaõ a grossura da lympha, & os absorventes tomem em si os acidos da lympha, que foraõ os que engrossaraõ, & coalharaõ, & deste modo attenuada, & descoalhada possa tornar a circularse: & como estas virtudes se achem juntas nas minhas pilulas Antistrumaticas, lhas dei, depois de bem purgado, por espaço de tres meses em dias alternados, em quantidade de quatro escropulos; & foy o sucesso taõ feliz, que só com este remedio, & com beber os ditos meses agua cozida com meya onça de raiz de vincetoxico, (em falta do vincetoxico, que he erva estrangeira, pode fervir com igual virtude a agua cozida com huma maõ chea de flor de verbasco) cobrou taõ perfeita saude, que gerou alguns filhos, de que a sua illustrissima casa muito necessitava, & viveo depois disso vinte annos com grande credito do meu nome, & admiraçaõ dos Medicos, que em cinco annos naõ puderaõ dar hum passo na melhoria.

5. se ouvesse de nomear aqui os doentes, a quem curei de alporcas com as minhas pilulas Antistrumaticas, & agua cozida com vincetoxico, ou com a flor do verbasco, seria pouco todo o papel; bastaõ, para abono da verdade, o illustrissimo senhor Dom Francisco de Castro, Almeirante de Portugal, que as teve cinco annos; o Padre Frey Pedro do Cenaculo, Religioso de saõ Francisco da Cidade, que as padeceo sete annos; o Padre Antonio Gorjaõ da Mota, morador em Peniche, que as teve seis annos; a mulher de Manoel Fernandez o Diamante, morador em santarem, que as teve cinco annos em hum peyto; hum alfayate da Azinhaga, chamado Antonio Lopes, que as teve onze annos; hum Clerigo de Bucellas, chamado Domingos Jorge, que as teve quatro annos; hum esscravo de Golfo amarello, morador ao Corpo santo, que as teve oito annos; & mil outros que naõ refiro por escusar enfado. E 3 Duas

Observações Medicas Doutrinaes

6. Duas advertencias importantissimas quero fazer aos Medicos, que ouverem de curar alporcas. A primeira he, que esta doença a se naõ cura a toda a hora, nem em todo o tempo ; mas deve começarse hum dia depois da lua cheya, continuando com os remedio successivamente atè o dia da lua nova, & entaõ devem parar com a cura atè o dia da lua cheya, & dahi tornar a continuar atè chegar a lua nova, & chegando esta, tornar a parar atè à lua cheya, procedendo da mesma fórma até que o doente esteja saõ

7. A segunda advertencia he, que em quanto durar a doença das alporcas, naõ comaõ os taes enfermos legumes, ervas, peixe, fruta, alhos, cebolas, manteiga, nem paõ quente, ou carne de porco, porque semelhantes alimentos saõ muito nocivos para a dita doença, & augmentaõ a causa dela. A agua para beberem, em quanto durar a cura, seja levemente cozida com meya onça de raiz de vincetoxico, ou em falta deste, com hum punhado de flores de verbasco, ou com meya onça de raizes de gilbarbeira. Digo que haõ de ser cozidas levemente ; porque a virtude destes remedios consiste nas partes superficiaes, & voláteis, & sese cozem muito, exhalaõ, & evaporaõ toda a virtude, & não aproveitaõ. Eu digo que o verdadeiro modo de cozer os remedios, que tem a virtude superficial, & volatil, deve ser da mesma sorte, que fazemos o Chà, deitamolo na agua fervendo, & o tiramos logo logo do lume, e o abafamos, porque de outra sorte naõ tem virtude

OBsERVAÇAM VIII.

De humas intercadencias de pulsos, que sobreviverão ao Reverendissimo P. Fr. Antonio da Fonseca, Provincial da Ordem da santissima Trindade, em hum dia, que fez oitenta & quatro cursos com huma purga que tomou: & vendo o Medico aquelle sinal, desconfiou da vida do doente de tal sorte, que o mandou ungir, entendendo que morria. Nesta perturbaçaõ de animo fui chamado, & conhecendo eu que as ditas intercadencias procediaõ ou da muita purgaçaõ que tinha feito, ou dos muitos flatos, que no doente reynavaõ, ou da grandissima idade que jà tinha, o animei dizendolhe que em taes circunstancias naõ eraõ mortaes as intercadencias, como lhe mostraria o tempo, porque antes de quatro dias estaria saõ. E succedeo assim; porque confortandolhe o estomago com pombos escalados vivos, polvorizados com ambar, canela, & dandolhe de quatro em quatro horas duas gemas de ovos frescos batidas com tres onças de bom vinho, & marmelada, se desvanecèraõ as intercadencias, & ficou bom, com grande credito de Arte, & gosto meu.

I. Nem sempre os Medicos devem desprezar os achaques, por lhes parecerem leves, porque muitas vezes encobrem dentro de si grandes perigos: nem devem temer sempre os symptomas, por lhes parecerem medonhos, porque muitas vezes naõ tem risco.

2. Em confirmação desta verdade me seja licito referir dous exemplos. O primeiro he, quando, os doentes se queixaõ de que naõ podem dormir, ou que tem dores de cabeça. Estes symptomas parecem de taõ pouco momento, que os Medicos naõ fazem caso delles; comtudo saõ algumas vezes taõ cheyos de perigo, que os enfermos cahem brevemente em frenesis, ou em doenças mortaes, porque no principio se desprezàrão; o que naõ succederia, se quando pareciaõ leves, se puzesse logo grande cuidado em vencellos. O segundo exemplo he, quando os doentes tem intercadencias nos pulsos, porque em avendo estas, logo os enfermos, & os enfermeiros se atemorizão com notavel excesso, & tanto mais cresce o temor, quanto he mais notorio que os doentes, a quem os pulsos se interrompem, estaõ perto da morte, ou tem algum tuberculo no bofe; sinal que tambem he funesto, como pela experiencia de muitos annos tenho observado. Porèm como muitas pessoas assim no tempo da doença, como no estado da saude tem intercadencias nos pulsos, sem por isso morrerem; quero advertir aos Medicos principiantes, & faltos de experiencia, que nem sempre que virem este sinal, se atemorizem, porque as taes intercadencias saõ muitas vezes naturaes, & aindaque o naõ sejaõ, nem por isso tem sempre risco, porque muitas vezes procedem da opressaõ gravativa das forças pelo grande enchimento das veas, ou pela grande fraqueza contrahida das demasiadas evacuações, ou da copia de flatos; principalmente nas pessoas velhas, como observei no caso presente: porque adoecendo este Religioso em vinte & quatro de septembro de 1690. começou a sentir hum peso nauseativo no estomago, & sendo chamados os Medicos do Convento, lhe receitàraõ huma purga lenitiva, cujo effeito foy taõ copioso, que no espaço de doze horas fez mais de oitenta cursos, & por causa desta taõ repentina, & copiosa evacuaçaõ se alterou de sorte a economia de todo corpo, que corrèraõ flatos em muita quantidade ao coração de maneira, que a tempos o opprimirão; & vendo o Medico mais moço (quando tomou o pulso) que as arterias faltavaõ na acçaõ de pulsar, disse ao doente que morria, & com toda a pressa dispuzesse as cousas que pertenciaõ à sua alma. Prostrou esta nova ao pobre Religioso de maneira, que tomou logo logo todos sacramentos: neste comenos entrei a visitallo, & achei todos os Religiosos desconsolados, & inquietos, & ao doente muito desanimado: pegueilhe nos pulsos, & acheilhos intercadentes; humas vezes faltavaõ depois da terceira pulsaçaõ, outras depois da sexta, & outras depois da oitava. desta variedade de faltas entendi que humas intercadencias, que naõ guardavaõ ordem, nem certeza, naõ procediaõ de tuberculo, mas da multidaõ de flatos, que se levantàraõ por causa da grande evacuaçaõ, & agitaçaõ dos humores, que naquelle dia tivera; & acabei de certificarme que isto era assim, porque soube que era muito queixoso de ventosidades; mayormente lembrandome que naõ lhe tinha achado intercadencia algüa nas visitas, que lhe tinha feito antes de lhe dar a purga ; & assim disse ao enfermo, & aos assistentes, que naõ desconfiassem, nem lhes fizesse medo o mào prognostico, & sentença de morte que o Medico lhe tinha dado, porque como era muito moço, & falto de experiencias, lhe naõ teria chegado à maõ semelhante caso, & por isso naõ era para condënar que desconfiasse, vendo as intercadencias; porque teria ouvido dizer que eraõ mortaes, como na realidade o costumaõ ser, quando succedem em homem forte, robusto, & mancebo, & sem aver procedido de alguma excessiva evacuaçaõ; porque em semelhantes pessoas, & em taes circunstancias grande ha de ser a causa, & de infallivel perigo, que puzer a faculdade vital em taõ miseravel estado, que naõ possa pulsar senaõ com interrupçoës, & intercadencias; mas se as ditas intercadencias apparecem em homens velhos, fracos, flatuosos, ou nos que tiverem muitas camaras, ou outras profusissimas evacuações naturaes, ou artificiosas, nos naõ devem meter medo, porque nestes termos basta qualquer leve causa, para que os pulsos faltem, & se interrompaõ.

3. Nem serà licito atemorizarnos, se as intercadencias dos pulsos succederem em homens glotões, & grandes comedores, ou bebedores, porque nestes.

àlem da suffocaçaõ, & carga, q̃ nelles faz o muito comer, & beber, com a mesma facilidade com que se comprimem, & desapparecem os pulsos, com a mesma se tornaõ a alargar, & apparecer. Nem tambem se deve presumir mal, se succederem em pessoas, que tem cicatrizes, ou tumores duros nos braços; porque assim os tumores, com as feridas, comprimindo as arterias, lhes impedem o uso de pulsar.

4. Como pois o nosso enfermo fosse toda a vida sugeito a ventosidades, & tivesse oitenta annos, & a tudo isto se ajuntassem oitenta & quatro cursos, naõ avia que admirar que por estas causas se interrompessem os pulsos de maneira, que o Medico moderno , & falto de experiencia, attonito com a novidade do caso o. desenganasse como a moribundo: porèm eu, que como soldado velho tinha já pendurado muitas vezes as armas em sinal de semelhantes, & mayores vitorias, sorrindome hum pouco, disse para os Religiosos circunstantes: Antes de quatro dias irà o nosso Reverendissimo Padre dizer Missa; porque conheço que as suas intercadencias naõ tem perigo, pois todas procedem de flatos levantados por causa da excessiva evacuação, que hoje teve; ao que tambem se ajunta a sua grande idade; & por isso quando Doutor meu companheiro vier à manhã visitar ao Padre Provincial, lhe fará muito differente prognostíco. E foy Deos servido que pondolhe no estomago hum emplastro de marmelada; biscouto, & ortelãa, tudo amassado com vinho tinto, & polvorizado com aromatico rosado, & dandolhe a beber caldo de perdiz com tres grãos de ambar, se desvanecèraõ os flatos, & as intercadencias, & no dia seguinte se achou com perfeita saude aquelle mesmo doente, que poucas horas antes esteve ungido, & sentenciado à morte.

5. semelhante caso a este observei em huma velha, moradora ao Arco dos espinhos em casa de Mathias Gonçalves Paz. Teve esta mulher hum accidente quasi syncopal, & por causa do dito accidente lhe sobreviveraõ humas intercadencias de pulsos, & conhecendo eu que tudo procedia dos espiritos exhaustados., lhe fiz tomar quatro horas, humas colheres de vinho generoso, em que mandei misturar,mis-turar> dous grãos de ambar, & o succo de dous corações de carneiro mal assados, e espremidos em huma prensa, com que se restituìo à vida estando quasi morta.

No dia em que Conde de Avintes tomou huma purga, com que evacuou copiosissimamente, o assaltàraõ humas intercadencias de pulsos, & perturbandose muito o dito Conde, lhe disse o Doutor Francisco da Fonseca Henriquez, que era o Medico assistente, que não tivesse medo, porque tudo lhe procedia de flatos, & que dentro de tres dias ficou bom.

6. Desta observaçaõ se deixa ver como debaixo dos symptomas mortaes, & formidaveis se achaõ muitas vezes doenças levissimas; & debaixo de symptomas levissimos se escondem muitas vezes doenças mortaes; & por esta razão nem os que parecem levissimos, se hão de desprezar muito, nem os que parecem perigosos, se haõ muito de temer.

7. Advirtaõ os leitores, que alguns homens ha, que em toda a vida, & na melhor saude tem intercadencias nos pulsos, como eu as vi muitas vezes no Eminentissimo senhor Cardeal de sousa, no Marquez de Arroches, seu irmaõ, & hum Religioso Paulista; aos quaes achei muitas vezes intercadencias, estando todos com perfeitissima saude. Outros homens vi que tem arterias taõ profundas, & taõ imperceptiveis, que he necessario tomarlhes o pulso nas arterias das fontes da cabeça, & dos peitos pès. Outros que naõ tem as arterias dos pulsos no lugar onde as tem todos os homens, mas nas costas das mãos. E paraque isto não pareça livremente dito, referirei o que me succedeo com o doutor domingos Barreiros. Achandose comigo em casa de Roque Monteiro Paym, deume elle o pulso, & perguntoume, o que avia de fazer para recobrar a saude, que lhe faltava: & como eu naõ achasse febre, nem sentisse pulsar as arterias, fiquei admirado, & julguei que elle de industria atàra fortemente o braço para impedir o movimento das arterias; porque se naõ podia esperar que hum homem moço, robusto, caluroso, hirsuto, & vivaz, naõ tivesse pulso, ( estando vivo;) mas antes se devia crer o tivesse mui grande, pois tinha grande respiração; & como esta, & o pulso guardem a mesma igualdade, sendo esta grande, grande devia tambem ser aquelle. Finalmente como naõ lhe achasse pulso no lugar aonde todos o costumaõ ter, presumi que a mesma natureza por travessura da faculdade formatrice puzera as arterias pulsantes na parte exterior dos pulsos: & naõ me enganei; porque na costa da mão tinha as arterias taõ fortes, & vigurosas, como se tivesse huma grande febre.

8. Perguntaraõ aqui os curiosos, porque causa em algumas pessoas (aindaque sejão muito robustas) se occultão as arterias dos pulsos de tal sorte, que nem apertandose muito com os dedos, as percebe o tacto mais subtil; & em outras, (ainda que sejão muito fracas) com qualquer leve compressaõ se achão

9. Respondo que o perceberemse as arterias difficultosamente em huns, & facilmente em outros, procede de cinco cousas. A primeira he a muita gordura do braço, que apertando a carne com o callo da ferida, não dà lugar a que as arterias se alarguem, & pulsem como convem. A terceira he a grande bebedice; porque como o vinho tem propriedade narcotica, & estupefactiva, (quando he muito) faz effeitos semelhantes aos do opio, adormecendo, & fazendo esquecer as faculdades, & movimentos naturaes A quarta he o grande enchimento do estomago, que tambem suffoca, & aperta as arterias do mesmo modo, que as aperta a excessiva gordura. Aquinta he algum affecto inflamatorio, obstrucção, ou fraqueza do coraçaõ, & arterias. E pelo contrario nos muito magros se percebem facilmente as arterias; porque como estejaõ na superficie da carne, se percebem com qualquer levissimo contacto da maõ.

OBsERVAÇAM IX

De huma lepra bastarda, que certa senhora padeceo quatro annos, tendo por causa os alimentos grosseiros que comia, & a vida sedentaria, & penitente em que estava, de que se seguio obstruiremse as veas, & faltaramlhe as purgações mensaes; & não achando os humores porta franca para se descarregarem, se espàlharão pela superficie do corpo, & o enchèrão de pustulas, & comichões tão insoportaveis, que se achou a doente obrigada a fazer mil remedios; & como nenhũs lhe aproveitassem, recorreo aos meus segredos especificos, & tomando-os muitos dias, cobrou perfeita saude.

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COm muita razaõ se queixa sentidamente Jaquino, (i.) dizendo que nos nossos tempos já se nao curaõ as grandes enfermidades, porque os Medicos de hoje usaõ sómente de remedios leves, & pouco continuados, & se alguma hora lançaõ maõ dos mais efficazes, naõ tem animo para repetillos muitas vezes, temendo que a frequencia delles seja prejudicial aos enfermos; jà se na segunda, ou terceira applicaçaõ de qualquer medicamento naõ vem a doença curada, ou muito diminuida, desprezaõ logo ao tal medicamento, por mais conveniente que seja, appellando para outros, sem se lembrarem que he conselho de Galeno, (2.) que todas as vezes, que os remedios se applicarem conforme pede a razaõ, & a doença, aindaque naõ obrem logo conforme o desejo, nem por isso se haõ de desprezar, nem appellar para outros; mayormente se a doença permanecer do mesmo modo que dantes era. Confesso que tenho grande lastima, & grande compaixaõ de algũs doentes, PAGINA 102

(3.) que podendo viver muitos annos, & conseguir a saude que pertendem, a naõ conseguem, porque largaõ os remedios convenientes, tanto que nos primeiros dias naõ tiraõ a enfermidade.

2. Porèm como neste tempo querem muitos enfermos ser curados com melindre, (4.) & tambem ajaõ alguns Medicos lisongeiros, que naõ consideraõ o que he mais conveniente à saude, mas o que he mais agradavel ao doente; daqui procede, que tanto que este repugna a tomar segunda vez a mesma medicina, logo se despreza, & deita fóra; de que resultaõ dous graves damnos dignos de serem chorados com lagrimas de sangue. O primeiro he; perder o doente a vida: O segundo he, ficar a Arte infamada, porque se despreza, & condemna como falida, & pobre de remedios, sendo fertilissima delles.

3. Mas oh ditosos enfermos, os que de tal forte obedeceis aos preceitos dos Medicos, como se fossem divinos ! E outra vez mais ditosos, os que para curarvos, alcançastes hum Medico douto, & taõ constante, que a nenhumas petições injustas se move; nem se dobra aos appetites dos soberanos, nem se ensurdece aos rogos dos humildes, mas pesa em igual balança o sayal, & a purpura, o cajado, & a coroa, mandando fazer com liberdade o que he melhor para a saude do enfermo, que fiou delle a sua vida ! pois costuma Deos favorecer aos intentos dos que desta maneira curaõ: Em confirmação do que aqui digo, me seja licito referir o seguinte caso, que observei em seis de Abril de 1670. na illustre senhora Dona Paula Pacheco.

4. Depois que esta senhora teve o estado de viuva, se entregou de forte aos jejuns, orações, penitencias, mortificações, silencio, & clausura; que mais parecia moradora do Ceo, que habitadora da terra; porèm, ou pelo continuo trabalho do espirito, ou pelo pouco exercicio do corpo, ou pela grossaria dos alimentos, de que (por mortificaçaõ) usava, ou pelas grandes penitencias que fazia, gèrou tantas cruezas

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, & humores tão grossos, que se obstruiraõ as veas uterinas, & por esta causa lhe faltàraõ as evacuações mensaes; & como hum erro he causa de outro erro, da falta desta costumada descarga crescerão, & tresbordaraõ os humores excrementicios de maneira, que obrigarão a natureza a deitallos para a superficie do corpo, aonde por estarem reprezados adquiriraõ muita salsugem, & mordicàraõ todas as partes cutaneas com tanto excesso, que sendo poucas as unhas das mãos para satisfazer à comichão, ainda era mais pouca a paciencia para a sofrer; porque podendo esta senhora soportar os jejuns, os cílicios, as disciplinas, as clausuras, os silencios, & outras penitencias, & mortificações, não lhe era possivel tolerar aquelle pruido, porque era taõ implacavel, que quasi a deseperava.

5. Como pois eu fosse chamado para curar esta doença, entendi que toda procedia dos acidos salinos exaltados, que misturados com o sangue, o coalhavão, & engrossavaõ do mesmo modo, que o vinagre coalha o leite, se o misturaõ com elle; & por esta razão coalhado, & engrossado o sangue, não podendo passar pelas veas, se retinha dentro no corpo, & fazia naõ só as obstrucções, mas as comichões; & que o seu remedio avião de ser os absorbentes alcalicos, porque retundidos, & dulcificados os acidos coagulantes, se adelgaçarião os humores, & se circulariaõ, & buscariaõ o verdadeiro caminho para sahirem do corpo, & logo se tirariaõ as obstrucções, & as comichões, & as mais queixas.

6. Comecei pois a cura, dando primeiro que tudo duas ajudas feitas de meyo quartilho de caldo de de frangão cozido com farelos lavados, ajuntandolhe seis onças de assucar mascavado, sem levar outra cousa; & para o seguinte dia ordenei quatro sangrias no braço: porque nas faltas antigas dos meses mandaõ gravissimos Doutores (5.) sangrar primeiro em cima, dando depois cinco, ou seis sangrias nos pès. Feita esta primeira diligencia, lhe receitei para beber agua

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cozida com avenca, & pimpinela, soltando em duas camadas della meya onça das minhas pilulas Alcalicas, que saõ o melhor absorbente, & dulcificante que tem a Medicina: (& nas terras onde não se acharem as ditas pilulas, podem servir, ainda que com virtude muito inferior; os olhos dos caranguejos preparados) paraque deste modo se fossem dulcificando os acidos congelantes, & consequentemente se fossem soltando, & circulando os humores, que por congelados, & reteudos pelos acidos, eraõ a causa das queixas que padecia. Tambem lhe receitei, para tomar em jejum, & ao sol posto, os oito xaropes seguintes. Tomais de cascas de raizes de salsa das hortas, de lingua de vaca, & de angelica, de cada cousa destas huma onça; de erva molarinha, luparos, avenca, & cerfolio, de cada cousa destas huma maõ cheya; de polypodio de carvalho bem machucado huma onça, tudo se coza (conforme os preceitos da Arte) em panela de barro com seis quartilhos de agua commua, até se gastar ametade; & neste cozimento coado mandei deitar de insulasaõ huma onça de folhas de seno de Lapata, (que he melhor que o de Tripoli, porque este he bravio, & faz dores no ventre, & passadas doze horas, se torne a coar o tal licor, & a cinco onças delle mandei ajuntar huma onça de xarope sapor Regis, & dous scropulos de cremores de tartaro verdadeiros; com estes xaropes naõ só se foraõ purgando suavemente os humores viscosos, & acido-salinos, mas foraõse juntamente abrindo as obstrucções; & o q mais he se forão excitando os rins, paraque fizessem bem o officio, que tem, de repurgar pela ourina a massa sanguinaria dos soros salgados, & picantes, que abundavaõ na doente; porque, como diz Poterio, (6.) pela froxidaõ, & debilidade, ou obstrucções, que os rins contrahem por varias causas, hũa das quaes saõ os alimentos grosseiros, terrestres, ou salgados, succede muitas vezes naõ poderem attrahir os soros, q estaõ misturados com o sangue, & ficando este impuro, & salgado, necessariamente ha de remear, & sahir para fóra à superfície

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do corpo, corroendoa, vellicandoa, & fazendo em humas pessoas comichões, em outras pustulas, ou lepras, & em outras hydropesias. Nem se admirem que eu mandasse tomar os sobreditos oito xaropes duas vezes no dia; porque tenho observado com a experiencia de muitos annos que as doenças antigas, & as que tem raizes mui profundas, ou estaõ em partes mui distantes, se não podem curar sem remedios mui efficazes, & repetidos, porque de outra forte, sendo os remedios leves, ou poucas vezes applicados, naõ chegão com virtude aos lugares enfermos aonde hão de servir, & conseguintemente se balda o trabalho, & não se consegue a saude. Não he opinião minha, he sentença de Galeno, (7.) o qual fallando com os Medicos, lhes diz assim: se alguma parte estiver doente em lugar muito distante, serà razaõ excogitar algum remedio, cuja virtude seja taõ efficaz, & permanente, que não se acabe antes de chegar ao lugar aonde ha de servir. E em outro lugar (8.) diz: Mais valentes, & efficazes remedios saõ necessarios para as doenças, que estão em partes profundas, que para as que estão na superficie do corpo. E em outra parte (9.) diz: Pela qual razaõ ou o medicamento seja daqueles, que se applicaõ por fora, ou daquelles que se tomao por dentro, lhe naõ avemos de considerar a virtude, que de presente tem, mas que virtude teraõ, quando chegarem ao lugar offendido; porque verdadeiramente o remedio, que passa por muitas partes antes que chegue àquella aonde ha de servir, perde totalmente na passagem a virtude, & efficacia, se desde o seu principio he fraco, & de pouca virtude.

7. Preparados que tive os humores com os xaropes mui repetidos, ordenei a purga seguinte. Tomem de xarope sobredito cinco onças, & nellas mandei infundir dous escropulos de agarico trociscado, & meya onça de catholicaõ atado em ligadura, & passadas seis horas, se coe tudo por manno tapado, & se ajuntem dous escropulos de cremores de tartaro verdadeiro, & se dè a beber ao enfermo; & passados dous

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dias, lhe fiz tomar a mesma purga, porque he mui propria para sete caso, & descansando tres dias, lhe fiz tomar, de cinco em cinco dias, as pilulas seguintes, que para alimpar o corpo de humores grossos, viscosos, & salinos, excedem a todos os remedios da Arte. Tomai de mercurio precipitado com oleo de enxofre campanado cinco grão, misturemse com o que bastar de confeiçaõ de Jacintos, & se forme huma pilula, que se tomarà na madrugada, & descansando cinco dias se tome outra prepara do mesmo modo, & se vaõ continuando, até que se tomem as ditas seis, & descansando entaõ seis dias, lhe ordene tomasse as duas apozemas seguintes. Tomai de passas sem grainha huma onça, de cascas de raizes de borragens, de salsa, de funcho, & de grama, de cada cousa destas tres oitavas, tudo de coza em panela de barro, com o que bastar de agua commua para duas apozemas, & neste cozimento se infundaõ de assucar rosado de Alexandria quatro onças, de folhas de sene de lapata quatro oitavas, de conserva de borragens onça & meya, & coandose tudo com forte expressaõ, ajuntei a cinco onças deste cozimento duas onças de xarope Rey, & huma oitava de cremor de tartaro; & com este remedio conheceo notavel melhoria. Finalmente para acabar de vencer huma doença taõ antiga, & huma comichaõ taõ rebelde, ordenei (como remedio precisamente necessario para abrir as veas) o uso do aço, que tomou quarenta dias, preparado sem vinagre, sem oleo de enxofre, & sem outros dissolventes azedos, nem corrosivos, mas preparado sómente com agua da fonte; porque a experiencia me tem ensinado, que os remedios, que se preparaõ com licores azedos, perdem a virtude antacida, & absorbente dos humores acres, & jà naõ ficaõ alcalicos vazios, porquanto estaõ cheyos dos dissolventes azedos com que se preparàraõ, & por esta razão naõ surtem os grandes effeitos, que delles se esperaõ. Pelo contrario os remedios, que se preparaõ sem menstruos azedos, conservaõ a virtude antacida, absorbente, & alcalica PÁGINA 107

, em que consiste todo o seu prestimo, que he chupar, & embeber em si os succos acidos corrosivos: & como o aço preparado sem cousas azedas seja hum dos melhores absorbentes, que tem a Medicina, por esta razão não quis usar delle preparado com os sobreditos azedos, para que ficando absorbente vazio tomasse em si a acrimonia dos humores, que nesta senhora redundavão, & os congelavaõ, & os naõ deixavaõ circular, & por esa razão reprezados, & engrossados os ditos humores, não só oppilavão as vias, mas pela demora adquiriraõ huma tal acrimonia, & salsugem, que causaraõ pustulas, coceiras, & comichões desesperadas, que só se tiraõ bem, descoalhando-os & só se descoalhão, tirandolhes o azedume.

Dei pois à sobredita senhora (quarenta dias) o aço preparado sem cousas corrosivas, dandolhe a beber, passadas tres horas, hum quartilho de soro de cabras; & com estes remedios se curou de taõ cruel enfermidade.

8. Bem hei não ha de faltar quem me condemne, por dar quarenta dias aço a huma doente, que se estava abrazando em Vesuvios de fogo, & comichaõ intoleravel; mas ainda que eu saiba que por defender a verdade ha de perigar o meu credito, eu quero antes perdello, que perder a alma, & assim hey de fazer sempre o que entender que he melhor para a vida dos enfermos, & digaõ os desaffeiçoados o que quizerem, porque contra a verdade, & a razão (10.) nenhũa força tem as settas da maledicencia, & seria eu reo de hum grande crime, se privasse ao mundo de huma noticia tão importante ao bem cõmum, mayormente quando me consta que ha Medicos taõ medrosos, que naõ ousaõ a dar mais que nove dias o aço ; o qual temor, & covardia naõ procede de outra cousa mais que de estarem atados às regras das velhas, que firmemente entendem naõ póde aver obbstrucção taõ pertinaz, que se naõ renda com nove dias de aço: comtudo como nas cousas humanas nenhuma aja taõ infallivel, & perpetua, que naõ tenha suas excepções; por isso

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(conforme a experiencia de muitos annos) conheço que naõ tem numero certo os dias, que se haõ de dar os remedios; mas o que tenho por certo he, que se devem continuar atè se vencer a doença, ou ate que os effeitos mostrem que naõ convem continuallos: naõ he só voto meu, he conselho de Tito Livio. (11.) 9. Esta verdade experimentei na sobredita enferma, a qual estava tão obstruida, que se usara sómente de tres xaropes, de huma purga, de tres apozemas, & de nove dias de aço, como he costume de alguns Medicos ordinarios, me cansaria de balde; porque como as obstrucções estivessem em partes mui distantes, & fossem taõ antigas, era impossivel vencellas em poucos dias, nem com remedios leves, mas com os activos, & muito continuados: (12.) & porque eu o fiz assim, por isso a doente cobrou saude perfeitissima, não obstante esta tida por incuravel; porque absorbidos os humores acidos pela virtude alcalica do aço, ficou o sangue mais fluido, & capaz de se poder continuar a circulaçaõ, & baixarem os meses copiosamente, por ter as vias abertas; & assim se tirou felizmente a comichaõ, & se vio restituida ao seu natural estado, & saude desejada.

10. Desta Observaçaõ aprendão os Medicos principiantes, que quando os remedios estiverem bem indicados da doença, aindaque logo não aproveitem, nem por isso os larguem, antes constantemente os continuem muito tempo, porque elles viraõ a fazer o que se pertende: assim o a conselha Galeno, (13.) & eu o faço sempre assim.

11. O mesmo quero se entenda do uso dos xaropes, das purgas, das apozemas, das tisanas, dos sudorificos, do aço, do leite, dos foros, dos banhos, das ajudas purgativas, & de ameijoada, das irrigações de leite, & de quaesquer outros medicamentos; porque he puerilidade, ou ignorancia crassa affirmar que os xaropes haõ de ser tres, as purgas huma, as apozemas quatro, as tiranas leis, & que o aço se ha de dar só nove dias; sendo certo que os medicamentos (como

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diz Galeno) nem como o pelo, nem com a medida, nem com o numero, ou com a penna se podem descrever. Nem imaginem os Medicos modernos, (que saõ os com quem fallo) que sou taõ presumido, que me atrevo a darlhes este conselho fundado na minha authoridade, porque só me estribo na de Galeno, & de outros gravissimos Doutores, que mandaõ continuar os remedios, atè se conseguir a saudade: assim o fiz purgando muitas vezes a alguns alporquentos: assim o fez Dioscorides (14.) dando todos os dias de hum anno huma oitava de pò de raiz de brionia para vencer huma gotta coral: assim o fazem hoje os Medicos da Corte, dando o leite de burras cinco, & seis meses aos que padecem rheumatismos, gottas arteticas, colicas pictonicas, parlesias espurias, hydropesias tympaniricas, & dores ictericas: & eu o dei, dous annos successivos, à Madre Marianna de Encarnaçaõ, Abbadessa do Convento do Calvario; mas por isso a curei de huma dureza feirrhosa, de que naõ avia esperança, porque no discurso de seis annos lhe naõ tinha aproveitado remedio algum. Assim o fiz, dando nove meses o dito leite ao Padre Mestre presentado Fr. Manoel Guilherme; mas por isso sarou das dores da gotta, que o apertavaõ mui repetidas vezes. Confesso que sempre tive por apocryfo, & errado aquelle methodo de curar, que manda dar quatro, ou cinco xaropes para preparar os humores. se pois os remedios devem continuarse atè que as enfermidades se vençaõ, naõ ha que admirar purgasse tantas vezes a esta doente, & lhe desse tantos dias aço; pois tantos foraõ necessarios para triunfar da enfermidade, & segurar a saude, que logrou trinta annos depois que lhe fiz esta cura. Por este mesmo estylo, & com grande felicidade curei outras obstrucções rebeldes ; dando quarenta dias aço à Madre Dona Francisca de sá Coutinho, Religiosa no Convento de santa Monica: & à mulher de hum entalhador, morador na rua da Oliveira. Duzentos banhos dei a hũa Religiosa do salvador, filha do

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Capitão Manoel Jorge, Procurador da Cidade: estava esta Religiosa taõ profundamente melancolica, & imaginava, que de dia, & de noite estava dizendo se naõ podia salvar, nem a misericordia de Deos, sendo infinita, lhe havia de perdoar; & com este excessivo numero de banhos cobrou a saude, que desejava: & tenho por certo, que se me contentasse com quarenta, ou cincoenta banhos, como alguns se contentaõ, ficaria melancolica, & maniaca, como estava dantes, nem conseguiria a boa saude, que hoje logra.

OBsERVAÇAM X

De bum continuo fluxo de sangue das almorreinas, que certo doente padeceo por causa de excessivo trabalho, & quentura; com que se enfraquecèraõ as officinas naturaes de maneira, que em lugar de gerarem sangue puro, & saudavel, geràraõ soros mordazes, & salgados, de que se seguiraõ grandes sedes, & huma inchaçaõ universal, anunciadora de de huma hydropesia incuravel.

Aindaque o exercicio, & trabalho moderados sejaõ as cousas mais proveitosas que ha para conservar a saude, & prolongar a vida, porque com hum, & com outro se sortificaõ os membros se vivifica o calor, se aperfeiçoa a nutricaõ, se volatilizaõ os espiritos, se circula o sangue, se dissipaõ os vapores, se abrem os póros, se repurgaõ as fuligens, & se conseguem tantas utilidades, que so se conhecem pelos damnos que faz a falta delle, como diz Ovidio; (1.) & nòs os vemos nos presos, que por lhes faltar o exercicio, perdem muito as cores, outros inchaõ, outros se fazem hydropicos: o mesmo observamos na malicia, & a falta de sabor nas carnes dos animaes que se naõ exercitaõ ; porèm he de advertir, que se o exercicio, & o trabalho saõ grandes, ou intempestivos, taõ longe estaõ de ser convenientes para a vida, & saude, que antes com elles se enfraquecem os espiritos, se exaspera o calor, se emagrecem as carnes, se relaxaõ os nervos, se envelhece o corpo, & succedem mil damnos outros, a que a Medicina naõ pòde dar remedio, como pela seguinte Observaçaõ farei manifesto.

O reverendo Padre Fr. Patricio de saõ Paulo Religioso Dominicano Hybernio, logrou muitos annos perfeitissima saude; mas andando o tempo, ou pelo muito trabalho, & exercicio que teve, ou pelos grandes cuidados, com que perpetuamente vivia, cahio em huma tal excandedescencia do figado, & entranhas, que em lugar de gerarem sangue louvavel, & perfeito, geravão humores acres, corrosivos, & fedorosos; & como estes não eraõ capazes para as partes se sustentarem com elles, os arrojou a provida natureza (como inuteis, & feculentos) para as partes inferiores, descarregando-os nas veas hemorrhoidaes; & como estas de sua natureza costumaõ estar cheyas de sangue adulto, negro, & crasso, como diz Fernelio (2.) naõ foy necessario muito, para que com a chegada da materia pungente, que de novo se misturou com elle, se assanhasse o que alli estava de tal modo, que em brevissimos dias, abertas as bocas das almorreimas, ouvesse hum copiosissimo fluxo dellas, & desta continuada efusaõ de sangue se resfriàraõ, & debilitàraõ o figado, & officinas naturaes de maneira, que começou a incharlhe o corpo todo; principios infalliveis de hûa hydropesia, enfermidade verdadeiramente tanto para temer, como difficultosa de curar, mayormente por sobrevir a hua doença prolongada, & a hum homem jà fraco, & falto de espiritos.

Porèm como seja obrigaçaõ de quem he humano compadecerse das miserias humanas, & naõ aja acçaõ tão generosa, como he amparar os perseguidos, confortar aos desmayados, & dar saude aos enfermos; pois, como diz Cicero, (3.) para isso nascemos, & naõ para nòs sòs somos creados, fiz quanto foy possivel por defender ao sobredito enfermos das mãos da morte, que o ameaçava.

A primeira, & principal indicação que tomei para o curar, foy purgar os humores serosos, & pungentes, que com a sua acrinomia, & quentura irritavão o fluxo; para isso lhe fiz tomar tres onças de agua benedicta vigorada, porque me lembrou ter lido em Galeno, (+.) & em outros graves Authores, que nas dores, ou fluxos das almorreimas, nos priapismos, nas dores dos rins, & da bexiga, nas colicas nephriticas, nas suppressões da ourina & em todas as doenças das partes pudendas, naõ avia remedio mais efficaz, & conveniente, que os vomitorias repetidas vezes tomados, por quanto nestas emfermidades convem muito revellir, & divertir od humores para a parte contraria: & como não aja remedio, que taõ prompta, & fielmente faã este effeito como a sobredita agua, por isso neste caso, & nos referidos costumo usar sempre della, dandoa duas, & tres vezes em dias alternados. Nem me enganou a esperança; porque depois de tomar tres vezes o sobredito vomitorio, reconheceo notavel melhoria, & para o confirmar nella, çhe fiz tomar, tres dias alternados, os seguintes xaropes, que para evacuar brandamente os soros mordazes, que saõ os que abrem o caminho aos humores, que cahem nas almorreimas, saõ excelentissimos, & se preparaõ do modo seguinte. Tomai tres oitavas de cascas de myrobalanos citrinos, & huma oitava de ruibarbo, tudo se machuque, & se deite de unfusaõ em huma canada de agua de tanchagem quente, & passadas dozes horas, se deite fòra a dita agua, & fazendo entaõ hum cozimento fresco para os tres xaropes, deite nelle os taes myrobaçanos, & ruibarbo, dandolhe hûa leve fervura, &coandose com forte expressaõ, mandei ajuntar a cada quatro onças deste cozimento duas onças de xarope das nossas rosas, & depois que com os taes xaropes, & vomitorios se diminuiraõ os soros mordazes, tratei de divertir, & dirivar o restante delles para as vias da ourina, esperando que deste modo desafogaria as almorreimas, & não correriaõ mais humores a ellas;& para isso, depois de descansar tres dias, lhe dei os seguintes pòs em cinco dias successivos. Tomai de raiz de soldanela huma onça, de ruibarbo escolhido dous escropulos, de espicanardo meyo escropulo, tudo junto se faça em pò, & se divida em cinco partes iguaes, misturando cada parte com cinco onças de agua cozida com cerfolio, ou com huma onça de raiz de rilhaboy, ou quatro onças de vinhos do Rim, ou vinho de enforcado, & se dè ao doente em jejum.

No entretanto que se fazia este remedio, ordenei que muitas vezes no dia lavasse as almorreimas com agua cozida com folhas de congorça, que nesete achaque tem admiravel virtude, & que estando ainda a parte molhada, lhe deitassem por cima os meus pòs das almorreimas, ou as untassem com o meu celebre lenimento, que por ser hum dos mayores segredos, que eu sei fazer, por isso o tenho comigo, & o naõ largo a boticario algum, para deste modo tirar a occasiaõ de que o adulterem, & vendão com o nome de que he meu, como vendem o cordeal, & os trociscos de Fiovaranto, & outros segredos, que nem a meu proprio filho tenho revelado.

Finalmente mandei que todas as noites lhe fizessem huma fomentaçaõ sobre as costas, & sobre o lugar dos rins com o seguintes ungento. Tomai de polpa de canafistula, tirada de fresco, quatro onças, de assucas de chumbo huma onça, de unguento rosado tres onças, tudo se mistyure para fazer a foentaçaõ. Também lhe encomendei que fizesse muito por andar sempre facil na camara. Por quanto as fezesduras obrigaçaõ a fazer grandes forças para se ve deitarem fóra, & de taes forças procedem as almorreimas, & os fluxos dellas, como acontece nas mulheres difficultosas em parir, porque pelas grandes forças que fazem para lançar a criança, se enchem de almorreimas. Para acudir pois à dureza do ventre que também se queixava, & que costuma ser huma das principaes causas de aver almorreimas, lhe mandei preparar a seguinte conserva, para tomar huma vez em cada semana, na primeira mesa, em quantidade de huma onça. Tomai de uvas passadas, tirada a grainha, meyo arratel, de polpa de canafistula fresca meyo arratel, de cremores de tartaro verdadeiro tres onças, de erva doce em pò grosso duas oitavas & meya, tudo se misture, & com assucar se faça electuario, que se guardarà em panela vidrada bem cuberta, para se usar quando for tempo. E com esta conserva se facilitou a camara de forte, que naõ necessitou de fazer força para cursar; e consequentemente se livrou de huma enfermidade taõ enfadonha, & penosa. Tambem aconselhei ao sobredito enfermo, que por muitos meses bebesse agua cozida do modo seguinte. Em dez quartilhos de agua commua mandei ajuntar duas oitavas de erva poligono, (chamada chamada por outro nome centinodia, ou erva andorinha,) & dandolhe huma fervura por hum quarto de hora, a mandei coar depois de estar fria, & entaõ lhe mandei ajuntar duas oitavas das minhas pilulas antifebriles, que se acharaõ em minha casa, & della se levaõ para todo o Reyno, & suas Conquistas; porque conservaõ a sua virtude muitos annos: a qual agua por razão das ditas pilulas tem huma propriedade maravilhosa, que absorbe, & embebe em si toda a acrimonia dos humores, que saõ os que fazem as dores, abrem as vias, & provocão os fluxos. Mandeilhe ultimamente que trouxesse, por tempo de hum annno, nas algibeiras meya duzia de bisnagas, as quaes, por certa virtude occulta, curaõ & defecaõ as almorreimas, como me consta por innumeraveis casos, que tenho visto em pessoas, que nomearei, se for necessario para confirmaçaõ da minha verdade. Finalmente foraõ todos os remedios, que appliquei ao sobredito Religioso, taõ felizmente succedidos, que sarou com admiraçaõ dos que o tinhaõ visto em taõ perigoso estado.

Duas cousas peço aos senhores Medicos leitores. A primeira, que queiraõ julgar com animo desapaixonado o que aqui escrevo, porque naõ o faço por vaidade ou, mas por zelo do bem commum. A segunda, que naõ se envergonhem de aprender dos outros o que naõ souberem, porque (fóra de Deos) ninguem tem sabedoria infinita: nem se desprezem de ensinar o que tiverem aprendido, seguindo deste modo o conselho de saõ Basilio, (5.) que dizia: aprendei sem pejo, ensinai vem inveja, & naõ occulteu o que de outrem tiveres aprendido.

OBsERVAÇAM XI.

De huma excessiva dor, ardor de ourina, que certo enfermo padecia tres dias cada mes desde a idade de seis annos atè a de dezoito, sem que a diligencia dos Medicos, nem o regimento do doente lhe aproveitassem; atè que apellando para os remedios Cbymicos, cobrou a saude que desejava.

Manoel dias Loureiro, morador na Tanoeria, desde a idade de seis annos começou a padecer dores de ourina, em certos dias de cada mes, tão crueis, que o chegavaõ às portas da morte. Para curar a este menino se chamàraõ os Medicos de mayor fama: examinàraõ elles com curiosa indagaçaõ qual seria a causa de durarem só tres dias as taes dores, ficando todo o mais tempo do mes saõ, & livre dellas: & depois de huma larga conferencia, & concordarem todos no que aviaõ de fazer, começàraõ mes, tornou a padecer as mesmas dores, Chamaraõse novamente os Medicos, & applicandolhe elles differentes remedios, nenhum fruto experimentaraõ, porque tornando a vir o seguinte mes, o assaleàraõ

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Observações Medicas Doutrinaes.

as mesmas queixas com tanta crueldade como de antes. Fatigado o menino assim pela violencia das dores, como pela multidaõ dos remedios: & desconfiados os Medicos pela resistencia do mal, se despediraõ, & o deixàraõ entregue ao bom regimento, esperando que com este, & com os mayores annos melhorasse. Observou pontualmente o regimento que lhe mandàraõ; mas nem por isso deixou de padecer, nos très dias de cada mes, as dores com a mesma tyrannia: & como visse, que nenhum fruto colhera dos muitos remedios, que se lhe fizeraõ, se resolveo a ir passando atè chegar a dezoito annos; & vendo que nem a mayor idade, nem a rigorosa dieta lhe tinhaõ aproveitado, me chamou, por ter ouvido dizer que eu sabia preparar alguns remedios muito singulares alcançados por força do meu estudo, & curiosidade; & pondo no meu conselho as esperanças da sua vida, me disse as seguintes palavras: suave me feria o morrer, se ao menos soubesse donde procedem taõ deshumanas dores, que me assaltaõ tres dias cada mes, deixandome livre todo o mais tempo: se me dereis a razão destes assaltos, (aindaque me naõ livreis de taõ penosa enfermidade ) farei de vòs taõ grande estimaçaõ, que vos respeitarei como a hum Oraculo, & Hippocrates redivivo.

Para dar solução a esta pergunta recorri a doutrina de Galeno, (r.) o qual o livro segundo das differenças das febres, attribue a causa destas repetições affim à parte que manda, como à parte que recebe; porque he acçaõ natural, que toda a parte forte deita fóra de si, & descarrega na que he mais fraca o que a maltrata; (2.) porque succede nas partes do nosso corpo, o que costuma succeder em huma mal governada Republica, na qual os poderosos avexaõ aos que menos podem, & estes opprimem aos mais humildes, & assim vaõ proseguindo com as vexações, atè que chegaõ às pessoas mais infimas, & desemparadas, as quaes como naõ tenhaõ forças, nem valor para resistir, nem defenderse do mal que lhes fazem, nem finalmente tenhaõ jà outra parte mais fraca para onde

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Observação XI

arrojem o damno, que lhes fizeraõ, necessariamente haõ de sofrer o mal, sem o poderem fazer a outrem: da mesma forte as partes mais nobres do nosso corpo descarregaõ todos os humores nocivos sobre as partes menos nobres, & estas os arrojaõ para outras mais inferiores, & estas os lançaõ em outras mais infimas, atè que de todo sahem fòra do corpo, ou se encasaõ, & fazem assento em alguma parte vilissima. Isto observamos mais ordinariamente, quando a parte que padece, (àlem de ser fraca, & mais debil que as outras) he de sua natureza destinada para receber os excrementos, como he a bexiga para receber os soros, & os deitar fòra: jà se com esses soros se mistura alguma acrimonia maligna por vicio do corpo, ou do figado, ou dos rins, necessariamente os ha de receber a mesma bexiga, & indo de dia em dia crescendo, & augmentandose, chegaõ a tanta copia, & mordacidade, que offendem a mesma bexiga, causando nella ardores, & picadas, que perseveraõ com mayor crueldade desde o tempo em que começaõ de ourinar, até que a ourina acaba de sair. E se alguem me perguntar a razão porque na bexiga se ajunta tanta copia de ourina, & tão acre, que perturba a natureza, & a obriga a ourinar tam repetidas vezes: responderei que isto procede de huma fraqueza, que a bexiga adquirio lenta, & sucoessivamente por causa de alguma materia, que dentro reside; & daqui vem que debilitada a bexiga não pòde converter o proprio alimento em substancia louvavel, & por esta razão ella mesma se negocea a mayor, & mais lamentavel ruina; concorrendo tambem para isto huma disposiçaõ semelhante àquella qualidade, que fica nas panelas, em que se cozeo algua iguaria deste, ou daquelle cheiro, ou sabor.

Naõ satisfez esta reposta ao desejo do enfermo, porque dizia elle, que se as dores, picadas, & ardores, que elle padecia em tres dias de cada mes, procedessem de mà discrasia, & debilidade, que a bexiga tinha contrahido lentamente, sempre perseverariaõ da mesma forte, pois a tal discrasia, & fraqueza perseverava

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Observações Medicas Doutrinaes.

sempre: porèm como eu padeço estas queixas só tres dias no mes, necessariamente hei de dizer que de outra causa procedem.

Da reposta, & argumento deste enfermo presumi que as taes dores, & ardores naõ procediaõ de pedra, nem de chaga da bexiga, como ordinariamente procedem; porque se procedessem de qualquer destas causas, perseverariaõ todos os dias igualmente, & com a mesma crueldade atormentariaõ ao enfermo, em quanto a pedra naõ saisse, ou a chaga se naõ curasse: àlen de que, se as dores procedessem de pedra, ou de chaga, sahiria a ourina mal cheirosa, taõ branca, & taõ crua, como a agua da fonte, & appareceria no fundo do ourinol hum polme arenoso, ou fabuloso, furfuraceo, ou huns fios peganhosos, & àlem destes sinaes teria o doente continuas erecções, ou alterações sensuaes, dores, & comichoes no membro, & no pentem, com continuados desejos de ourinar; finalmente precederia o aver alguma hora ourinando sangue; porèm como nenhum destes finaes se achassem no doente, necessariamente ouve de julgar que as taes dores procediaõ sómente de algumas areas, & materias, que pouco a pouco se hiaõ ajuntando, atè que adquiriraõ tal copia, & acrimonia, que fazia aquelles symptomas nos tres dias destinados, no quaes ( depois de passadas as dores) sahiaõ muitas areas, & materias grossas, de que se seguia aplacarem logo os ardores, & os mais symptomas sobreditos.

Conhecendo pois que as materias tartareas, & acido - salinas com a sua copia, & acrimonia eraõ a causa das sobreditas dores, & ardores, assentei comigo que o verdadeiro remedio era resolver o tartaro crasso, & pungitivo, fazendolhe tomar primeiro que tudo (quatro vezes em dias alternados) tres onças de agua benedicta bem vigorada; assim porque na opiniaõ de graves Authores, (3.) naõ ha remedio, que tanto aproveite em todos os achaques dos rins, & da bexiga; como paraque revellidos, & evacuados os humores

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Observaçaõ XI

por vomito, & curso, ficasse o corpo mais aliviado, & as vias mais dispostas para lhe dar as seguintes pilulas, que tem notavel efficacia para evacuar as materias tartareas, & fabulosas, e se preparaõ do modo seguinte. Tomai de calomelanos Turqueti, tres vezes sublimado, meya oitava, de trociscos de Alandal subtilizadissimos cinco grãos, tudo se misture com huma oitava de terebinthina de beta, & se formem doze pilulas; ordenando ao doente, que as tomasse na madrugada, & que de quatro em quatro dias tomasse outras semelhantes, & se repetissem vinte vezes. Naõ he dizivel a suavidade com que esste remedio obrou, nem o alivio que o doente sentio: acabadas que foraõ de tomar as pilulas, descansou quatro dias, & passado eles, lhe dei o seguinte medicamento, que para abrir as veas ureteras, & fazer ourinar, tem magnifica propriedade, & se prepara do modo seguinte. Tomem de pedra Judaica, & e de cristal pedra, de cada cousas destas huma onça, façaõse em pò subtilissimo, & se misturem com igual quantidade de sal armoniaco, & em huma redoma de vidro (enterrada em area atè o meyo) se sublime com fogo moderado no principio, & ao depois com fogo forte, & da materia sublimada, ou pegada nas partes superiores do vidro, dei ao doente dous escropulos desatados em meyo quartilho de agua cozida com raizes de espargos, ou de ortigas, ou com folhas de cerfolio, ou de pimpinella. Com este remedio ourinou muito, & conheceo grande melhoria; mas porque naõ foy tanta como eu desejava, lhe dei oito dias doze gottas de oleo de alambre misturadas em seis onças de agua cozida com huma onça de raiz de rilhaboy; & foy Deos servido que com este remedio, & com lhe prohibir que naõ comesse queijo, nem manteiga, presunto, peixe, nem legumes, o livrasse de taõ terrivel enfermindade; & para que naõ tornasse a cahir nella, nem criasse mais semenlhantes humores viscosos, & tartareos, ordenei que tempo de hum anno bebesse agua cozida com hum molhinho de pimpinella,

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Observações Medicas Doutrinaes

ou de cerfolio, duas oitavas de alcaçuz, & meya onça de assucar cande violado; & que por tempo de seis meses tomasse em jejum hum caldo de frangaõ cozido com folhas de betonica, & de erva turca, chamada herniaria, porque naõ se póde explicar a grande virtude, que estas duas ervas tem para gastar a pedra, & materias viscosas da bexiga, & dos rins. Ordenei tambem que de oito em oito dias tomasse huma onça da seguinte conserva. Tomem de polpa de canafistula tirada de freíco, tres onças, de carne das cereijas, ou ginjas seccas tres onças, de cremores de tartaro legitimamente preparados huma onça, de terebinthina de beta, lavada em tantas aguas de malvas atè que fique bem branca, duas onças, tudo se missture com duas onças de pò de alcaçuz, & se faça conserva, a qual naõ só tem admiravel virtude para curar as dores, & achaques dos rins, & da bexiga, mas para preservar de gotta.

6. Este remedio communico a todos em serviço do bem commum, & se a algum Medico parecer menos bom do que a mim me parece, peçolhe que oo naõ use, ou o emende, porque mais quero desdizerme da minha opiniaõ, & sugeitarme ao parecer de quem he mais douto, ( 4.) que encorrer no crime de teimoso; porque se (como dizem graves Authores) (5.) não foy descredito em Hippocrates dizer que se enganára com as soturas da cabeça: nem em Galeno dizer que se enganàra cuidando que tinha huma pedra atravessada em alguma vea uretera, sendo que era huma dor de colica: nem em Alzaravio dizer que se enganàra com sua mulher, porque lhe dera huma purga estando pejada, cuidando que o naõ estava: com quanta mais razão devo eu desdizerme, & naõ porfiar em o meu voto, quando os Principes da Medicina se naõ envergonháraõ de desdizerme? merecendo pelas taes confissões mais louvores, do que mereceriaõ, se levados de alguma vaidade defendessem os seus erros, porque com isso dariaõ occasiaõ aos vindouros, paraque cahissem em outros semelhantes: o certo he, que

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Observaçaõ XI

estes grandes homens confessáraõ que se aviaõ enganado, porque como eraõ taõ grandes, nada lhes faria escurecer o seu bom nome: o que naõ acontece nos Medicos pequenos, que como tem pouco cabedal, qualquer migalha de fama que percaõ, se consideraõ aniquilados, & por isso saõ taõ teimosos em defender o que huma vez chegàraõ a votar.

7. Jà que nesta Observaçaõ falei sobre dores pertencentes às vias da ourina, quer fazer duas advertencias aos principiantes. A primeira he, que se entenderem que as dores procedem de chaga da bexiga, que neste caso dem a beber ao tal doente, seis meses, agua ferrada com ferro; porque diz scribonio Largio (6.) que he grandissimo remedio nas dores, & queixas da bexiga, como elle observou com as aguas das caldas de Thuscia, que saõ de ferro, & se chamaõ em Toscana Vesicarias. A segunda he, q dem aos taes enfermos, em vinte dias continuos, o calomelanos sublimado trinta vezes, atè que quasi fique fixo; porque na opiniaõ de Riverio, (7.) se algum remedio póde curar as chagas da bexiga, he o mercurio diaphoretico fixo, ou o oleo doce do mercurio; mas o saber preparar o tal oleo, naõ he a todos facil.

8. semelhante caso a este observei em hum menino de idade de nove annos, chamado Francisco, filho de Pedro Francisco, & de sebastiana Gomes, moradores na rua da Arrochela, que fica defronte do Convento de saõ Bento. Para este rapaz fui chamado depois de ter padecido largos tempos estas cruelissimas dores, & estar taõ magro que parecia hua imagem da morte, porque nem de dia, nem de noite dormia, nem tinha sossego, dandolhe cinco vezes a agua benedicta em dias alternados, & fazendolhe beber em jejum, por tempo de tres meses, hum quartilho de leite de burra misturado com meya oitava das minhas pilulas antefebriles, ordenandolhe que pelo mesmo tempo bebesse agua, em que misturassem coral preparado; & foy Deos servido que sarou de taõ cruel doença no anno de 1702.

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Observações Medicas Doutrinaes.

(8.) aconselha os espiritos de sal, por remedio maravilhoso para os ardores da ourina, & para as estrangurias dos velhos, principalmente se os taes espiritos de sal forem desatados em cozimento de semente de bisnada, porque dissolvem os humores viscosos, & fazem deitar as areas.

OBsERVAÇAM XII

De huma suppressaõ alta de ourina, que hum Religioso de saõ Bernardo padeceo vinte dias, no fim dos quaes teve saude, porque deitou pelas sangrias dos braços grande quantidade de ourina, como se conheceo pela cor, & cheiro della.

1. Hippocrates, aquelle grande Oraculo da Medicina, certifica, & com muita razão, que a Arte Medica he tão vasta, & dilatada, que não tem termo, em que caiba, nem balisa, que a comprehenda, por quanto ainda que elle nos deixou os seus Aforismos, & regras universaes por onde nos governamos; comtudo a experiencia nos mostra que naõ ha no mundo cousa algũa taõ certa, nem taõ infallivel, q naõ tenha suas excepções, & deixe de faltar algũas vezes. Como cousa certa, & infallivel diz Hippocrates (I.) que nem as mulheres padecem gotta em quanto lhes baixa a conjunçaõ mensal; nem os meninos em quanto naõ tem uso de mulher: & pela experiencia consta que algũas mulheres bem menstruadas, & alguns meninos incapazes por sua idade de ter copula com mulheres, padecem dores de gotta insoportaveis. O mesmo Hippocrates (2.) certifica que os accidentes de gotta coral nas pessoas velhas, & nas que passaõ de vinte & cinco annos saõ incuraveis; & eu curei dos taes accidentes a tres homens, hum dos quaes passava de trinta annos, & os dous passavaõ de vinte & cinco, como os curiosos poderaõ ver na minha Polyanthea Medicinal de segunda impressaõ tract. 2. cap. 9 fol. 80. do num. 34. atè. 38. E tambem consta q Mathias Cornaro, Medico de Maximiliano II. curou de gotta coral a hũa mulher, que tinha setenta annos. Diz mais o sobredito Hippocrates que os empyematicos, & os que tem materias supuradas dentro no vaõ do peito, só se purgaõ, & evacuaõ por escarro: & a experiencia tem mostrado que escapàraõ alguns deitando as materias já por via das ourinas, jà misturadas com a camara. O mesmo certifica Paulo Gineta, dizendo que quando o apostema do peito se rompe, cahe a materia humas vezes no estomago, outras vezes nos intestinos, & outras vezes na bexiga pelos anfractos das veas, como por huns canos, ou aqueductos. Nem Galeano deixou de conhecer isto mesmo quando disse: Naõ he para admirar, nem he impossivel, que das partes, que estaõ superiores ao septo transverso, corra, & desça materia ao ventre, & das que ficaõ abaixo deste, caya, & de desça a materia pelos rins à barriga. E porque Mesues o disse ainda mais claro, não será fora de razão referir aqui as suas palavras, que são as seguintes: Depoisque os abscessos, ou apostemas do peito rebentaõ, deitaõ algũs a tal materia, & cabe na cavidade do peito por destillaçaõ; a estes, ou pela vea do chylo cahe na parte concava do figado, & dahi pelas veas dos intestinos póde sahir de mistura com a camara; mas se pelo contrario a materia do apostema, que estava no peito, cahir, & correr para a parte convexa do figado, dahi pelas veas emulgentes darà comsigo nos rins, & na bexiga, & sahirà pela via da ourina.

2. Tambem diz o mesmo Hippocrates, que no coraçaõ naõ se gera achaque, nem o ossende humor algum, porque he formado de substancia solida, & densa, como consta de huma experiencia de Nicolao Massa, o qual abrindo o corpo de hum homem morto, & examinando com grande cuidado as partes interiores do peito, achou na substancia do coraçaõ huma chaga; & perguntando aos familiares da casa, se aquelle homem se queixava algumas vezes de dor, ou aflicçaõ do coraçaõ, lhe respondèraõ que naõ.

3. Tambem he sentença definitiva de Hippocrates, (3.) que se as prenhadas se sangrarem, ou tomarem algũa purga, moveràõ: & taõ longe está isto de ser assim, que paraque naõ movão, as sangramos, & purgamos cada dia, como eu o tenho feito muitas vezes com felicissimo successo, não só dandolhes purgas brandas, & benignas, mas dandolhes a agua benedicta, ou os pòs de quintilio, que supposto fazem algumas ancias, saõ taõ fieis, & seguros, que só a tal agua, ou pòs saõ capazes de as livrar de mover, como tenho experimentado, quando entendo que a causa porque movem, he a copia de humores cacochymicos, alheyos da natureza do sangue: nem isto he experiencia só minha, he doutrina de Hollerio (4.) no commento dos Aphorismos. Diz àlem disto o mesmo Hippocrates, (5.) q as feridas da bexiga saõ incuraveis: & constanos com toda a certeza que em França, em Hollanda, & em outras partes do mundo se abrem muitas bexigas para tirarlhes as pedras, & por beneficio de peritissimos Cirurgiões se curaõ perfeitamente, & vivem largos annos. Eu tive na minha mão huma pedra do tamanho de huma castanha, que se tirou da bexiga aberta ao ferro sem perigo da vida da enferma, que era criada de Luis de saldanha, morador à Junqueira.

4. Tambem he ley assentada de Hippocrates, (6.) que na entrada dos crescimentos se naõ dè de comer, nem de beber aos doentes: & naõ obstante este preceito, não ha Medico taõ covarde, que se o doente he muito magro, ou de temperamento muito secco, ou colerico, ou muito fraco, lhe naõ dè de comer em qualquer hora da sezaõ, para evitar que o doente se faça hectico, ou morra de fraqueza.

5. Bem encomendaõ Galeno, (7.) & Avicenna (8.) que se naõ sangrem os meninos antes de terem quatorze annos: & a experiencia mostra que com sangrias moderadas os livramos hoje de gravissimas doenças, sendo de menos de hum anno.

6. Finalmente diz Hippocrates, que os que padecem suppressoẽs de ourina, morrem, se atè o septimo dia naõ ourinaõ: & eu tenho visto alguns doentes, que ourinaraõ no fim do oitavo, & escapàraõ da morte. Dos referidos casos se colhe claramente, que as regras, & sentenças de Hippocrates, aindaque pela mayor parte sejaõ verdadeiras, a experiencia mostra que algũas vezes saõ falliveis, & outras vezes he acertado naõ as seguir; & para confirmaçaõ disto me permittaõ que refira o seguinte caso.

7. O Muito Reverendo Padre Fr. Pedro Manoel, Religioso da Ordem de saõ Bernardo, filho do Excellentissimo senhor Dom sanche Manoel, Conde de Villaflor, depois de huma suppressaõ alta, que lhe durou vinte dias, salvou a vida, contra a opinião de Hippocrates, porque sangrandose doze vezes nos braços, deitou tanta quantidade de ourina pelas scisuras das veas, quanta pudera ter deitado pela via urinaria em todos aquelles dias: & não só escapou do grandissimo perigo, em que estava, mas até este dia logra perfeitissima saude.

8. Neste lugar se offerecem duas cousas dignas de reparo, & importancia na pratica de Medicina. A primeira he considerar quam errados vaõ aquelles Medicos, que saõ taõ contumazes, & atados aos conselhos, & regras dos antigos, que nem à razão natural, nem ao que vem com seus olhos, querem dar credito; o que he muito abominavel; porque seria melhor examinar as causas do que vem, que negar teimosamente a fé do que experimentaõ; porque (como dizem graves Authores) (9.) a razão, & a experiencia sempre foraõ mais poderosas que a authoridade humana, pois a esta (diz santo Agostinho) (10.) só os parvos se rendem. O mesmo quasi diz Valesio: (11.) & supposto que Hippocrates, & Galeno, como diz Pemplio, (12.) sejaõ nossos Mestres, naõ saõ tão senhores dos nossos entendimentos, que ajamos de jurar por infallivel tudo, o que elles disseraõ: do caso, que aqui referimos, consta mui bem esta verdade; pois vemos que succedem muitas cousas contra o que Hippocrates tinha assentado como certo, & infallivel.

9. A segunda cousa digna de grande reparo he ver quam erradamente procedem os Medicos, que nas suppressoẽs altas da ourina tem medo de sangrar repetidas vezes, quando a experiencia nos mostra que nenhum remedio, depois dos pòs de quintilio, ou da agua benedicta vigorada, he mais proveitoso que as sangrias dos braços repetidas; principalmente quando entendermos que as taes suppressoẽs altas procedem de grande enchimento, inflammaçaõ, ou oppilaçaõ das veas emulgentes, porque descarregadas ellas, se tiraõ os taes emabaraços, & furtem entaõ admiraveis effeitos os remedios provocativos das ourinas, como eu tenho observado em muitas suppressoẽs taõ perigosas, que aviaõ de matar os doentes, se eu lhes não acudira logo com vomitorios de agua benedicta, & com repetidas sangrias nos braços, dandolhes depois disso o meu grande segredo, com o qual tenho feito curas tão prodigiosas, como os curiosos podem ver na minha Polyanthea nova trat. 2. cap. 81. fol. 509. num. 36. atè 42. Por este mesmo methodo livrei da morte ao Padre Fr. Andre da Trindade, Custodio, Lente jubilado, & Qualificador de santo Officio, Religioso Franciscano da Terceira Ordem, o qual avia cinco dias, & cinco noites que naõ podia ourinar, & com sangrias altas, & o meu grande remedio ourinou doze ourinois cheyos dentro de huma noite, como poderàõ certificar todos os Religiosos daquelle Convento, em 8. de Junho de 1704. Com as mesmas sangrias altas, & com o meu segredo livrei tambem da morte a huma Religiosa do Convento da Annunciada, filha de Manoel Leal, ourives do ouro; a qual Religiosa em 12. de Fevereiro de 1705. teve hũa suppressaõ alta, que lhe durou oito dias, & oito noites, & estando jà desconfiada de tres Medicos doutos, fui chamado, & sangrandoa algumas vezes nos braços, & dandolhe o meu segredo, ourinou tres ourinois cheyos dentro de oito horas, & sarou radicalmente; do qual successo poderaõ ser testimunhas todas as Religiosas do dito Convento.

OBsERVAÇAM XIII.

De hum fluxo de sangue dos narizes taõ rebelde, que naõ quiz obedecer aos remedios mais efficazes da Arte; e estando o doente taõ desconfiado da vida, como inchado do corpo me mandou chamar, naõ querendo fazello atè aquelle tempo, sem ter para isso outra cousa mais, que por ter ouvido dizer que nos grandes perigos usava de alguns remedios, que por serem segredos meus, naõ queria fazer publicos; mas como entendeo que morria, quiz usar dos taes remedios; e dandolhos tres dias successivos de manhãa, e de tarde, parou o sangue, e se desvaneceo a inchaçaõ leucophlegmatica, que caminhava para huma hydropesia mortal.

1. A indaque cada dia vão sahindo no mundo novas enfermidades (1.) ao compasso que a malicia dos homens vai cada dia commettendo novas culpas; comtudo he taõ grande a misericordia de Deos, que descobre cada dia novos remedios, com que possamos curar aos mesmos, a quem elle pelos seus delitos chegou a ferir. Quantos medicamentos temos hoje, que desde o principio do mundo estiverão encubertos com a escura nevoa da nossa ignoracia ? Quantas enfermidades tem avido atè este tempo, cujas causas, e remedios foraõ naõ só desconhecidos, mas nem sonhados dos mayores Medicos? Em abono desta verdade quero referir a seguinte Observaçaõ, da qual se naõ ha de seguir pouca utilidade ao bem commum.

2. Manoel Ribeiro Cotrim, morador em Alfama, no beco chamado da Galè, padeceo no discurso de tres meses hum fluxo de sangue pelos narizes taõ copioso, e delgado, que jà naõ era vermelho, mas tão descorado, que parecia agua de lavadura da carne; e como os Medicos por este sinal conhecessem que o dito sangue sahia mais por fraqueza das entranhas, que por sobegidão, se naõ atreveraõ a sangrallo, porque entenderão que se faria logo hydropico; e levados deste justissimo medo se empenhàrão em suspender o sobredito fluxo, applicando para isso remedios confortativos do figado, e entranhas debilitadas, usando de adstringentes, de narcoticos, de amuletos, e de outros muitos especificos, que por virtude occulta costumão suspender a semelhantes fluxos; mas como vissem que tanta multidaõ de remedios lhe não aproveitàrão, disseraõ ao doente que me chamasse, porque sabiaõ que eu preparava por minhas mãos varios remedios de virtudes mui presentaneas, e que entre elles poderia ter algum, com que lhe valesse: chamáraõme com effeito, e vendo eu o miseravel estado do enfermo, me atemorizei igualmente com os companheiros, porque me lembrou aquella sentença aurea de Joaõ Fernelio, (2.) na qual encomenda muito aos Medicos, que naõ sejão como os ignorantes, que tanto que algum doente deita sangue pelo nariz, ou tem ourinas vermelhas, o sangraõ logo, sem advertir que muitas vezes sahe o dito sangue naõ só por enchimento das veas, mas por outras muitas causas: como succede àquelles, que tem as entranhas naturaes, e o figado fraco, inchado, ou scirrhoso, porque a estes lhes sahe facilmente pelo nariz do mesmo modo, que sahe aos hydropicos. Consideradas, e premeditadas bem estas palavras de taõ grave Author, fui de parecer que se naõ sangrasse, nem tirasse huma gotta de sangue ao enfermo, porque certissimamente se avia de fazer hydropico, como jà vi a tres doentes, que avendo tido grandes fluxos de sangue descorado; e seroso, os sangràraõ contra o meu voto, e dentro de poucos dias cahiraõ em hydropesias, de que morréraõ. O mesmo diz Henrique que ab Heers, (3.) que vira a certo homem, que depois de grande fluxos de sangue, refrigerandoselhe o fígado, morrèra hydropico. Conformàrãose todos com o meu voto de que se naõ tirasse sangue; porèm não faltou quem dissesse se applicassem huns causticos nas pernas, para dar vazão aos muitos soros, e humores lymphaticos, que em todo aquelle corpo redundavaõ. A este voto resisti por duas razoẽs: a primeira, porque me consta que os causticos postos nas pernas inchadas, e cheyas de humores serosos, saõ muitas vezes causa de se mortificarem, e gangrenarem, e de apressarem a morte: a segunda, porque semelhantes fluxos de sangue, quando saõ demasiados, procedem da grande effervescencia, delgadeza, e acrimonia do sangue, e da lympha, e neste caso se exasperão, e fervem muito mais os ditos soros lymphaticos, e o sangue ajudados com a acrimonia, e quentura dos causticos, os quaes por razão das cantaridas, com que saõ feitos, communicaõ aos humores hum certo fermento rarefactivo, e acrimonioso, damnosissimo aos hydropicos, e por esta razão nem aos taes doentes, nem aos freneticos os applico, e só uso delles com grande proveito nas modorras, e nas Apoplexias, porque pelas chagas, e dores que fazem, naõ só acordaõ aos doentes; mas communicão a toda a massa sanguinea huma virtude dissolvente, e descoagulante, importantissima para a boa circulaçaõ dos humores.

3. Determinei pois purgar primeiro huma boa parte dos soros gerados, dandolhe para esse fim, quatro vezes em dias alternados, cinco onças de agua de tanchagem; ou, o que he melhor, de çumo de chicoria, em que primeiro estivessem duas horas de infusaõ trinta grãos de trociscos de Alandal, e coandose a dita agua por papel mataborraõ, ou panno bem tapado, lha fiz beber; porque para purgar os humores lymphaticos, e salgados, que redundaõ nos hydropicos, e nos que deitaõ tanto sangue delgado, não tem a Arte melhor remedio: e descansando o doente vinte e quatro horas, lhe comecei a dar, oito dias pela manhãa em jejum, e à noite antes de cear, huma oitava dos meus trociscos de estancar sangue, feitos em pò, e misturados com huma onça de xarope de rosas seccas, mandandolhe beber em cima cinco onças de agua de tanchagem, em que estivessem de infusaõ trinta folhas de salva verde muito bem pizadas, e espremidas; e foy o effeito deste meu segredo taõ maravilhoso, que ao terceiro dia se suspendeo totalmente o sangue, como se fosse obra de milagre: mas este sucesso, que aos circunstantes pareceo raro, e estupendo, he para mim cousa ordinaria, porque a experiencia, e maravilhossos effeitos que tenho visto deste remedio, saõ tantos, que posso affirmar naõ ha medicamento que tão efficazmente fixe, e rebata o fervor, e orgasmo do sangue, que sahe de qualquer parte, como he este meu segredo: e confirmo isto; porque tendo eu acudido (de muitos annos a esta parte) a muitos fluxos de sangue, do nariz, da boca, da madre, das almorreimas, e de outras partes, e nem purgando-os repetidas vezes com o meu xarope de ruibarbo, mirobalanos citrinos, e xarope das nossas rosas, cuja receita ensinei a fazer na Polyanthea nova trat. 2. cap. 56. fol. 372. num. 6. e7. nem dandolhes o xarope do çumo da raiz do feto, nem do çumo das folhas das ortigas, nem os pòs das rans, nem a agua cozida com alquitira, e folhas tenras da azinheira, nem dandolhes os pòs do esterco de burro, nem applicando-lhes os pòs do vitriolo exanimado, nem a pedra hematitis, nem os pòs das pernas das perdizes,pude vencellos, sem embargo de qualquer destes remedios ser taõ excellente, e efficaz para estancar qualquer fluxo de sangue,que pòdem competir entre si sobre a primazia; porèm comparados com o meu remedio, todos saõ sombra, e todos saõ nada, como se deixa ver por este caso, e por muitos que naõ refiro, porque o fiz na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 3. cap. 4. fol. 854. do num. 57. até 66. aonde os curiosos acharaõ nomeadas as pessoas, a quem tenho curado de fluxos sanguinolentos com taõ grande felicidade, que nem a inveja, nem a malicia podèraõ escurecer a verdade dos taes successos.

4. Confio eu em Deos que não averà Medico Catholico, que depois de lhe constar da grande virtude deste, e de outros meus segredos, naõ queira usar delles, só porque saõ inventos meus, ou porque eu naõ tenha a gloria de que com as minhas armas se consega a vitoria; mas se ouver algum (o que eu naõ creyo) de consciencia taõ larga, ou com quem possa mais a desaffeição que tem aos meus remedios, que a caridade que deve ter com os doentes, peçolhe se lembre da conta que Deos lhe ha de pedir, porque desprezou, e talvez infamou aos remedios de singulares virtudes, querendo antes usar de outros menos proveitosos, porque se assim o fizer, temo lhe diga o Juiz severo: Certamente condemnaste a tua alma, pois tendo noticia de remedios melhores, usaste dos peyores, como diz Helmonte (4.)

OBsERVAÇAM XIV.

De huma mulher, que para matar os porçovejos do seu leito, o lavou com vinagre fervido com rosalgar; & como senaõ acautelasse dos vapores venenosos que subiaõ quando o rosalgar fervia, teve tantas ancias no coraçaõ, que morria dellas, se eu lhe naõ valéra com o meu Bezoartico, dandolho de hora em hora, & em grande quantidade, porque lhe naõ aproveitaria de outra forte.

I. Quem avia de imaginar que aquelle espelho Deifico, & ultima imagem da creaçaõ Divina, o Principe mais perfeito de todos os viventes, (o homem digo) naõ fora creado para viver largos annos, vendo que Deos, Author & Creador de tudo, o adornou, & enriqueceo com tantas prendas, das, & perfeições, fazendo - o senhor do mundo, pondolhe debaixo dos pès tudo quanto ha na terra, creando-o a vida por elle, morrendo em huma Cruz? Quem avia de imaginar (torno a dizer) que huma creatura taõ grande, & tão nobre avia de ter huma vida taõ curta, & cheya de miserias? Com tudo a expreriencia nos mostra a pouca duração, & a grande fragilidade desta Divina obra; pois vemos que hum só bocado bastou para affogar a muitos, & que para matar a outros bastou huma leve espinha, sobejando hum só vapoir para tirar a vida a outros: & por mais que pareça incrivel que para tirar a vida, fosse taõ poderoso hum cabello, como hum rayo; comtudo pela seguinte Observaçaõ veremos que as sobreditas cousas naõ saõ menos efficazes para matar, do que as balas de Marte, & a fouce de saturno para ferir.

2. No bairro de Alfama junto à Igreja e saõ Pedro morava Magdalena da Costa, a qual estando em huma visita acompanhada de varias amigas, se queixou que avia muitas noites naõ dormia, nem descansava, pelos muitos porçovejos, que no seu leito tinha: & como desde o principio do mundo atè este dia naõ aja Arte de tantos professores, como he a Medicina, os alfayates lhe daõ suas thezouradas, os çapateiros lhe curtem o couro, os ferreiros lhe malhaõo a cabeça, finalmente todos daõ voto sobre ella; por isso ensinou cada huma das sobreditas amigas o seu remedio para matar, & affugentar a semelhantes savandijas: disse huma que naõ avia taõ bom remedio, como era humas brazas: outra disse que naõ avia cousa taõ efficaz, & experimentada, como era untar o leito com fel de boy misturado com sabam: affirmou outra que não avia medicina mais presentanea que untar o leito com unguento de azougue: affirmou outra que o mais efficaz remedio era untar o leito, & todos os buracos delle com com cebo de carneiro: outra finalmente disse que nunca lhe faltàra, nem se achara enganada com a lavagem de vinagre forte fervido com hum pouco de rosalgar: agradou este ultimo remedio mais que os outros, & assim mandou comprar meya onça de rosalgar em pò. ordenando à sua criada que em huma panela o puzesse a ferver com huma canada de vinagre forte, & que como estivesse fervido, lavasse o leito muito bem de huma, & outra parte, sem lhe escapar greta, nem resquicio algum, por pequeno que fosse. Assim o fez a pobre criada; mas taõ desgraçadamente executou o preceito de sua ama, que em menos de huma hora começou a ter ancias, & palpitaçoens do coraçaõ, tremores do corpo, ardores, & picadas nas mãos; (2.) & como pela vehemencia dos symptomas, & qualidade venenosa do rosalgar se cubrisse de suor frio, & fosse cahindo em hum desmayo, & syncope mortal, se atemorizou de sorte, que pedio lhe chamassem logo hum Confessor, & hum Medico. Neste aperto fui chamado, & vendo eu a miseravel mulher em perigo taõ evidente desconfiei da sua vida; porèm lembrandome da grande confiança, & crença que ella tinha em mim, não pude deixar de empenharme para a tirar da garganta da morte: mandei pois que se confessasse logo, & que com toda a pressa lhe dessem hum grande pucaro de leite de mulher, ou qualquer outro, que mais promptamente se achasse; & que naõ se achando, lhe dessem hum quartilho de leite de amendoas doces, em que misturassem a agua de tres claras de ovos frescos bem batidas, & tres onças de lambedor violado; * para rebater a qualidade venenosa do rosalgar, que jà lhe tinha assaltado o coraçaõ, (como se deixava ver pelas excessivas ancias, tremores, & suores frios com que estava) lhe receitei o cordeal seguinte, que para extinguir, & refrear a ferocidade de qualquer veneno mortifero, tem huma virtude, & efficacia superior a todos os remedios humanos, & se prepara do modo seguinte. Tomem de pevides de cidra azeda huma oitava, de raizes de escorcioneira duas onças, de folhas de cardo santo duas oitavas, tudo se machuque, & com huma canada de agua da fonte se ponhaõ a cozer em panela de barro, atè ficarem tres quartilhos, & tirandose a penela do lume, se coe esta agua com forte expressaõ, & dentro nella desfaçaõ tres oitavas do meu cordeal bezoartico, que se acharà em minha casa, ou nas boticas de saõ Domingos, ou na de Joaõ Gomes silveira, morador à Cruz de Cata - que - farás, porque sós estes tres boticarios tem o tal cordeal verdadeiro, preparado por minhas mãos, porque os outros, que se vendem debaixo do meu nome, saõ falsificados; que a tal estado chegou a malicia, & ambiçaõ dos homens. E deste cordeal bem vascolejado ordenei lhe dessem logo cinco onças, & o fossem repetindo de tres em tres horas; & foi taõ presentanea a virtude deste admiravel contraveneno, que na mesma hora desapparecèraõ as ancias, as palpitações do coraçaõ, os suores frios, & os tremores do corpo; & porque alguma maliciado do rosalgar (já communicada às partes interiores) naõ machinasse algum damno contra a vida da enferma, ordenei que a tivessem acordada as primeiras doze horas, porque com o somno se não entranhasse, & reconcentrasse mais nas partes profundas a qualidade mortifera do dito rosalgar. Ordeneilher finalmente que em todos os caldos misturassem duas oitavas de oleo d e semente dos nabos (3.) feito por expressaõ; porque naõ he dizivel a estupenda virtude, que o dito oleo tem contra todos os venenos, & contra todas as doenças malignas, bexigas, & sarampãos: & foy Deos servido, que observandose pontualmente tudo, o que lhe ordenei, recuperou a vida, que desejava.

3. Desta obserçaõ conheceàõ todos, quam grande virtude he a do meu cordeal, assim para vencer as febres malignas, como para rebater todo o veneno, que por erro, ou malicia se deo, como tenho visto algumas vezes: a primeira em hum escravo de Pedro Luis: a segunda em huma mulher, a quem seu marido quiz matar injustamente, dandolhe para isso veneno; & foy Deos servido, que acodindolhes eu com o meu cordeal, & com boa quantidade de leite de vaca, ou de amendoas doces, em que ajuntava duas onças de mucilagens de pevides de marmelo, escaparaõ todos da morte com grande credito da Arte, & gosto meu, graças sejaõ dadas ao Author da vida.

OBsERVAÇAÕ XV

De huma mulher que padecia grandes dores no ventre, & estomago acompanhadas com febre, tremores convulsivos e afflicções do coraçaõ, a que se applicàraõ tantos remedios inuteis que cheguei a suspeitar que as ditas queixas procediaõ de lombrigas: & naõ me enganei; porque dandolhe os remedios, que as mataõ, deitou, entre muitas pequenas, huma de dous covados, & no mesmo dia teve saude.

. NAõ ha ciencia, que tanto necessite de hum artifice muito acautelado, & prudente, como a Medicina; porque acontece cada dia serem chamados alguns Medicos para curar doenças, cujas causas saõ taõ occultas, & difficultosas de conhecer que he necessario adivinhar. Desta verdade tive hum evidentissimo exemplo em certa mulher, chamada Maria Manoel: padeceo esta tantas dores no ventre, & estomago, tantas ancias no coraçaõ tantas fatuidades no juizo, tantos tremores, & movimentos convulsivos nos nervos, & taõ repetidas alteraçoens pulsos que todos entendèraõ que brevemente morreria; mayormente vendo que alguns Medicos, de quem fiàra a sua vida, estiveraõ muito tempo embaraçados, & perplexos, sem acertar com a causa da enfermidade, tendolhe feito mil diligencias, & applicado todas as artes, trabucos, machinas, batarias, & quantos petrechos tem inventado o engenho dos ho-

96 Observações Medicas Doutrinaes.

homẽs para render a ferocidade de tão poderosos inimigos; mas tudo sem alivio; porque as dores sem ter respeito a cousa alguma, augmentàraõ cada vez mais a sua crueldade.

2. Nesta desesperaçaõ, quando a mulher impaciente com dores se enfurecia contra si ferindose, & despedaçandose, fui chamado paraque lhe applicasse algũ remedio; confesso que temi entrar em tão grande tempestade de dores, & perigos, que mal bastaria o melhor piloto para sahir bem de tamanha tormenta; mas porque nos casos grandes vence muitas vezes o desejo, o que não podem as forças, foi preciso acudir a quem se valia do meu amparo. Varias foraõ as considerações que fiz para conhecer a causa da doença: humas vezes entendia que tantos symptomas, e taõ violentos naõ podiaõ proceder de outro principio senaõ de alguma aura, ou vapor malignissimo, que mordicando, & offendendo as tunicas do estomago, & intestinos, eraõ os authores das sobreditas queixas: outras vezes presumia que taõ terribeis ancias, & crueis afflicções só as podia causar algũ humor atrabiliario, ou colera prassina, pois esta, na opiniaõ de graves Doutores, (I) faz muitas vezes effeitos peyores que o mais refinado veneno: outras vezes suspeitava que alguma intemperança exotica, & desconhecida era a causa de taõ lamentavel tragedia; porèm como para todas estas queixas, & causas dellas se tivessem applicado excellentes remedios sem proveito, imaginei que os excessivos movimentos, & convulsoens dos nervos, semelhantes aos da gotta coral, procediaõ de alguma depravada fermentaçaõ de humores, que ferviaõ no estomago, ou no mesenterio, & mais partes vizinhas, que a mistura das substancias salinas fez contra a natureza, a qual mixtaõ costuma ser a causa ordinaria das grandes, & furiosas tempestades, & ardentes febres, que succedem cada dia no corpo humano; & como, ao meu entender, naõ só a anastomosi dos vapores adultos, mas tambem a metastasi, ou mudança arrebatada, que os humores depravados fazem das

Observaçaõ XVI.

das partes inferiores para a cabeça, dessem azos àquelles horrendos, & formidaveis movimentos, julguei que com toda a arte, & industria se avia de acudir primeiro a tirar a causa, porque de outra forte (em quanto o humor maligno estivesse dentro no corpo ) padeceria o doente as queixas referidas.

3. Para purgar pois, & alimpar bem todo o humor nocivo, que pelos erros da vida, & indigestões dos alimentos se foraõ pouco a pouco ajuntando no estomago, lhe dei meya oitava de vitriolo branco, desatado em tres onças de agua de erva cidreira: o qual remedio alem de ser fiel, & seguro, naõ passa a sua actividade da primeira regiaõ; para conforto da qual, & para vencer as convulsoẽs epilepticas he taõ proveitoso, & appropiado, q julguei se devia repetir duas, ou tres vezes em dias alternados; porèm como a doença depois do corpo estar purgado copiosamente com o sobredito remedio, continuasse com a mesma força, antes se exasperassem os mais os referidos symptomas, julguei que o succo nervoso se ofendia; & irritava com algum humor, ou vapor acre, & pungente, & que para dulcificar, & applacar a dita acrimonia, naõ avia remedio taõ proprio, & efficaz como era o leite de burra, porque sobre ser grande mitigativo de dores, he remedio nervino, & que só com elle podia vencer as sobreditas queixas: deilhe pois ( por tempo de tres meses) o leite jà pela boca, jà por ajudas; mas sem fruto. Neste aperto assentei como cousa certa, que as sobreditas dores, anxiedades, & convulsoens, se deviaõ attribuir a lombrigas, que por estarem famintas, ou assanhadas com o incendio da febre, mordiaõ, & picavaõ os nervos, & causavaõ os sobreditos effeitos; o que acabei de conhecer por dous finaes. O primeiro, porque quanto mais tempo doente estava sem comer, tanto mais crueis dores, ancias, tremores, & febre padecia, de maneira que nem huma hora podia estar sem comer, mas tanto que comia qualquer cousa, se diminuhiaõ logo as dores, os tremores, a febre, & os mais symptomas. O segundo final, por onde julguei

guei

Observações Medicas Doutrinaes.

guei tinha lombrigas, & que ellas eraõ a causa de taõ lamentavel tragedia, foy, porque soube que comendo bons alimentos, & em boa quantidade, estava taõ magra, & desfigurada, que parecia o retrato da morte; indicio certo de que as lombrigas comiaõ, & roubavaõ todo o alimento, de que a doente se avia de sustentar: nem faltàraõ outros finaes, que confirmàraõ ser esta a doença; porque humas vezes tinha o rosto mui córado, & em breve espaço de tempo se transformava em denegrido; outras vezes tinha a barriga dura como hũa pedra, & taõ inchada como hum odre; outras vezes a tinha taõ molle, & branda comose naõ tivesse tripas, nem ventre; humas vezes tinha camaras muito soltas, & excessivamente fedorentas; outras vezes esstava taõ dureira, & impedernida, como hum feixo: entre dia, & noite lhe repetiaõ quatro, ou cinco insultos de febre com frialdade de extremos; mas tudo sem ordem, nem regra certa: tinha alienações, & fatuidades no juizo por causa dos vapores, que da materia corrupta, & reteùda no ventre subiaõ à cabeça: padecia tosse secca, & alguns desmayos, quando as lombrigas subindo ao estomago, & naõ achando que comer picavaõ as tunicas delle: & para mayor certeza de que na tal doente avia lombrigas, se ajuntava o serem os mantimentos, de que usava, capazes de se gerarem delles muitos bichos; porque usava de muitas fruitas, de iguarias guisadas com muito assucar, & de todo o genero de doces, que a gula inventou para isca do gosto, & lisonja do appetite.

4. Na cura desta enfermidade posto naõ duvidei se avia de acudir com igual cuidado à febre, & às lombrigas; acudi primeiro, & com mayor pressa a deitar fòra as lombrigas, porque temi que se me descuidasse, poderiaõ romper os intestinos, ou ferir os nervos, & causar huma convulsaõ, como certifica Paulo Gineta; (2.) & para obviar todos estes perigos, mandei pòr sobre o ventre o emplastro seguinte. Tomem de folhas de losna, fel da terra, artemija, & ortelãa, de cada cousa destas huma mão cheya, tudo sepize

Observaçaõ XV.

pize muito bem; & se misture com hum pouco de vinagre forte, ajuntando a esta massa, de pò de myrrha, de azevre, de semente de alexandria, de bisnaga, de colloquintidas, & ferrugem de chaminè, de cada cousa destas meya oitava; ordenandolhe que repetisse este remedio cinco, ou seis dias, & que toda a agua, que bebesse, fosse cozida em panela de barro com duas mãos cheyas de folhas de espinheiro alvar, a que os Latinos chamão Rhamnus; & que ás duas canadas da tal agua coada ajuntassem duas oitavas de limadura de corno de veado, & de semente de bisnaga, ou de pò de osso canela de caõ, porque qualquer destes ossos tem grande virtude para matar lombrigas; com tal condiçaõ, que naõ sejaõ queimados, porque se o forem, ja naõ tem prestimo mais que para alimpar os dentes. Desta bebida lhe fiz usar muitos dias, esperando que mortos os bichos, se tirassem as dores, convulsoẽs, & a febre; porèm foi a sorte taõ contraria ao intento que naõ lhe aproveitou a minha. Appellei tres colheres de oleo de amendoas, estiveraõ de infususaõ seis grãos de pò de trociscos de Alandal: mas como nem este lhe valesse, foi preciso appellar para o seguinte, que tenho por melhor de quantos inventou a Arte. Tomem de mercurio precipitado lavado meya oitava, de azevre succotrino huma oitava, de semente de alexandria meya oitava, de pò de ortelãa dous escropulos, de açafraõ hum escropulo, de mechoacaõ, & ruibardo, de cada cousa destas oitava, & meya, de diagrydio sulphurado hum escropulo, tudo se misture muito bem, & se façaõ pilulas, q se repartiraõ em seis iguaes, para se tomarem seis vezes em dias alternados. mas como tambem esta diligẽcia fosse baldada, ou porque as lombrigas eraõ tenazes, ou porque estavaõ taõ escondidas, & em lugares taõ distantes, q zombàraõ de taõ admiravel remedio, appellei para a agua cozida com escordio, grama, & meya onça de azouge: & porqye finalmente vi que nem este remedio obrava conforme a grande confiança, que nelle tinha, recorri

Observações Medicas Doutrinaes.

ri para a agua de Aspar, da qual bebeo huma canada cada dia em jejum por nove dias continuos; porque tinha lido em Henrique ab Heers, (3.) & em Domingos Duclos (4.) as admiraveis virtudes, que a agua spadanà tem, naõ só para matar lombrigas, mas para hydropesias Asciticas, & leucophlegmaticas, em quanto saõ novas, para os azedumes do estomago, para os arrotos, vomitos, & soluços, para as oppilações do figado, do baço, & veas mesaraicas, para as ictéricias, & scirrhos naõ confirmados, para a melancolia flatuosa, para as dores dos rins, & da bexiga, para confortar o estomago, para provocar a conjunçaõ, quando he diminuta, & para a suspender, quando he muita; para enxugar as purgações da madre, emendar a esterilidade. que tiver por causa a muita humidade, ou inchaçaõ de utero, para as chagas, & excoriaçoẽs do membro, para a sarna, morfea, & todoso os achaques da pelle, & para mil outras queixas; & fundado nellas dei a sobredita agua, & naõ me sahio baldada a diligencia; porque na tarde do primeiro dia que a tomou, depois de deitar muitas pequenas, deitou huma lombriga redonda, que tinha dous covados de comprido, hum dedo de grossura, & de cor branca; & logo es desvanecèraõ os tremores, a febre, as ancias, & os mais symptomas, & teve perfeitissima saude.

4. Desta Observaçaõ aprendaõ os Medicos modernos duas cousas. A primeira, que nos casos perigosos chamem logo aos Medicos velhos, & experimentados; porque aos moços, & faltos de experiencia (diz Hippocrates) (5.) lhes succede o mesmo, que aos máos pilotos, que quando governaõ a nào em mar bonança se lhes naõ conhecem os erros que commetem, ainda que sejaõ grandes; porèm quando a tempestade he desfeita, conhecem logo todos os erros que fizeraõ, & que por sua culpa se perdeo a nào, que lhes entregàraõ. Isto mesmo succede aos Medicos principiantes, que quando curaõ achaques leves, & livres de perigo, ainda que façaõ alguns erros, naõ se conhecem; mas quando as doenças saõ grandes, & peri

Observaçaõ XV

perigosas, se conhecem logo os erros, & faltas que obràraõ. A segunda cousa, que devem aprender os principiantes, he, que quando virem que os remedios mais louvados, & qualificados com a experiencia, naõ fazem os effeitos, que delles se esperaõ, lancem maõ de outros, aindaque sejaõ mais humildes, & menos affamados; porque succede muitas vezes, que aquelles, de que se faz menor caso, tiraõ a paz, & salvo ao doente, & ao Medico, como se deixa conhecer por esta Obser vaçaõ, pois o que naõ puderaõ conseguir tantos, & taõ singulares medicamentos, consseguio a agua de Aspar, que comparada com os admiraveis remedios, que acima tenho dito, parece cousa de menor virtude.

6. No mesmo tempo em que estava imprimindo estas Observaçoens, me chamaraõ para curar a huma doente, que àlem de ter huma febre ardentissima, padecia taõ terriveis ancias de coraçaõ, que naõ cabia na cama; tinha a lingua taõ aspera, secca, & denegrida humas dores no ventre de taõ desmedida grandeza, que tiravaõ o somno, & lhe caussavaõ hũ fastio indizivel, ainda as cousas mais agradaveis ao palato; e vendo eu que todas as diligencias da Arte se tinhão baldado, suspeitei que todos estes symptomas eraõ effeitos de lombrigas: & naõ me enganei; porque dandolhe oito copos de huma agua, que inventou Joaõ Bautista Leitaõ, deitou vinte & cinco, de comprimento de hum palmo, & algumas mayores, & foy o successo prodigioso, que se tirou a febre, as ancias, o fastio, & as dores, & ficou perfeitamente boa. A agua que lhe fiz tomar, & que foy segredo meu, quero ensinar agora para o bem de todos, & he a seguinte. Em huma canada de agua da fonte mandei cozer huma onça de raizes de grama machucada, & depois de coada a dita agua, lhe mandei anjuntar duas oitavas de pó de osso das canelas de caõ, huma oitava de semente de bisnaga, & outra de alexandria, & desta bebida bem vascolejada mandei bebesse em jejum cinco onças, & ao sol posto outras cinco.

Observações Medicas Doutrinaes.

7. Advirto aos Medicos principiantes, que quando virem que as doenças naõ obedecem aos remedios bem applicados, considerem que podem ser procedidas de lombrigas, & que levados desta consideraçaõ podem tentar algũs remedios contras ellas taõ seguros, que se naõ aproveitarem, não damnifiquem; porque na minha consuderaçaõ, a oitava parte da gente morre de lombrigas, como tenho observado de muitos annos a esta parte, vendoas sair depois de mortos a hũs pelas ventas do nariz como formigueiros, a outros pela via trazeira.

OBsERVAÇAM XVI

De hum pleuriz bastardo de taõ rebelde, que desprezou aos remedios mais singulares da Arte; e depois de estar a doente ungida, e sem acordo, lhe sobreveyo hum vomito, com que sentio taõ grande alivio, que me animei a seguir o mesmo intento da natureza, dandolhe para isso tres onças de agua benedita vigorada; e obrou com ella taõ felizmente, que no mesmo dia sarou, como se fosse obra de milagre.

Naõ posso deixar de referir hum caso, que me passou pelas mãos ha poucos dias, o qual quero dizer, naõ por vaidade, nem por mostrar, que com hum remedio, de quem os Medicos Portuguezes tem tanto medo, como se fosse refinada peçonha, curei a huma mulher estando espritando; mas o refiro tão somente para advertir aos professores desta Arte, quam injustamente procedem os que vendo os doentes em grandes perigos, os desemparaõ, & lhes naõ o querem pòr maõ, como se fossem obrigados a dar vida a todos; devendo os taes Medicos advertir, que a mesma natureza busca muitas vezes caminhos por onde se livra de gravissimos perigos, sem que os Medicos intervenhaõ nisso.

2. Maria da silva, moradora aos poyaes de saõ Bento, teve huma pontada agudissima, que lhe tomava o lado esquerdo, & a naõ deixava deitar sobre elle hum só instante: para curarse de tal pontada mandou chamar (como he costume da gente ordinaria) a hum barbeiro, o qual tanto que ouvio fallar em pontada de ilharga acompanhada com febre, & tosse seca, & difficuldade de estar sobre a dor, conheceo que era hum pleuriz bastardo, & por isso a sangrou logo no braço enfermo, tres vezes no mesmo dia, dandolhe outras tres no segundo, continuando depois disso com duas cada dia, atè chegar ao numero de vinte ; & porque lhe naõ imputassem o mào successo, nem o culpassem do sinistro acontecimento, que justamente receava, pedio com grande instancia chamassem algum´Medico, para que com o seu conselho se resolvesse o que mais se devia fazer. Chamouse logo hum; o qual porque reconheceo o grande perigo da doença, se retirou, & despedio sem a compaixaõ, nem piedade; & por esta razaõ me chamàraõ, porque ouviraõ dizer que eu tinha particulares remedios, com que curava algûas doenças desesperadas. Chamáraõme: fui com effeito ver a miseravel enferma, & pondo os olhos nella, a achei com a respiraçaõ presa, o rosto incendido, o coraçaõ apertado, & affligida com dores: grande foy a duvida que tive para resolver se a doença era pleuriz, ou a peripneumonia, porque saõ esstas duas doenças taõ parecidas, & semelhantes entre si, que algumas vezes se enganàraõ com ellas Medicos de grande nome. porque (como dizem muitos Doutores) (i.) naõ he concedido a qualquer Medico saber distinguir as dessemelhanças de cousas semelhantes, como nem das dessemelhantes as semelhanças: valeome porèm o saber que ambas estas doenças procedem das mesmas causas, como saõ inflammaçõess internas occassionadas de humores acidos exaltados de ponto, & faltos da circulaçaõ necessaria, & que com os mesmos remedios de sangrias, absorbentes, antacidos, & outros medicamentos volatilizantes, que respeitem igualmente a ambas estas doenças, se devem curar; por esta razão lhe ordenei o seguinte cordeal; segredo que ate este tempo naõ quiz revelar a alguem; porèm agora o quero publicar em serviço do bem comum, por ser hum dos grande remedios, com que tenho livrado a muito de pleurizes mortaes. Tomai de cascas de raiz de bardana, que produz a flor vermelha, huma onça, machuquemse, & cozaôse a fogobrando <fo- gobrando>,em panela de barro, com tres quartilhos de agua da fonte, & quando quizerem tirar a panela do fogo, lhe ajuntem huma maõ cheya de flores de papoulas, & como a agua estiver vermelha, se tire logo logo a panela do lume; por quanto a virtude da bardana,& das papoulas consiste nas partes voláteis, & superfíciaes das ditas ervas, & se ferverem muito tempo, perdem a virtude, porque evapora com o fervor da agua: coada entaõ a agua com forte expreíssaõ, se desfazem nella duas oitavas de coral preparado, huma onça de lambedor de flores de papoulas vermelhas, & duas oitavas do meu Bezoartico; & desste maravilhoso cordeal lhe mandei beber, cade seis horas, cinco onças: porèm como o tal remedio naõ fizesse aquelle grande proveito, que a experiencia me tinha mostrado infinitas vezes na cura dos pleurizes, entendi que as dores, & dos conselhos de gravissimos Authores, (2.) mandei sarjar a parte queixosa, & que em cima das sarjaduras frescas se lhe applicassem, quatro vezes, ventosas com muito fogo, ou huma duzia de sanguisugas, para tirar o humor, que estava reprezado no lugar doente: porque se avemos de dar credito aos melhores Medicos do mundo, & às experiencias, naõ tem a Arte remedio mais efficaz para vencer aos pleurizes teimosos, do que saõ as ventosas arjadas, ou as sanguisugas, principalmente nos pleurizes bastardos qual era este; pois o doente naõ podia estar sobre a pontada: mas como naõ lhe aproveitassem as ventosas, entrei em consideraçaõ, que nem todas as pontadas de ilharga procedera de huma mesma causa, nem obedecem todas ao mesmo remedio; & por isso, assim como serà erro o naõ sangrar algumas vezes, serà outras vezes erro o sangrar sempre: vendo pois que as dores desta enferma humas vezes offendiaõ as costelas mendosas, outras vezes o peito, outras vezes as claviculas, humas vezes o lado esquerdo, outras o direito, conjecturei que dores raõ espalhadas, & errantes nasciaõ de flatos, & vapores acrimoniosos, & por isso mandei se somentasse a parte offendida com espirito de vinho alcanforado, polvorizado por cinia com incenso, & pos de cominhos, por quanto este remedio he admiravel resolutivo de flatos: mas como tambem se baldasse esta diligencia, lhe aconselhei que tomasse, duas vezes no dia, vinta grão de antimonio diapleoritico bem-reverberado, & misturado com outros vinte de pò de flores de papoulas, tres onças de agua de cardo santo, & trinta grão de almiscar finissimo: porque àlem de grande virtude, que este remedio tem, de descoalhar o sangue, promove a circulaçaõ dos humores, abre os pòros, facilita a transpiraçaõ, & provoca copiosamente o suor; o que tudo he mui util, & conducente para curar a pleuriz: mas como nem esse remedio, nem os que se tinhaõ feito aproveitassem, appellei para o mais admiravel medicamento que os homens souberaõ depois que Deo creou o mundo, quel he o oleo da entrecasca da abobora, cuja receita ensinei a fazer na obsservaçaõ quarta fol. 33. porem foy a dor taõ teimosa, se naõ rendeo à minha diligencia; daqui fiquei entendendo que a doença era incuravel, ou desconhecida, & com muita razão o cuidei assim; porque, como diz Galeno, (3.) quanto os remedio, que costumaõ aproveitar a todos, naõ fazem o proveito, que delles se espera, o temos por mào final, aindaque nem por isso avemo de desamparar aos doentes, nem perder as esperanças; antes devemos buscar buscar outros caminhos, &: fiar de Deos o bom successo; pois sò elle pôde remediar nosos trabalhos, & restituirnos da morte à vida. Vendo eu pois, que a doença tinha desprezado aos medicamentos mais efficazes, disse comigo: E se quizesse Deòs que esta dor procedesse de humores reteudos no estomago, como se póde imaginar, pois a enferma se queixa de grandissimo fastio, & amargor de boca, com deísejos contínuos de vomitar ! no qual caso a agua benediéta leva tanta ventagem a todos os mais remédios, quanta levaõ as luzes do sol a todas as estrellas.

3. succedeo pois que estando eu lutando com estes pensamentos, & com animo deliberado a darlhea água benedicta, lhe deo repentinamente hum vomito taõ copioso, que todos os que a estavaõ ajudando a bem morrer, entendèraõ que acabava de espirar suffocada com o dito vomito; mas taõ longe esteve de periga, que antes teve logo taõ consideravei alivio, que me animei a darlhe tres onças de agua benediecta vigorada, com que evacuou taõ copiosa, & felizmente que no mesao dia ficou boa, & livre de toda a queixa.

4. Pela qual razaõ aconselho aos Médicos principiantes, que nàõ receem, nem sè acovardem em fazer o que entenderem que convém para a saude dos doentes, ainda que nisso lhes causem alguma dor, ancia, ou enfado; principalmente quando virem que os naõ pòdem livrar da sepultura, senaõ com remédios fortes, & eficazes porque verdadeiramente as doenças grandes, naõ se podem curar com remédios pequenos; antes se devem usar os mais poderosos, paraque vençaõ a enfermidade, que sem isso se naõ venceria; seguindo nisto o conselho de Ugo (4.)

5. Naõ duvido que achamos algus enfermos taõ covarde, & melindrosos, que antes querm morrer mil vezes, que tomar algum remedio desagradavel, ou que lhes cause qualquer molstia ; & pelo contrario achamos outros, que só afim de ter saude, & melhorar brevemente, se sujeitaõ a qualquer grande trabalho. Doente conheço eu, que com mais facilidade sofrera que lhes cortem hum graõ inchado, ou hum lobinho desmedido, do que sofrer toda a vida andar com taes pezos.

6. Aquelles, a quem parecer que foi temeridade dar hua purga em hum pleuriz taõ perigoso , vaõ ver a minha Polyanthea da segunda impressaõ no cap. 47. fol. 309 num.3, & acharaõ os muitos Doutores que as deraõ, assim em pleurizes descendentes como nos ascendentes, & em todos aquelles, em quem achavão carga no estomago, ou grandes amargores na boca, ou desejos de vomitar: & ainda que (de regra ordinaria) o remedio mais louvado nos pleurizes sejaõ as sangrias, & meu Cordeal Antipleuritico, as ventosas sarjadas, & as sanguisugas applicadas sobre o lugar enfermo; comtudo alguns pleurizes ha, nos quaes saõ mais bem succedidas as purgas, principalmente as do quintilio, como por esta Observaçaõ se deixa ver, & pelas authoridades, que estão apontadas no lugar referido, se acaba de confirmar.

7. Das sanguisugas deitas sobre o lugar da pontada pleuritica tenho visto tantas maravilhas, que pudera escrever livros inteiros; baste por todas a q observei na muito Religiosa senhora soror Clara Maria da Assumpçaõ, a qual sendo Abbadeça do, teve hum pleuriz bastardo … rebelde, & invencivel, que naõ lhe aproveitando dezanove sangrias, sarou por modo de milagre, com, que lhe deitei tres vezes sobre o lugar applicando na primeira vez quinze, na segunda doze, & na terceira dez, & deste modo a livrei da morte no anno de 1703.

OBsERVAÇAM XVII.

De huma respiraçaõ difficultosa, acompanhada com estertor na garganta, hydropesia universal, intercadencias de pulsos, somno interrompido, & outros symptomas, que representavaõ aver hum turberculo no bofe.

1. Os casos que acontecem na Medicina fora de toda a esperança, & raras vezes vistos , costumaõ causar grande admiração a todos: porque quem visse a Antonio Paes de sande padecer dous anos huma dificuldade de respiraçaõ, acompanhada de hum estertor no peito taõ frequente, que nem podia falar com pressa, nem moverse com ligeireza, aindaque fosse pela planície mais lhana: quem visse que toda a circunferência do corpo estava igualmente inchada, & tumorosa: quem visse que naõ podia estar deitado sem suffocarse: quem visse os pulsos intercadentes, & a respiraçaõ taõ presa, que a naõ podia tomar sem ter a cabeça erguida, & o corpo levantado, entenderia que este enfermo combatido de tanto inimigos juntos nem poderia ter saúde, nem deixar de morrer às mãos de tão poderosos contrarios: porèm ainda que estes symptomas fossem todos mortaes, & o doente também entendesse que o eraõ, nem por isso perdeo as esperanças de cobrar a saude perdida, mayormente depois que ouvio dizer que eu tinha remédios particulares, com que curava algumas doenças, que estavaõ postas no rol das incuraveis: resolveose pois o sobredito enfermo a chamarme em quatorze de Abril de I687. Bem conheci a gravidade da doença, & que os symptomas, que padecia, eraõ mui próprios das hydropesias do bofe; porque lhe naõ faltava final algum daqueles,que costumaõ acompanhar huma enfermidade taõ mortal, que ninguem escapa della, & muito menos os homẽs ve-

Observaçaõ XVII.

velhos, como era o do presente caso; comtudo pelo naõ desalentar; lhe naõ dei a entender o grande perigo, em que estava; & para me certificar melhor se a doença era, ou naõ era tuberculo, (como os sinaes o attestavaõ) lhe tomei o pulso, & por largo espaço de que as pulsações humas vezes se percebiaõ, outras vezes se occultavaõ, porèm nem sempre, nem ao mesmo tempo; mas humas vezes faltavaõ às trinta pancadas, outras vezes às oitenta, outras vezes às vinte, & outras vezes às cem; & desta variedade de faltas vim a entender que as intercadências dos pulsos naõ procediaõ de tuberculo, ou hydropesia do bofe, (como erradamente presumiraõ alguns Doutores da mayor esfera) porque se destas causas procedessem, seria necessario que os pulsos faltassem sempre ao mesmo tempo, & guardassem sempre a mesma desigualdade; porque sendo as causas fixas, & permanentes, tambem os effeitos deviaõ ser permanentes, & fixos; pois (como diz o proloquio dos Filosofos) (I.) huma causa em quanto he a mesma, sempre faz o mesmo effeito. Assentei pois comigo que esta doença procedia de flatos mais, ou menos grossos, mais, ou menos permanentes, & que conforme a mayor, ou menor grossura, ou permanencia delles vinhaõ, ou deixavaõ de vir as intercadencias mais cedo, ou mais tarde; & pesadas bem estas razoẽs na balança do discurso, disse ao enfermo que estivesse de bom animo, porque eu esperava que brevemente cobraria saude, pois tinha conhecido que a difficuldade da respiraçaõ, & o estertor do peito, & as intercadencias dos pulsos não procedião de hydropesia, ou tuberculo no bofe; mas de obstrucções do ventre inferior, onde se fazião cozimentos viciosos, & destes se geravão humores depravados, & flatos perversos, os quaes se corrião para o ambito do corpo, causavão inchação, ou cachexia; se corriaõ para o peito, & os orgãos da respiraçaõ, fazião estertor, & angustia no respirar; se corrião para as arterias leves do bofe, causavão intercadencias, & K inter-

Lateral da página:

(I.) Idem manêns idem, semper opératur idem, vel falsem frequenter.

IIO Observações Medicas Doutrinaes.

interrupçoẽs nos pulsos; se finalmente corriaõ para outras partes, causavão outros symptomas differentes, proporcionados com as partes para onde corrião; & aindaque este mal no principio seja menos perigoso, comtudo se se despreza, ou dura tanto tempo, que se deprave a nutrição, costuma causar affectos lastimosos.

2. A indicação pois que eu tomei para curar esta enfermidade, foi purgar os humores superfluos; abrir as obstrucções, & emendar as intemperanças das entranhas: para purgar os humores usei do seguinte remédio, que he muito seguro, & fiel. Tomem de passes sem grainha huma onça, de polypodio de carvalho machucado dez oitavas, de folhas de losna, centaurea menor, & agrimonia, de cada cousa destas huma oitava, tudo se coza conforme as regras da Arte em panela de barro com tres quartilhos de agua commua, até que fique em ametade; & neste cozimento deitem de infusaõ quatro oitavas de folhas de sene de Lapata, & passadas seis horas, se coe tudo por hum panno bem tapado, & então se desatem neste cozimento tres oitavas de trociscos de Fioravanto subtilissimamente polvorizados, & se reparta esta bebida em tres partes iguaes, tomando a primeira pela madrugada; & com ella purgou huma materia viscosa, & feculenta, que estava pegada às paredes do estomago, & intestinos, & experimentou conhecido alivio. Na madrugada seguinte lhe mandei tomar outra parte do sobredito remedio, & teve mui feliz successo. Finalmente com a terceira porção do remedio experimentou a mesma utilidade.

E porque tive por impossivel que os sobreditos tres xaropes bastassem para acabar de vencer toda a doença, mayormente em hum corpo cheio de cruezas, & obstrucções, me resolvi (passados tres dias) a purgallo outras tres vezes em dias alternados, dandolhe cada dia huma onça de espirito da vida aureo, feito do sal volatil, & fixo das coloquintidas, circulados tantas vezes, atè que destes dois faes resulte hum arcano omogenio.

Os doutos, & os que não temem

Observaçaõ XVII.

tomar em as mãos alvas os carvões negros, bem me entendem; & os que não sabem cousa alguma da Arte Chymica, nem por isso devem desprezar os remedios, que não conhecem, mayormente depois de lhe constar que fazer effeitos maravilhosos; antes se quizerem saber grandes remedios, & segredos estupendos, leaõ de dia, & de noite os livros, não se poupem ao estudo, nem desprezem as conferencias com os que se cansaõ, porque sem trabalho não quer Deos que saibamos cousa alguma. (2.) E se or falta de retortas recipientes, alambiques, fornalhas, ou quaesquer outros instrumentos, ou pelas muitas occupaçoẽs, que sempre sosobrão aos Medicos, ou (o que he mais certo) por falta de mestre que ensine, não tiverem o sobredito espirito da vida aureo, não se envergonhem de pedirmo, porque se for para os pobres, o darei de graça.

3. Naõ he dizivel, nem ha palavras, que bastem para explicar o grande alivio, que o nobilissimo doente teve com o sobredito espirito da vida, que tomou em dias alternados; porque evacuando com elle grande quantidade de humores tartareos, glaciaes, & viscosos, que oppilavão os orgãos da respiração, não só começou de respirar mais facilmente, mas logo pode deitarse de hum,& outro lado,não podendo atè aquele tempo deitarse de alguma parte sem risco da vida.

4. Depois que por beneficio deste grande remedio entendi que o corpo estava bem purgado, puz toda a esperança da cura em abrir as obstucções, & confortar as entranhas, & para este fim lhe receitei os seguintes caldos, para tomar em vinte dias successivos. Tomem de cascas de raiz de lingua de vaca, de almeirão, de salsa das hortas, & de grama, de cada cousa destas duas oitavas, de folhas de pimpinella, de avenca, de fragaria, & de cerfolio, de cada coisa destas huma oitava, tudo se ponha a cozer em huma panela de barro com tres quartilhos de agua, & hum frangão, atè que fiquem sómente seis onças de cozimento, & coandose tudo com muita força, se ajunte a cada caldo K²

Lateral da página:

(2.) scientiam posuere dis sudore parandam.

II2 Observações Medicas Doutrinaes

destes cinco grãos de ouro diaphoretico, & vinte grãos de crocus martis, feito tudo por mãos de grande artifice; pedindo encarecidamente ao sobredito enfermo, que se queria escapar da morte, bebesse a menos agua que pudesse, & que estas fosse cozida com tres oitavas de cerfolio, ou em falta deste com pimpinella; & sem embargo que o ouro diaphoretico, & o crocus martis (sendo feitos or mãos de grande Chymico) sejaõ o meu segredo mimoso, assim para remedio das hydropesias universaes, como para as particulares do peito, nem por isso deixei de valerme do seguinte lenimento, que nas asthmas, & faltas de respiração costuma ser remedio celebrado.

Mandei derreter huma exundia de gallinha, & a este oleo derretido ajuntei outro tanto oleo de amendoas doces, & outro tanto oleo de lirios brancos, & oleo de Elefante, a que ajuntei huma pouca de cera bella, & formei hum unguento muito brando, & com elle quente fomentei muitas noites todo o peito, cobrindo-o com papel pardo,enfaixãdo com toalha pouco apertada; & foi Deos fervido q sarou de modo, que o elegeo El Rey por Governador da Bahia,aonde se occupou com tanto credito do seu nome, como utilidade da patria.

5. Desta Observação advirtão os Medicos modernos quatro cousas muito importantes assim para a saude dos enfermos, como o seu credito. A primeira, que os achaques rebeldes, (que quasi sempre tem suas raizes escondidas em partes profundissimas do corpo) não se podem curar de outro modo mais que com remedios, que conservaõ a sua virtude muito tempo, quaes saõ os mineraes,ou os metallicos; porque estes como saõ improporcionados ao nosso calor, não se rendem à sua actividade,& chegaõ com todas as duas forças aos lugares, em q as doenças estão; or isso vemos cada dia successos felicissimos com o uso dos medicamentos metallicos, & mineraes. A segunda cousa que devem advertir he, q se os remedios, ou sejaõ metallicos, ou mineraes, ou vegetaveis, aproveitarem alguma cousa dando - os poucos dias, aproveitaráõ muito mais continuando-os muitas vezes, com tanto que sejão applicados conforme a razão; porque (como dizem Galeno, (3.) & Hipocrates) (4.) não avemos de deixar de fazer os remedios, aindaque logo naõ vejamos grande melhoria com elles. Mas este conselho se deve seguir quando as doenças forem chronicas, ou vagarosas, porque a largueza, & demora das taes enfermidades daõ tempo, & lugar a que hum mesmo remedio continuado faça os bons effeitos, que se desejão: mas se as doenças forem agudas, & apressadas, naõ devemos porfiar com hum mesmo remedio muitos dias, porque a grande fressa, com que os males agudos correm, naõ permitte dilações; por isso tanto que virmos que hum remedio naõ aproveita, devemos deixallo, & lançar maõ de outro. Isto que Cornelio Celfo (5.) nos aconselha sobre persistir muito tempo, ou pouco em hum remedio, aconselha tambem Valesio (6.) sobre acudir com mayor pressa, ou vagar a curar as doenças : se forem chronicas, ou dilatadas, poderemos escolher tempo para as curar; mas se forem agudas, lhes devemos acudir a toda hora que o doente enfermar, & a necessidade o pedir.

6. A terceira cousa que os Medicos devem advertir he, que a respiraçaõ difficultosa procede muitas vezes da multidaõ de phlegmas pela mà disposiçaõ do figado; outras vezes procede da dureza do baço, ou figado, que aperta o diaphragma pela copia de agua, que redunda no peito; para as quaes cousas he utilissimo remedio o crocus martis repetido muitas vezes; com tal condiçaõ que se applique depois do corpo bem evacuado. A quarta cousa he, que as faltas de respiraçaõ, que procedem de asthma, principalmente de asthma secca, & he aquella que naõ tem estertor, nem sibilo, ou pintainhos na garganta, se devem curar com remedios antipilepticos, & antispasmodicos; porque me consta que a asthma naõ he outra cousa mais que huma gotta coral do bofe, ou hum affecto spasmodico, & convulsivo do mesmo bofe: K 3 affim

Lateral da página:

(3.) Galenus lib. I. de comp. medicam: per genera c. 4. fol. 212. ibi: Non est aurem a pharmaci usu desistendum, eriamsi muli is diebus nullum evidens presidium afferi e videaiur.

(4.) Hippocrates lib. 2. aphor. 523 fol. 199 ibi: Omnia secumdùm rationem facient i quamvis statim non succedant secundum desiderium, non est iranseundum ad aliud, stante eo, quod a principio visum est.

(5.) Cornelius Celsus lib. 3. de Re Medica cap. I. fol. 4I. ibi: In acutu morbis citò mutetur quod nibil prodest; in longis non statim condemnetur, si quid non statim profuit. Idem Author loc. cit. ibi: Magic ignoscendum medico est parum proficienti in acutis morbis, quem in longis; bic enim breve spatium est, intra quod si quad auxilium non profuit, aeger extinguitur, ibi & deliberarioni, & mutationi remediorum iepus parer.

(6.) Valesius lib. 4. meth. cap. I. mihi fol. 372. ibi: sunt quidam morbosi apparatus, aut morbi quidam, fed longi pro quorum curatione licet tibi eligere non horas, & dies solùm, sed & menses: acuti enim, aut omnino breves, tune curantur necessariò, cum incidunt.

II4 Observações Medicas Doutrinaes.

assim o diz Vanelmont, (7.) & eu digo o mesmo; porque jà curei algumas com os mesmos remedios, com que se cura a gitta cora, como saõ a agua de cereijas negras, a que ajuntei pò de unha de graõ de besta, pòs de guteta, de cranio humano, & pionia. Naõ faltaraõ pessoas, que estimuladas da inveja, ou malicia basfemaraõ dos sobreditos remedios, & de mim, porque os appliquei; mas a estas taes pessoas digo, que já tenho feito callo na paciencia, & que das suas detracções nem faço caso, nem os que me calumniaraõ por esta cura, deixaõ de conhecer que eu tenho alguns remedios especificos de grandes virtudes; mas desprezaõnos, & dizem mal delles só a fim de mostrarem que sabem outros melhores: mas de semelhantes Aristarcos já Galeno (8.

) se queixava. Poterio curou (9.) huma difficuldade de despiraçaõ, purgando ao doente quinze vezes com medicamentos benignos, & dandolhe muitos dias aço alcoolizadissimo.

OBsERVAÇAM XVIII.

De huma dor de estomago continua acompanhada com muitas flatulencias, azedumes de boca, fastio invencivel, & magreza excessiva; para remedio dos quaes synmptomas se consultàraõ alguns Medicos doutos, sem que as suas diligencias aproveitassem; & sendo eu consultado, appliquei, como remedio euporisto, & segredo maravilhoso, a hiera de Pachio, coroando a esta cura com as minhas pilulas absorventes, chamadas tambem antacidas ; com os quaes remedios se conseguio a saude desejada. 1. TAõ horriveis, & formidaveis saõ alg~uas doenças, que nem os Medicos mais doutos, & acautelados, nem os mais resolutos, & destemidos se atrevem a curallas, receando contrahir alg~ua injuinjuria, ou nodoa indelevel na sua fama: mas porque fera impiedade desemparar aos doentes nos seus perigos, he muitas vezes preciso entrar em a batalha obrigado mais da compaixaõ, & lastima, que da esperança do premio. 2. O Reverendo Padre Fr. Joaõ da Penitencia, Provincial da serafica Ordem Terceira, padeceo mais de hum anno humas dores taõ excessivas de estomago, huns azedumes de boca taõ insofriveis, hum fastio taõ horrendo, & huma magreza taõ rara, que excediaõ a todo o encarecimento: vendose o pobre Religioso cercado de tantos, & taõ crueis symptomas buscou os Medicos de mayor fama, que naquelle tempo avia em santarem, aonde elle estava morador. Trabalhàraõ elles quanto puderaõ em seguimento da saude, jà sangrando, jà purgando, jà apozemando, jà deitando ajudas purgativas humas, anodinas outras, & outras carminantes;, usando outras vezes de sanguisugas, de fomentações, de emplastros, & de mil remedios interior, & exteriormente applicados; naõ lhes esquecèraõ os amuletos, nem os medicamentos que curaõ por virtudes, & qualidades occultas, & sympateticas; finalmente esgotaraõ a medicina sem alivio: em resistencia taõ porfiada perdéraõ os Medicos a esperança da saude, & por isso deixáraõ ao doente ao arbitrio da fortuna; mas como a vida he muito amavel, naõ quiz o enfermo darse por rendido, nem largar as armas, antes animosamente quiz entrar em nova batalha, & procurar outros Medicos, em cujas mãos entregasse a defensa de huma cousa taõ importante como era a sua vida: succedeo pois que por erro, ou destino, quando vinha a Lisboa buscar hom~es taõ cheyos de annos, como de experiencias, encontrasse comigo, a quem huma, & outra cousa faltava, por ser ainda muito moço; & dandome conta do que padecia, & dos muitos remedios, que lhe applicàraõ sem proveito, me veyo ao pensamento, que o estomago era o complice de tudo, porque dos maos cozimentos delle procediaõ as cruezas, & destas os flatos 116 Observações Medicas Doutrinaes., as dores, os azedumes, a magreza, & o fastio, & por consequencia se eu lhe applicasse hum remedio, q juntamente alimpasse o estomago, & lho confortasse, cortaria com hum golpe a cabeça de tantos inimigos. Lembroume entaõ que eu tinha feito por minha curiosidade a hiera de Pachio, que parece estava destinada como em profecia para curar a doença do sobredito Religioso; porque (como diz scribonio Largio) (1.) nella se acha em summo gráo a virtude de alimpar, & confortar o estomago, de vencer as dores delle, de dissipar os fatos, de rebater as ancias, de curar as pontadas, & as dores de cabeça, a gotta coral, as parlesias, os tremores dos nervos, os caroços, & durezas dos peitos, & mil outras virtudes, que os curiosos poderaõ ver no sobredito Author, & por isso as naõ refiro aqui todas. Fundandome pois na grande virtude da soredita hiera, animei muito ao doente, dízendolhe que brevemente teria a saude que desejava: & naõ se frustrou a minha promessa; porque dandolhe seis vezes a hiera de Pachio em dias alternados, em quantidade de quatro escropulos, & em forma de pilulas, foi purgando com muita brandura, o estomago se foi fortificando, & fazendo melhores cozimentos, & se desvanecèraõ os flatos, as azìas, as dores, & todas as mais queixas; & cobrou a saude, que lhe tinha vaticinado. 3. Neste lugar me perguntaráõ os curiosos: E se succedesse que a hiera de Pachio naõ curasse ao doente com tanta felicidade como o curou, que remedio lhe avieis de fazer? Respondo, que ainda sabia muitos, & entre elles dous singularissimos: porque (como ensina Galeno) (2.) todo o Medico que quizer curar bem, & fazer curas de grande credito, deve ter preparados muitos remedios, ou ao menos dous, os mais efficazes que ouver naquelle genero, & os mais brandos, & benignos, paraque com hum, ou com outro, ou com ambos possa soccorrer aos enfermos: & sem embargo que ao doente, de que fallo nesta Observaçaõ, lhe naõ foi necessario outro mais que as sobrebreditas Observaçaõ XVIII. 117 pilulas de Pachio, quero eu agora, em serviço do bem commum, dizer os taes remedios; hum dos quaes he a agua seguinte, que para excitar o appetite de comer, & tirar o fastio, he quasi milagrosa, & se prepara do modo seguinte. Tomai de folhas de agrimonia, de losna, & de centaurea menor, de cada cousa destas meya maõ cheya, tudo se coza em panela de barro com tres quartilhos de agua commua, & a este cozimento coado ajuntem tres onças de assucar, & cada dia dem ao doente meyo quartilho em jejum, & antes de seis vezes terá taõ grande fome, que naõ averà comer, que lhe baste, como tenho observado muitas vezes, principalmente em hum Cappellaõ do Embaixador de Carlos II. o qual teve hum fastio taõ grande, que nenhuma cousa podia comer, mas depois que por meu conselho tomou esta agua, comia com tal fome, que parecia fome canina; & ficou taõ obrigado ao tal remedio, que me pedio a receita para levar para Castella. E se acontecer que esta agua falte por causa das acerbas aguajens, ou por causa dos flatos, & rugidos do ventre, & estomago, podem usar do pò da tunica da muela da gallinha, de que tenho visto maravilhosos effeitos; ou se podem valer das minhas pilulas absorbentes, que indubitavelmente se tiraráõ os azedumes, & flatulencias, com tal condiçaõ, que em cada caldo de frangaõ, ou de gallinha, desatem dous escropulos das ditas pilulas; mas com tal advertencia, que o caldo seja magro; porque sendo gordo, ou manteiguento, lhe naõ aproveitaràõ as pilulas; porque os azeites, as gorduras, & as manteigas, saõ a causa total das azìas, dos flatos, & dos máos cozimentos. 4. Aqui he digno de reparar porque razão sendo o sobredito doente curado tanto tempo por Medicos doutos, nenhum alivio tivesse, melhorando com tanta brevidade nas minhas maõs só com as pilulas de Pachio. A esta pergunta respondo, que pára fazer huma cura boa, naõ basta só que o Medico seja grande letrado; he tambem necessario que saiba grandes, & efficazes 118 Observações Medicas Doutrinaes. remedios; porque na opiniaõ de Asclepiades, (3.) he Medico de duzias aquelle, que para qualquer achaque naõ tiver preparados alguns remedios selectos, porque com elles atè hum barbeiro, ou qualquer velha ignorante farà milagres; & sem elles nem Hippocrates, nem Galeno faraõ curas, que boas sejaõ. 5. Ultimamente, como nas cousas humanas, por mais boas, & experimentadas que sejaõ, aja tantas falencias; digo que se qualquer dos sobreditos remedios faltar, appellem para abrir duas fontes em ambas as pernas, porque com ellas tenho visto maravilhosos proveitos em semelhantes queixas do estomago, de que pudera allegar infinitos exemplos, senaõ temèra enfadar aos leitores.

OBsERVAÇAM XIX

De huma diarrhea, ou camaras colericas, que depois de durarem seis meses, degeneraraõ em lientericas taõ rebeldes, que tres Medicos de grande nome perderaõ as esperanças de curallas: neste aperto disseraõ à doente, que eu tinha curado a algumas pessoas de semelhante enfermidade; & com esta noticia me chamaraõ, & dentro de hum mês livrei da morte a sobredita senhora, que viveo, depois desta cura, trinta anos, quando nem trinta dias esperava viver.

1. seis meses continuos padeceo a ilustre senhora Dona Maria, mulher de Dom Miguel Pereira, huma diarrhea, ou camaras coléricas, para cujo remédio se chamaraõ tres grandes Medicos, & vendo eles naõ só as outrinas muito vermelhas, mas grandes amargores de boca, & excessivo fastio, & que a câmara era retinta de cor muito amarela, assentaraõ entre si que tudo procedia de quentura do fígado, & entranhas, & que para se refrescarem estas, era necessario deitarlhe todos os dias duas ajudas attemperantes, & fangralla humas vezes nos pes em razaõ do sexo feminino, outras vezes no braço direito na vea d’Arca, naõ fo para revelir os humores colericos, que cahiaõ nos intestinos, mas para temperar o fervor do sangue; dandolhe finalmente tres sangrias na costa da maõ direita, na vea salvatella: tudo isto se executou; mas sem alivio: resoveraõse a purgalla duas vezes com remédio corroborante; mas também sem proveito: appellaraõ para os remédios incrassantes tomados pela boca, como foraõ geleas de mãos de carneiro, arroz cozido com sebo de bode, forvas secas,, caldos feitos de partes iguaes de farinha, de favas torradas, & de bolotas, caldos de amido feitos em agua cozida com alquitira, marmelada de çumos comida em jejum, & antes de jantar, & de cear, lambedor de sorvas, o pò das tunicas interiores das castanhas assadas, o pò da raiz da erva limonio, o pò da ova do peixe Anjo apanhado em Mayo: ordenaraõlhe bebesse pouca agua, & ella que fosse cozida com meya onça de limadura de osso de veado, & meya oitava de pò de alquitira: fizeraõlhe tomar por baixo basos de vinagre forte cozido com çumagre, & pinhas bravas: valeraõse dos fumos do cerol, & do esterco de burro: fomentaraõlhe o ventre com unguento da condeça; ordenandolhe com a erva Anthemis, que quanto mais se piza, tanto mais cresce; & com a Palmeira, que quanto mais carregada de peso, tanto mais levanta as suas ramas; ou com o fogo, que quanto mais o pertendem apagar com o sopro, tanto mais crescem as suas lavaredas; entenderaõ certamente que a dita senhora morria, pois com taõ decantados remédios peyorava: com tudo, porque nada ficasse por exeperimentar, me chamaraõ a 16. de Fevereiro de 1670.

2. Avendo de começar a cura, foi a primeira diligencia ver a câmara, porque do conhecimento della pendia o acerto do remedio: conheci pois que as camaras naõ eraõ diarrhea, como até aquelle tempo tinhaõ sido, porque o excremento não era amarelo como açafrão; nem eraõ dysentericas, porque não tinhaõ sangue; nem eraõ tenesmodicas, porque nem avia puxos, nem ardores no sesso; nem eraõ chylosas, porque naõ sahia o chylo, ou matéria branca como caldo de farinha; nem eraõ celíacas, porque o comer que sahia pela câmara naõ vinha de todo cru, nem de todo cozido: conheci porèm que as camaras eraõ lientericas, porque na câmara vinha todo o comer cru do mesmo modo, com que tinha entrado pela boca, sem mudança, nem alteraçaõ alguma.

3. Assentado pois que as camaras eraõ lientericas, considerei que a lienteria procede, ou por fraqueza, & relaxação da faculdade retentiva do estomago, que naõ podendo reter os mantimentos todo o tempo necessario para se cozerem, & converterem em chylo, o deixaraõ sahir por baixo cru, & inalterado; ou procede por irritaçaõ da faculdade expulsiva do estomago, que por sentir dentro em si grande carga de humores damnosos, os quer deitar fora, & a volta deles deitaõ o mantimento. E porque a doente estava muito fraca, & fastienta, entendi que as taes camaras mais procediaõ de fraqueza, & relaxação do estomago, que de irritaçaõ dos humores, & afim lhe apliquei remédios confortativos, paraque se apertassem as rugas, & dobrezes do dito estomago, que por relaxadas, & amolecidas eraõ occasiaõ do mantimento sahir fora do corpo. Para isto apliquei o seguinte emplastro, de que tenho grande experiência. Tomai de folhas de murta, de loína, & de ortelãa, de cada cousa destas huma maõ cheya: de calcas de romãa; de maçãs de acipreste, & de cascas de castanhas, & de çumagre, de cada cousa destas meya maõ cheya, tudo se machuque, & coza a fogo lento com tres quartilhos de vinho tinto, atè que fique ametade, & cíta se guarde em garrafa bem fechada, & em tres onças do tal vinho mandeiensopar duas onças de codeas de paõ torradas, ajuntando ao tal biscouto outras tanta quantidade de marmelada de çumos, hum punhado de folhas de losna, outro de ortelãa, & em hum gral de pedra mandei pizar todas estas cousas, atè que ficasse huma massa igual, & uniforme, & desta estendi huma pouca sobre hum panno, & borrifandoa com o sobredito vinho, a polvorizei com pòs de murta, canela almecega, & aromático rosado, applicando este emplastro quente sobre o estomago, & ventre duas vezes no dia: porèm como o efeito deste remedio naõ correspondesse ao meu desejo, appellei para fomentar o estomago, & ventre com o balsamo de copaíba, cuja virtude em semelhantes casos costuma ser maravilhosa; mas como esta diligencia também se frustrasse, suspeitei que as camaras procediaõ de irritação, & carga do estomago, & que por isso peyorava com os confortativos, & adstringentes, porque naõ queria a natureza, que lhe retivessem os humores, que como fermento damnoso a irritavaõ, & perturbavaõ as suas obras. Assentando pois que os cursos naõ procediaõ de relaxação, ou fraqueza, mas de irritação, & copia dos humores, tratei de evacuallos, porque sem isso seria impossível curar a doença, & para este fim fiz tomar à doente, tres dias sucessivos, o meu xarope, que juntamente he purgativo dos humores, & confortativo das entranhas, & se prepara do modo seguinte. Tomem de casas de myrobalanos citrinos tres oitavas, de ruibarbo escolhido oitava & meya, façaõse estas duas cousas em pò grosso, & deitemse de infusaõ por tempo de doze horas em huma canada de agua de tanchagem bem quente , & passado o dito tempo, se deite fora a agua, & se sequem os pòs a fogo lento, & entaõ se farà hum cozimento fresco cordeal capaz de se repartir em tres partes iguaes, & no tal cozimento (estando ainda quente, mas jà fora do lume) mandei deitar os sobreditos pós preparados, & deixando-os ficar de infusaõ outras doze horas, se coe o cozimento, & se reparta em tres quinhoes iguaes, ajuntando a cada quinhão onça & meya de xarope chamado das nossas rosas. Acabados que foraõ de tomar os três xaropes, teve a doente huma taõ grande melhoria, que todos cantaraõ a vitória; mas este gosto durou pouco, porque começou a ter camaras lientericas procedidas, a meu ver, de que o estomago com a excessiva evacuação que teve, se debilitou de modo, que não pode cozer os alimentos, & por esta razaõ precisamente sahiam fora do corpo crus pela via da camara, & consequentemente naõ se cozendo os alimentos, não podia aver chylo, & não o avendo, faltava a matéria de que se aviam de formar o sangue, os espirios, o Ros, o Cambio, & o Gluten; & por isso o corpo se hia emagrecendo, & marasmando. Feito assim este juizo, resolvi que o unico remedio avia de ser o uso do aço, porque só este ( àlem de ser grande alcalico, & absorvente dos humores ácidos) abre eficazmente as opilações, & ficando os caminhos desempedidos, naõ só parariaõ as camaras lientericas, mas se faria boa fanguificação, & nutrição. Deilhe pois as pílulas de aço, (a que, vulgarmente chamamos de Paulo Antonio) vinte manhãas; porque nunca me pareceo boa pratica, & uso dar o aço à tarde; porque naquellas horas naõ está o estomago taõ limpo, & despejado como nas manhãas: & foi o sucesso taõ admiravel, que pareceo obra de encantamento; porque estando esta senhora já pranteada, quanto me chamaraõ, logrou, por beneficio desta cura, trinta anos de vida.

4. Duas cousas quero advertir aos Medicos principiantes. A primeira he, que quem ouver de curar camaras, as veja todos os dias, assim para conhecer a qualidade dellas, como para tirar a causa donde procedem, porque de outra sorte quem pertender curallas com emplastros adristingentes, ou com remédios engrossantes, farà hum erro sem desculpa; pois naõ há jà barbeiro taõ ignorante, nem velha taõ simplez, que naõ saiba, que em quanto a causa dos cursos estiver dentro no corpo, sera mais prejudicial supprimillos, que deixallos correr à revellia; porque de naõ aplicar remedios, naõ se faz agravo à natureza, anres naõ a fatigando, pode ella acudir por fi, & remediarse; porèm, querendo reterlhe os humores dentro com os remedios adstringentes, lhe fazem hua grande violência, repugnando às suas leys, que pedem se deite fora o que he damnoso. Este parecer tem em seu favor a autoridade do grande Medico Valhes, (I) o qual diz que mayor erro he fazer algu remedio quando naõ avia de fazer, que deixar de o fazer quando se devia obrar; porque póde a natureza como douta, & mestra fazer aquella mesma obra, que o Medico por descuido, ou ignorância deixou de fazer; mas pelo contrario obrar, quando se devia naõ obrar, he ir contra os dictames da natureza: o que he erro de mayor grandeza.

5. A segunda cousa, que quero advertir aos Medicos principiantes, he, que o aço naõ só curou as camaras sobreditas pela virtude absorvente, com que temperou a mordacidade dos humores irritantes, mas porque com o exercício, que com ele se fez, se abriraõ os poros, & se fez melhor a transpiraçaõ; o que he taõ conveninente para impedir as camaras, que gravíssimos Authores nas camaras muito teimosas mandaõ dar suores de estufa. Claramente se deixa conhecer esta verdade; pois experimentamos, que nos dias, & tempos muito frios, & nos homens de pelle muito grossa, como transpiraõ menos, outrinaõ, & cursaõ mais; & pelo contrario experimentamos que no tempo quente, & os que tem a pelle muito delgada, como transpiraõ muito, por terem os póros mais abertos, ourinaõ, & cursaõ pouco; assim o entendeo o insigne Medico Gabelchofero; (2.) & daqui acabo eu de entender a razaõ, porque no fim do Estio, & no principio do Outono, reynaõ mais as camaras, que nas outras quadras do anno.

OBsERVAÇAM XX.

De hum fluxo de almorreimas taõ grande, & continuo, que debilitou as officinas naturaes de maneira, que em lugar de gerarem sangue bom, & saudável, geràraõ tanta quantidade de soros acres, que naõ podendo a natureza deitallos fora de si, se foraõ ajuntando, & crescendo de tal forte, que fizeraõ huma hydropesia perigosissima, a que eu acudi com alguns remedios especificos, cujo effeito foi taõ feliz, que salvou o doente a vida, quando só se esperava a morte.

I. Muitas pessoas ha, que em certos tempos do anno, ou em diversas horas do dia deitaõ sangue por differentes partes do corpo; humas o deitaõ pelas almorreimas, outras pelo nariz, outras pela via da ourina, outras pela madre; & taõ longe estaõ os ditos fluxos de ser damnosos, que algumas vezes saõ muito uteis, com tanto que naõ sejaõ excessivos, porque se o forem, se prostaráõ as forças, se enfraqueceráõ as officinas, & se extinguirà o calor natural de tal maneira, que os doente perderáõ a vida, ou, a bom livrar, perderaõ as cores, & ficaráõ languidos, molares, fastientos, balofos, inchados, & hydropicos; no qual caso deve o Medico empenharse muito em suspender logo os ditos fluxos, ou diminuillos, sob pena de cômetter hum erro sem desculpa. Em confirmaçaõ desta verdade me seja permitido referir o caso seguinte.

2. O Muito virtuoso Padre Fr. Estevaõ, Dominicano Hybertnio, tinha varias vezes no anno hum fluxo de sague hemorrhoidal, com que se achava muito aliviado, & lograva saude; porèm (naõ sei porque causa) passados algus annos se lhe esquentou, & adelgaçou o sangue de tal modo, que o dito fluxo passou de interpolado a continuo, & de moderado a excessivo & como o doente estivesse costumado a ter a sobredita bredi

OBsERVAÇAÕ XX. 125

evacuaçaõ (postoque menos grande, & menos repetida) sem que experimentasse damno, antes conhecido proveito, entendeo lhe naõ poderia fazer mal o consentilla, & assim a deixou continuar mui largos tempos sem querer suspendella, atè que enfraquecidos os espiritos, & debilitada a faculdade sanguificante (pelo muito sangue que tinha evacuado) cahio em huma cachexia, perdeo as cores, & se fez balofo, inchandolhe todo o corpo, como se estivesse hydropico; ao que se ajuntou huma fraqueza taõ grande, que nem se podia ter em pè, nem dar huma passada sem muito trabalho.

3. Neste aperto recorreo o dito enfermo ao meu conselho, paraque lhe acudisse; & entendendo eu que a causa do sobredito luxo procedia de copia de soros acres, & salsuginosos, que esquentavaõ, & irritavaõ o sangue, paraque sahisse por qualquer parte que pudesse, determinei purgar logo os taes humores, paraque deitado fóra do corpo o fermento acrimonioso, que irritava, & arrarava o sangue, se reprimisse o fluxo, & para este effeito lhe receitei, para tres dias, a seguinte purga, que para semelhantes casos he mui celebrada. Tomar de cascas de myrobalanos citrinos duas oitavas, de folhas de tanchagem huma maõ cheya tudo se machuque levemente, & se coza a fogo lento em panela de barro com meya canada de agua da fonte, & em cinco onças deste cozimento coado deitei de infusaõ, por huma noite, dous escropulos de ruibardo escolhido, & vinte grãos de espicanardo, & coandose pela manhãa este licor, lhe mandei ajuntar tres onças de xarope das nossas rosas, & deste modo mandei se continuassem tres bebidas em dias sucessivos; sem embargo porèm que a inchaçaõ, & fluxo hemorrhoidal se diminuiraõ muito com estas purgas repetidas, naõ sortiraõ effeito taõ feliz, que me desobrigassem de appellar para o seguinte cordeal, que para hua, & outra doença he mui appropiado. Tomai de raizes de pentafilaõ, (a que a gente vulgar chama solda, ou tormentilla) huma oitava, de folhas de tanchagem L 3 cha

126 OBsERVAÇÕEs MEDICAs DOUTRINAEs.

, & de polygono, (chamada por outro nome centinodia, & na lingua Portugueza erva andorinha,) de cada cousa destas huma maõ chea, tudo se coza em panela de barro com duas canadas de agua commua, & a este cozimento coado ajuntei tres oitavas de coral bem preparado & outras tres oitavas de crocas martis adstringentes; & deste cordeal mandei bebesse o doente, mas com grande moderaçaõ, por naõ acrescentar a inchaçaõ, nem o fluxo das almorreimas, porèm como as veas hemorrhoidaes estivessem muito enfraquecidas, & relaxadas, assim pela grande quantidade de sangue, que aviaõ deitado, como pela muita duração da doença, facilmente tornou a cahir no mesmo fluxo, para o que ajudavaõ muito as forças que fazia, quando cursava; principalmente ferido os excrementos duros; & vendome obrigado a acudir novamente ao sobredito fluxo, entendi que o modo mais seguro de suspendello era darlhe algum vomitorio; porque (como diz Galeno) (I.) nenhum remedio aproveita tanto nos achaques das partes vergonhosas, & fluxos de humor que para ellas corre; & por estas razaõ lhe dei tres onças de agua benedicta vigorada : & naõ me sahio baldada a esperança; porque tomando o tal remedio vomitou, & divertio tanta quantidade de coleras, & humores serosos, que affirmou estava saõ; mas como, passadas poucas semanas, lhe tornasse novo fluxo hemorrhoidal acompanhado com grandissimas dores, entendi que tudo procedia de acrimonia, & azedume dos humores, por estarem pervertidos, & affastados de sua natural temperança: porque (conforme o sentir dos Medicos modernos) todas as dores, ou sejaõ de pleurizes, ou de almorreimas, ou de gocta, ou de dentes, ou rheumaticas, ou ictericas, procedem do acido errante; (2.) nos quaes casos, para fixar, & rebater a acrimonia, & azedume dos taes humores ordenei o seguinte remedio. Tomem de coral vermelho, substissimamente preparado, huma onça, de folhas de polygono (a que vulgarmente chamamos erva andorinha) seis oitavas, de sangue de dragão meya

(I.) Galenus lib. 13. meth. cap. II fol. 83. ibi: At vomitu uti pudibundis laborantibw, in diverse revellens auxilium est.

(2.) Dolores fiunt ab acido errante.

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meya onça, tudo se polvorize substilissimamente, & se misture, & reparta em trinta quinhões iguaes, & os tomarà o doente, em quinze dias sucessivos; em jejum, & à noite duas horas antes de cear, misturados em seis onças de agua cozida com a erva polygono, ou com seis onças de agua de tanchagem misturada com hua onça de agua de claras de ovos bem batidas, ou em hum pouco de assucar rosado velho; & foi cousa pasmosa ver a certeza com que os fluxos das almorreimas paràraõ, & a brevidade com que cobrou saude.

4. Com este mesmo remedio curei a muitos doentes, que padeciaõ semelhantes dores; & fluxos, assim hemorrhoidaes, como uterinos; mas se algum dia succeder que o dito remedio falte com o seu bom effeito, o que raras vezes tenho visto, pendurem as pescoço hum sapo secco metido em hum saquinho de rafeta, de forte, que fique sobre o estomago; nem tenho menos bom conceito de por sobre a regiaõ do figado, & plantas dos pès, folhas de ortigas pizadas com vinagre forte; ou, o que tenho por muito melhor, a erva sempre viva, cujas folhas saõ mui semelhantes às folhas de ensayaõ, excepto que saõ mais compridas, & puntiagudas; mas se todos estes remedios naõ bastarem para suspender os fluxos sanguineos, saibaõ que eu tenho hum segredo taõ efficaz, & de virtude taõ admiravel, que excede a todos os remedios do mundo, para curar os fluxos de sangue de qualquer parte que sahir, como os curiosos poderaõ ver na minha Polyanthea nova fol. 853. desde o numero 55. até o número 66. aonde acharão nomeadas muitas pessoas, que estando morrendo por causa dos fluxos de sangue que deitavaõ, ja pela boca, já pelo nariz, já pela madre, já pelo cano, já pelas almorreimas, segurarão a vida com o meu segredo; o qual darei de graça aos pobres, & o venderei aos ricos com huma condição taõ fidalga, que tornarei o dinheiro, se dentro de seis dias não estancar o sangue, por mais copioso que seja.

5. Bem sei que a malicia dos Aristarcos (3.) ha de sentir mal desta minha offerta, dizendo q o total motivo tivo

(3.) Perfidus homo lenivit flores maleificis fuccis, & in venenum multa convertit. Quintilianus declamatione 13.

128 OBsERVAÇÕEs MEDICAs DOUTRINAEs.

porque louvo tanto a este, & a outros meus segredos, he por ambiçaõ de que mos comprem; comtudo naõ desconfio que aja muitos homens de animo taõ bem intencionado, que ( à imitação das mellificas abelhas) colhaõ desta minha inculca, como de flores salutiferas, suave mel, & louvem o bom animo, com que desejo valer aos enfermos nas doenças de mayor risco; porque se eu louvara os meus remedios só com os olhos no interesse, naõ ensinaria tanta immensidade de medicamentos eficacissimos, como ensino; mas quem ensina primeiro tantos de graça, he paraque se valhaõ delles, & quando naõ aproveitem, parece que he serviço, que faço aos meus proximos, dizerlhes que se valhaõ dos segredos, que por serem mais prodigiosos, naõ fiei a composição delles de outras mãos, senaõ das minhas; quem ainda assim presumir que a inculca que faço dos meus remedios he nascida de puro interesse não use delles, que sem os thesouros, que me avia de dar, posso viver; advertindoo que Enio (4.) sendo hum gentio dizia, que todo o bem, que se pudesse fazer sem damno proprio, se devia fazer até aos estranhos.

(4.) Quidquid sine detrimento potest commodari, id tribuatur velignoto.

OBsERVAÇAM XXI.

De huma dor de colica taõ grande, & rebelde, que nem aos remedios frios, nem aos quentes, nem aos especificos, nem aos narcoticos quiz obedecer; rendendose somente a huma purga de mannà desatado em oleo de amendoas doces feito sem fogo.

1. O Visconde General Pedro Jaques de Magalhaens teve hua dor de colica taõ violenta, que cuidou perder a vida com ella, & em quanto se foi chamar o Medico, tomou huma ajuda de meyo quartilho de caldo de gallinha, cinco onças de assucar mascavado, & dous vintens de diaprunis; & sem embargo que obrou muito bem com ella, se exasperou a dor com tão grande excesso, que chamou o Consessor, & se dispoz para morrer: porque, dizia elle, que tendose achado em varios conflictos de guerra, se naõ vira taõ vizinho da morte, como naquella hora estava: neste tempo cheguei a visitar ao dito senhor, & em quanto estive ouvindo a sua informaçaõ, me lembrou ter lido em Galeno, (r.) & em outros muitos Doutores, que as dores de colica eraõ tão difficultosas de distinguir, que elles se enganaraõ muitas vezes com ellas, imaginando que erão dores nephriticas, sendo colicas ordinarias; ou que eraõ colicas ordinarias, sendo dores nepliriticas. Pelo que julguei que era necessario conhecer primeiro se a tal dor era colica ordinaria, ou nephritica, porque se fora colica nephritica, avia a dor estar fixa no rim, & delle avia de estenderse até o testiculo, segundo o comprimento da uretera, & avia.de ter continuas vontades de vomitar, & ourinar com ardores, & em pouca quantidade. Mas como a dor não era fixa, antes se espalhava por diversas partes do ventre, principalmente junto do embigo, subindo da parte direita até o fundo do estomago, & do fundo delle descendo pela parte esquerda atè a verilha, com arrotos continuos, adstricçaõ de ventre, & difficuldade na sahida das ventosidades, me persuadi que mais era dor de colica causada de cruezas, & fezes reteùdas, ou de flatos reprezados das cavidadades, & tunicas dos intestinos, ou de inflammações, ou lombrigas, do que de pedra, ou areas; porque qualquer destas cousas podem aggravar, & distender a continuidade do intestino Colon: comecei pois a considerar qual destas seria a causa, para conforme a ella applicar o remedio, & me persuadi que as taes dores naõ procedião de inflammação, porque não tinha febre, nem calor grande junto do ventre: nem procedião de lombrigas, porque não tinha deitado alguma em sua vida: nem rangia com os dentes: nem tinha comichão no nariz: nem dormia com os olhos meyos abertos: nem tinha estremecimentos, nem outros sinaes que andaõ annexos aos que as tem: mas conheci que as taes dores proceediaõ de fezes endurecidas, ou de humores crus, ou de flatos gérados pelos taes humores; porque tinha adstricção, & dureza de ventre, com grandes rugidos de tripas, & por isso (para abrandar as fezes, & as deitar fóra) preparei huma ajuda emolliente, na fórma seguinte. Tomem raizes de malvaisco machucadas, folhas de alfavaca, violas, & ortigas mortas, de cada cousa destas huma maõ cheya, de macella, & de coroa de Rey, de cada cousa destas meya maõ cheya, de erva doce meya oitava, tudo se coza com hum frangaõ, & em cinco onças deste cozimento mandei soltar huma onça de benedicta com duas onças de oleo de macella, & outras duas de amendoas doces, com huma oitava de salgema, que para dissolver as fezes duras tem grande virtude; & com esta ajuda tibia evacuou copiosamente, mas com pouco alivio; por cuja causa lhe mandei deitar outra carminativa preparada do modo seguinte. Tomem de aristoloquia machucada duas oitavas, de folhas de ortelãa, de arruda, palhas alhas, alfavaca, macella, & coroa de Rey, de cada cousa destas meya mão cheya, de semente de funcho, de alcorovia, & de açafrão, de cada cousa destas hum escropulo, de tudo se faça cozimento em partes iguaes de caldo de gallinha, & ourina de menino; & coandose, tomei do dito cozimento cinco onças, de oleo de macella, & de amendoas doces, de cada cousa destas tas duas onças, de beneÏdicta laxativa huma onça, de salgema huma oitava; com a qual ajuda posto sentio grande alivio, foy para repetir com tal crueldade, que fez desesperar ao doente: neste aperto usei de huma ajuda de meyo quartilho de ourina de menino virgem (f)servida com huma oitava de raiz de aristoloquia: & como a dor nem a este remedio obedecesse, appellei para meya oitava de pó de raiz de parreira brava misturada com vinte grãos de flores de enxofre, fazendolho tomar em quatro onças de caldo de gallinha, ou de perdiz. Mas como tão grande remedio lhe não aproveitasse, mandei que sobre o embigo lhe applicassem huma cabeça de alhos assada, & bem quente, ou lhe puzessem sobre a barriga huma bexiga de vacca com tres partes de leite, & huma de mel quente, & q no mesmo tempo metesse os pès em hũa bacia cheya de vinho taõ quente que mal o pudesse sofrer. Com estes remedios se tirou totalmente a dor por tempo de hũa hora, mas foi para tornar a vir com mayor impeto. Neste conflicto appellei para o seguinte cataplasma, de que sempre vi maravilhosos effeitos. Tomem de oleo e macella, & de banha de flor, de cada cousa destas huma onça, tudo se ponha a ferver com huma mão cheya de ortelãa, & alfavaca, & nestes oleos coados se frija huma filhò de estopa ensopada em tres gemas de ovos batidas, & então se deite a dita filhó dentro nos oleos, que estão fervendo, & no espaço de huma Ave Maria se coalharaõ os ditos ovos, & logo tiraraõ a tal filhó, & a polvorizaraõ com pòs de canela, & alfazema, & a poraõ sobre o embigo: com a qual, filhò desappareceo totalmente a dor; mas antes de huma hora tornou a repetir mayor que dantes. Nesta variedade entrei em duvida se a tal dor procederia de humor, ou flato quente: & a razaõ q tive para duvidar foi, porque supposto se aliviava muito com as cousas quentes; comtudo, como dentro, de breve tempo tornava a padecer com mayor crueldade, ficavame lugar para presumir que de quentura procediaõ as taes dores, & por isso tentativamente lhe appliquei sobre o ventre hum prato frio, para examinar se a dor se augmentava, ou diminuhia; & foi cousa pasmosa a brevidade com que se ausentou, ficando o doente totalmente livre. Com esta melhoria taõ grande tive para mim que a tal dor procedia de quentura, & que com remedios frios a avia de curar, & por isso lhe mandei deitar huma ajuda preparada de cinco onças de agua de tanchagem, & huma de vinagre com tres onças de assucar branco: o qual remedio cura por modo de encanto as dores de colica, que procedem de quentura, ou inflammaçaõ, ou dureza das fezes: & sem embargo que a dita ajuda, em razaõ do vinagre, causasse grande medo aos circunstantes; comtudo eu tenho grande conceito della; porque o vinagre destemperado com a agua mollifica muito as fezes duras; & tempera pera maravilhosamente as inflammações, & as dores quentes, como se deixa ver nos gargarismos, que se fazem com vinagre destemperado para inflammações da garganta; & nas feridas,que para se naõ inflammarem, se cobrem com pannos picados, molhados em vinagre destemperado com agua rosada; & por esta causa julguei lhe seria utilissima a tal ajuda: & não me enganei; porque tomandoa, lhe aplacou logo a dor, & facilitou a camara; mas antes de passarem duas horas cresceo outra vez de maneira, que todos julgavaõ tinha chegado a morte. Neste conflicto lhe quiz dar hũa oitava de priapo de touro, ou dous escropulos de pò da tunica que està dentro na muela da gallinha; porque me consta, que qualquer destes dous remedios tem obrado effeitos maravilhosos em curar dores de colica, & de estomago; mas porque naquella hora naõ tinha em casa os taes remedios preparados, lancei maõ de huma oitava de pò de esterco de ratos, cuja virtude naõ he inferior aos mais decantados remedios; mas vendo que naõ aproveitàra, me lembrou que Galeno, (1.) & Avicenna (2.) louvavaõ muito para as dores de colica, & de barriga (não sendo causadas de inflammaçaõ) huma ventosa de boca grande, deitada com muito fogo sobre o embigo; appliqueilha, mas sem proveito; nesta desesperaçaõ puz toda a esperança nos remedios narcoticos, começando pelos mais brãdos, & benignos, & assim lhe appliquei o seguinte, que he excellentissimo. Tomem de çumo de folhas de meimendro quatro onças, de leite de burra, ou de cabras meyo quartilho, misturese huma cousa com outra, ajuntandose tres gemas de ovos cruas, & neste licor ensopem o miolo de hum paõ tirado daquelle instante do forno, & se façaõ huma papas, que te ponhaõ sobre todo o ventre, & estomago. Neste tempo vendo vencidas humas dores taõ pertinazes, que nos davamos os parabens huns a outros; mas (oh caducos gostos da vida humana, como sois falliveis, & nada perduraveis !) pouco a pouco tornaraõ a resuscitar as dores com tanta vehemencia, que fizeraõ delirar ao doente.

2. Confesso que neste aperto naõ sabia resolverme no caminho que avia de seguir: porque porfiar com os mesmos remedios, que que naõ avia tirado fruto, seria teima indisculpavel: fazer outros à vista de tantos, taõ excellentes, & com tão bons fundamentos applicados, pareceria cegueira, ou deslumbramento do juizo: desemparar ao doente era especie de tyrannia. Em taõ apertado conflicto ja naõ achava outra amarra a que me apegar , senaõ aos remedios narcoticos mais activos, & valentões, quaes saõ o laudano opiado, ou o laudano liquido. Nem me acovardou o dizer Galeno (3.) que todas as vezes, que pudermos curar com os remedios communs, & ordinarios, fujamos dos opiados, & narcoticos: porque tambem elle diz que se virmos que pela vehemencia das dores, ou faltas do somno sevaõ prostrando as forças, & o doente se vay despenhando na sepultura, que em taes casos usemos confiadissimamente dellcs; porque elle os dava nas grandes dores de colica, dos olhos, dos ouvidos, & em quaesquer outras vehementissimas. Fiado nesta doutrina, & na de Cornelio Celso, (4.) em que nos aconselha, que nos grandes perigos he melhor fazer algum remedio, ainda que seja duvidoso, que deixar morrer ao doente com certeza; & lembrandome que o grande Valhes diz, que naõ deixemos aos doentes nas mãos do inimigo, em quanto ouver algum soccorro na Arre, me deliberei a dar ao sobredito Visconde tres grãos de laudano opiado em forma de pilula; para a qual resoluçaõ me animou muito a experiëcia de Riverio, (5.) o qual em outra dor semelhante usou do laudano opiado com successo maravilhoso. Mas como os remedios narcoticos sejaõ mal opinados entre os que naõ saõ Medicos, por isso alguns parentes, & amigos do enfermo naõ queriaõ estar estar pelo meu voto. Comtudo o illustrissimo doente tinha em mim taõ grande crença, que logo tomou o sobredito laudano, com o qual se tirou a dor por espaço devinte horas; mas passadas ellas, tornou a repetirlhe com a mesma ferocidade que no principio.

3. Neste caso me foi preciso entender que as dores eraõ taõ porsiadas, oorque sem duvida procediaõ de humores eterogenios, & de differentes naturezas, como saõ a colera, & a fleuma, & que por esta razão, quando applicava remedios quentes, se temperava por algum tempo a frialdade da fleuma, & se tirava a dor que ella causava; mas se continuava com applicaçaõ dos taes remedios quentes, se irritava a colera, & crescia a dor que della procedia: pelo contrario, quando applicava os remedios frios, se temperava a quentura da colera, & se tirava por algum tempo a dor que ella fazia; mas se continuava muito tempo com os remedios frios, se exasperava a frialdade da fleuma, & crescia a dor que ella causava; & esta (a meu ver) era a total razão porque as dores humas vezes obedecião aos remedios frios, outras vezes sc exasperavaõ com elles, & por isso durariaõ as dores até tirarem a vida, se eu me naõ resolver a purgar ao doente com remedios, que respeitasscm aos humores colericos, & fleumaticos, dos quaes procedião certamente as sobreditas dores, porque de outra sorte naõ se tirando a causa, naõ se tiraria a doença. Receiteilhe pois tres onças de manna com duas oitavas dos meus trociscos de Fioravanto, desatando tudo em seis onças de caldo de gallinha; & foi este remeidio taõ bem suceedido, & tirou a dor taõ presentaneamete, q mais parece obra divina, que humana; & viveo o sobredito Visconde vinte anos depois que lhe fiz esta cura. Os que não quizerem usar dos trociscos, por ser segredo meu, desatem o manna em cinco onças de oleo de amendoas doces feito em fogo, que tambem o tenho experimentado muitas vezes com felicissimo successo na cura de semelhantes dores.

4. Estimese muito este modo de curar as colicas ou ellas sejaõ ordinarias, ou nephríticas, porque atè o dia presente raras vezes faltou com o seu bom effeito. Deste modo curei ao Illustrissimo senhor Fr. Joaõ da Madre de Deos, que depois foi Arcebispo da Bahia: ao Capitaõ Francisco de Albuquerque & Castro: a Carlos Peres mestre de armas : a Domingos Varela, a Francisco da Cunha, & a muitos outros doentes, cujos nomes deixo referir por não enfadar aos leitores.

OBsERVAÇAM XXII

De huma dor de ouvido taõ excessiva, que chegou a hum doente às portas da morte; & por beneficio de humas gottas de oleo rosado fervido em huma casca de romão com huma duzia de bichos chamados Mil-pès, deitando de quatro em quatro horas seis gottas mornas dentro no ouvido, teve o doente melhoria taõ admiravel que pareceo milagrosa; mas porque passados doze annos tornou o dito doente a ter a mesma dor, & com mayor excesso, & naõ lhe aproveitando o dito oleo, nem as sangrias, purgas, pilulas, nem outros remedios celebres, appellei para huma ventosa de bocaia grande, que coubesse dentro nella toda a orelha, & pundolhe muito fogo, a appliquei sobre o ouvido, & foi tal a actividade, com que atrrahio o humor, que estava dẽtro na cavidade, que no mesmo instante rebentou hum torno de materia, & ficou o doente saõ com grande credito da Arte, & do meu nome.

Rebelde, & teimosamente pertinaz foi a dor de ouvido, q atormentou ao Doutor Antonio Roballo Freire, o qual pela vehemencia, & sentimento que teve, não só passou algũas noites sem dormir, mas teve huma grande febre, & huma perturbaçaõ de juizo taõ grande, que por instantes esperava a morte; & como nem as sangrias repetidas, nem nem as purgas, & pilulas muitas vezes tomadas, nem as ajudas revellentes, & purgantes, nem outros mil remedios especificos; & anodynos, lhe aproveitassem, se teve por infallivel o perigo da vida, mayormente porque o mesmo doente tinha ouvido dizer que Hippocrates affirmava que a dor de ouvido, sendo grande, & acompanhada com febre, era mortal, ou ao menos ameaçava delirio, & frenesi perigosissimo por causa da inflammaçaõ do cerebro que suppunha, & paraque o doente pela desesperaçaõ em que a dor o tinha posto, se naõ matasse com suas proprias mãos, (depois de o animar muito) o mandei sangrar na vea da cabeça do braço da dor, repetindo este remedio dous dias successivos de manhãa, & de tarde, porque verdadeiramente tem estas sangrias tanta propriedade para aplacar semelhantes dores, que com muita razaõ se devem antepor a todos os remedios da Arte: & porque naõ imaginasse alguem que eu fiava toda a cura só das sangrias, lhe deitei dentro do ouvido enfermo o seguinte remedio, que he maravilhoso. Tomei-os dentro de hũa casca de romãa com tanta quantidade de azeite rosado, quanta cubra aos ditos bichos, & sobre fogo brando, ou rescaldo se fervaõ, até que o oleo tenha recebido a virtude dos bichos, & da casca; & deste oleo morno mandei deitar seis gottas no ouvido, de quatro em quatro horas, & com este remedio teve o doente huma melhoria quasi milagrosa; & ao outro dia naõ avendo ja dor, lhe dei a seguinte purga, que para os achaques da cabeça he muito proveitosa, & se faz de modo seguinte. Em seis onças de agua cozida com cardo santo fiz infundir, por doze horas, cinco onças de assucar rosado de Alexandria, meya oitava de bom ruibarbo, & dous escropulos de agarico trociscado, & huma oitava de sene, & tornando a coar a dita agua, lha fiz beber, & evacuou com boa conferencia, & tolerancia. E para confortar a cabeça receitei as seguintes pilulas, que de todos os Doutores saõ muito celebradas. Tomem de massa de pilula sine quibus Aureas de Nicolao; & Agarico trociscado, de cada cousa destas hum escropulo, misturemse muito bem, & formẽse pilulas; & destas tomou o doente cinco vezes, em dias alternados, a mesma quantidade & com estes remedios teve saude perfeitissima. Passados doze annos tornou a ter outra semelhante dor, & porque se lembrou do maravilhoso successo, que avia tido com as sangrias, & oleo rosado fervido na casca de romãa com os sobreditos bichos Mil-pès, entendo que nesta segunda dor teria o mesmo bom successo, & por esta razaõ (sem chamar Medico) se sangrou logo seis vezes, & tornou a usar do sobredito oleo; mas com taõ pouca sorte, que nenhum alivio teve; & por isso me chamou, & dandome conta da dor, que padecia, & dos remedios, que tinha feito, presumi que o naõ lhe aproveitarem, procedera de que a segunda dor tivera por causa huma grande queda; & porque entendi que os panniculos, ou meninges do cerebro aviaõ cobrado alguma inflammaçaõ, lhe deitei no ouvido humas gottas de leite de peito misturadas com quatro grãos de pò de incenso macho; mas como de taõ soberano remedio naõ tirasse fruto, usei do oleo das gemas de ovo, que costuma obrar maravilhosos effeitos, quando as dores procedem de inflammaçaõ interior, ou de acrimonia, & mordacidade dos humores; mas como nem assim aliviasse, mandei que lhe deitassem hũas gottas de agua de clara de ovo fresco bem batida, & misturada com igual quantidade de leite de peito de mulher sadia ; & como a dor se naõ tirasse, lhe fiz tomar por hum funil o bafo de oleo de nozes, em que primeiro tivessem fervido humas flores de enxofre: mas tambem esta diligencia foi baldada. De tão grande obstinaçaõ vim a suspeitar que a dor procedia de algum abscesso, ou aposthema, que estava em alguma parte mais profunda do ouvido, & que difficultosamente se tiraria, sem que primeiro se madurasse o dito tumor,& se rompesse o abscesso; & levado desta consideração, appliquei sobre o ouvido o emplastro seguinte. Tomem huma cebola assada, duas onças de manteiga crua, huma onça de oleo rosado, & outra de oleo de macella, tudo se misture muito bem com huma oitava de açafraõ, & quente se applique ao ouvido, porque demais de ser remedio muito especifico contra estas dores, desfaz os aposthemas, & os madura. Nada porèm foi bastante; antes porque as dores se augmentaraõ muito, julguei que no ouvido estava jà materia feita, por quanto no dia antecedente avia tido grande febre, & dores pulsatorias, que saõ sinaes infalliveis, & antecedentes de materia gerada, como notou Hippocrates, & que por isso jà eraõ escusados os remedios maturativos; mas necessitava somente de que se desse sahida à materia, que dentro estava, & para este effeito appliquei sobre a orelha hũa ventosa de boca grande com muito fogo; seguindo nisso o conselho de Hippocrates, que na tal dor manda fazer este remedio & foi o effeito quasi milagroso, porque no mesmo instante, em que o appliquei, rebentou o aposthema do qual sahio tão grande quantidade de materia, que logo se tirou a dor, & ficou saõ o mesmo doente, que poucas horas antes esteve reputado por morto, & nunca mais tornou a padecer semelhantes dores. Pessoa ouve, que condemnou por temeridade a applicaçaõ da ventosa sobre o ouvido; mas nem a quiz redarguir, nem darme por sentido; antes aoa que estimulados da enveja, ou ignorancia tem por officio dizer mal dos que obraõ bem, os julgo mais por dignos de se lhes ter lastima, que de castigo, atè que conhecendo a verdade se livrem do purgatorio da enveja, que os atormenta, & no entretanto, por mais que a malicia queira fazer o seu officio, nem por isso entre os homens doutos, & bem intencionados hei de deixar de conseguir o credito de taõ gloriosa cura, & bem acertada resoluçaõ. Visto que o sobredito doente deveo a vida a huma ventosa, se me permitta licença para fazer huma advertencia aos Medicos principiantes; & he, que naõ sejaõ medrosos em applicar ventosas, assim seccas como sarjadas; porque Hippocrates, que foi o mayor Medico, que teve o mundo, usava dellas, & de cauterios de fogo para infinitas enfermidades, mayormente para todas as dores, quando eraõ taõ rebeldes, que naõ obedecião aos outros remedios. Nem sejaõ taõ faltos de valor, que naõ ousem a fallar em tal remedio, senaõ quando os doentes estão agonizando, porque jà entaõ melhor he naõ usar dellas, porque naõ servindo jà de alivio para o doente , fervem de afronta para o Medico. Nem tambem sigaõ a doutrina daquelles, que dizem se naõ podem applicar as ventosas sem que o corpo esteja esgotado com sangrias, & purgas; basta que esteja medianamente evacuado; assim o aconselha Valefio, o qual em todas as dores, que não obedecem aos remedios universaes, usava de ventosas, jà seccas, já sarjadas. Confesso que naõ posso sofrer a demasiada severidade, & exacçaõ de alguns Medicos, que esperaõ que o doente esteja com trinta sangrias, & sem falla, nem acordo, para usar das ventosas: eu digo com o mesmo Valefio, que naõ estou bem com aquelles, que naõ se atrevem a fazer remedios, quando vem aos doentes em grande perigo nem com aquelles, que saõ taõ confiados, que sempre estaõ a fazer remedios por qualquer leve queixa; porque todo o excesso he dannoso: se eu fosse do numero dos demasiadamente covardes, & ouvesse de aguardar que o doente tivesse trinta sangrias, duas purgas, quatro apozemas, seis dias de pilulas primeiro que applicasse a ventosa no ouvido, morreria o doente, sem chegar a usar do remedio, que lhe deu a vida;mas porque me contentei com huma mediana descarga, por isso fiz huma cura taõ gloriosa como fica dito.

OBsERVAÇAM XXIII.

De huma febre ardente, a que sobrevieraõ grandes faltas de somno, puxos ardentes, & dores insoportaveis de ventre, & das pernas, tudo procedido de qualidade gallica: & porque o Medico assistente atemorizado com a ardencia da febre, & multidaõ dos symptomas referidos se naõ resolvia a purgar ao doente, chegou a estar ungido, atè que por meu conselho tomou os pòs de mercurio doce, a que chamamos Calomelanos, & com elles salvou a vida com admiraçaõ de todos, & credito da Arte.

I. PArecerà incrivel, & que excede a todo o encarecimento a cura, que fiz em Francisco Dias de Araujo, morador na Bica de Duarte Bello. Quarenta dias avia que este homem não podia dormir, nem sossegar por causa de huma febre ardentissima, acompanhada de ardentes puxos, a que se juntáraõ camaras continuas, acerrimas dores de ventre, & de ambas as pernas: & supposto que o sobredito enfermo, logo que adoeceo, chamou para director da sua cura hum Medico bem famigerado; comtudo, porque a doença, & os referidos symptomas cresciaõ de monte a monte, me chamàraõ aos vinte & sete dias da doença; & ouvindo eu o processo della, & dos remedios applicados, entendi que para acudir a taõ formidaveis symptomas, quaes saõ os referidos, era necessario dar logo remedio opiados, assim porque a terribilidade das dores o pedia; como porque a grande falta de somno os aconselhava.

2. Naõ quiz o companheiro seguir o meu conselho, ou por ser mais acautelado, ou por ter menos experiencia dos remedios narcoticos; persuadindose que para mitigar a ferocidade das dores, & provocar o somno, bastariaõ humas amendoadas adoçadas (em lugar de assucar) com duas onças de lambedor de papoulas, ou de dormideiras, & hum lenimento de unguento populeaõ sobre as fontes, & testa. Porèm ainda - q eu respeitava muito ao companheiro por suas letras, & idade, respeitei mais a minha consciencia, (I.) & por esta razão naõ quiz estar pelo seu voto, porque entendi que huma amendoada era remedio mui pequeno para vencer dores taõ grandes, & symptomas tão terriveis. Comtudo era taõ notavel a confiança, que o doente tinha no outro Medico, que não quiz seguir o meu voto, & assim tanto que chegaraõ as horas convenientes, mandou dar a amendoada, & fomentar as fontes com unguento sobredito; mas tudo sem alivio: porque as dores do ventre, & das pernas, as camaras, os puxos, & a febre, mais furiosos que serpentes, & mais assanhados que viboras, atormentáraõ ao miseravel enfermo de maneira, que naõ sossegou hum só instante, & por isso se arrependeo muito de naõ aver seguido o meu parecer; mas logo me deo palavra, de que na seguinte noite faria o que eu lhe mandasse: daqui tomei confiança para lhe receitar huma pilula de tres grãos de laudano opiado, com que dormio toda a noite com notavel quietaçaõ; mas porque a febre, as dores, as faltas de somno, & os mais symptomas procediaõ de qualidade gallica, entendi que todos os remedios que se lhe applicassem, seriaõ baldados em quanto lhe naõ dessem os antidotos, que extinguissem a dita qualidade; & fundado nesta razaõ fiz outra conferencia com o companheiro, dizendolhe que eu dera o laudano opiado àquelle doente, sem embargo de saber que elle não avia de tirarlhe a doença; mas que obrigado das crueis dores, que padecia, & das màs noites que levava, entendi que era preciso seguir o conselho de Valesio, ( 2.) o qual nos aconselha que muitas vezes he arte saber affastar da arte, acudindo primeiro aos symptomas, que à causa delles, & que por isso lhe dera o sobredito remedio, paraque dormindo, & sossegando cobrasse esforço para poder com o peso da enfermidade, & para se lhe applicarem os legitimos remedios, com que se extirpasse a qualidade gallica, pois ella era a total causa de tudo o que o doente padecia, & que eu tinha por infallivel que elle naõ avia de ter saude, em quanto naõ dessemos por dez, ou doze dias a panacea, chamada por outro nome, mercurio doce sublimado ; porque sós os remedios de azougue foraõ sempre a clava de Hercules, com que se rende bem a hydra gallica: porèm o companheiro, ou por inflexivel, (o que he mui prejudicial em negocio taõ importante, como he a vida de hum homem,) ou por estribado na authoridade de Avicenna, ( 3.) que condemna as purgas nos camarentos, recusou o generoso, & especifico remedio do mercurio que eu lhe apontava, dizendo que quem se atrevia a dar medicamento purgativo a quem tinha camaras, ou puxos, ou qualquer outra queixa nos intestinos, curava fóra da Arte, & estava cego na luz do meyo dia: porèm eu fiado na razaõ, & experiencia naõ quiz ceder meu voto, porque como eu (àlem da noticia, que o doente me tinha dado da sua vida, & de hum bubaõ que se lhe recolhèra, tinha observado que a febre, as camaras, & todas as mais queixas se augmentavaõ no tempo da noite, tive por cousa infallivel que os referidos symptomas procediaõ da infecçaõ gallica, & consequentemente que com nenhum remedio se deviaõ curar melhor que com o mercurio repetidas vezes tomado; mayormente quando (como diz o proloquio commmum) (4.) tirada a causa, se tira o effeito: & como a causa de taõ cruel estrago fosse o humor gallico, era necessario arrancallo primeiro, paraque os damnos, que delle procediaõ, se arrancasssem. Ensurdeceose o companheiro aos meus clamores, & de nenhuma razaõ minha quiz fazer casó, nem darse por convencido. Confesso ingenuamente que não alcancei a causa, nem o fundamento, que o sobredito Medico tivesse para refutar outra vez a purga, dizendo, & protestando ao doente que se a tomasse, lhe seria mais prejudicial que o mesmo veneno, em razaõ da febre, & camaras que tinha. Este medo, & carranca desvaneci logo com a reposta antecedente, dizendo que tambem com o mesmo remedio mercurial se avia de curar a febre, que era gallica. Vendo eu pois que o Medico negava, que a doença crescia, & que o doente acabava, me deliberei a appellar a causa para outro Juiz, porque me pareceo impiedade que huma contenda de tanta importancia estivesse posta em dilaçaõ por tantos dias, sem se dar sentença para livrar dos laços da morte o atormentado enfermo. Mas (oh esperamças humanas como sois caducas, & enganosas!.) vim a cahir em hum precipicio, quando queria evitar outro; pois taõ longe esteve o meu voto de confirmarse com a chegada do novo Medico, que antes se reprovou, & votou a froxo contra mim: & como (por estylo ordinario) os votos nas consultas se avaliaõ pelo numero, & e não pelo peso, foraõ mais poderosos os mais votos, & de menos valor o de mais peso, & por isso aproveitaraõ pouco as minhas diligencias. Mas por isso me despedi do enfermo, porque naõ tive animo para o ver morrer de huma doença taõ conhecida, como se fosse ignorada. Porèm como o doente estivesse em seu acordo, & perfeito juizo, & conhecesse o zelo, & ancia, com que eu lhe desejava a saude, me pedio por Deos immortal o naõ desemparasse em taõ grande perigo; & para me obrigar com algum carinho, me pegou na maõ, dizendo que elle naõ queria obedecer a outros preceitos mais que ao meus, & por consequencia que só avia de seguir o que eu lhe mandasse. Pode tanto comigo esta boa fé, & me internecèraõ de modo os referidos rogos, que me encarreguei da cura, dandolhe principio com huma purga, que juntamente evacuasse os humores, respeitassse a qualidade gallica, confortasse as entranhas relaxadas; & enfraquecidas, fazedo-a do modo seguinte. Em quatro onças de cozimento cordeal com huma oitava de ruibarbo, & quatro escropulos de casca de myrobalanos citrinos mandei ajuntar onça, & meya de xarope magistral pro morbo, outra onça & meya de xarope das nossas rosas; & depois que o doente tomou este singular remedio tres vezes em dias alternados, che- cheguei ao uso do mercurio sublimado, chamado Calomelanos Turqueti, dando meya oitava delle em forma de pilula de tres em tres dias; & foi cousa digna de adimiraçaõ ver que antes de acabar este remedio, desapparecèraõ a febre, as camaras, os puxos, as dores, & as vigias, & conseguio perfeitissima saude aquelle mesmo homem, que jà estava sentenciado à morte, & reputado por incuravel.

3. Quatro cousas de muita importancia quero advertir aos Medicos modernos, todas mui necessarias para o bom acerto das curas, & saude dos enfermos. A primeira he, que nunca dem o mercurio, de qualquer sorte que seja preparado, sem que o corpo esteja primeiro bem evacuado, porque se, estando o corpo cheyo de humores, derem remedio mercuriaes, póde succeder que aquella grande copia de materiais, que o mercurio costuma aballar, dè comsigo na garganta, & affogue ao doente. A segunda cousa he, que se as gingivas, a lingua, ou a garganta incharem, ou se excoriarem, como costuma succeder aos que tomaõ unturas, ou mercurios, que naõ usem de gargarismos, nem de bochechas, feitos de aguas refrigerantes, ou repercussivas, porque fechandose com ellas os póros, ou repercutindose para dentro os humores malignos, mataraõ aos doentes: como já vi em certo doente, a quem hum Medico applicou gargarismos de aguas frias, & repercussivas, & porque com ellas se suspendeo a salivaçaõ, morreo o miseravel doente. O que eu aconselho neste caso he, que usem de gargarismos; & bochechas de leite de cabras, ou de vacas morno, ou de bochechas de vinho branco aguado; porque deste modo se conservaõ abertos os ductos salivaes, & se continua a purgaçaõ sem risco da vida. A terceira cousa he, que se. por causa de muita salivaçaõ se alterar alguma febre, (como muitas vezes succede) que nem por isso desconfie o Medico, nem os doentes, nem se sangrem; porq a tal febre he symptomática, & accidental, causada da agitaçaõ dos humores, & só se deve curar, como ensina Valhes, (5.) não fazendo remedios dios dio, antes deixando a cura por conta da natureza; porque se alguem se sangrar por causa de febre, que sobrevier aos que estaõ babando, se arrisca a morrer, como já vi em certo doente, que naõ nomeyo, porque senaõ venha a saber quem foi o conselheiro de hum erro taõ crasso, que custou a vida do enfermo. A quarta cousa que quero advertir aos Medicos principiantes he, que nunca appliquem o mercurio, (ou seja o sublimado doce, a que huns chamaõ Pnacea, outros Calomelanos, outros Dragaõ mitigado, ou seja o precipitado doce, ou seja o Turbith minera) em forma de pò aos dentes, porque nunca desceo tambem ao estomago, como quando se dà em forma de pilula.

OBsERVAÇAM XXIV.

De huma dor de colica vehementissimas, a que se seguio hum adormecimento na perna direita com ancids mortaes, suores frios & vomitos continuos.

1. O Muito Religioso Padre Fr. Paulo da silva, Carmelita Calçado, enfermou a vinte de septembro de 1686. com humas dores vehementissimas de ventre; a que sobrevieraõ vomitos continuos, adormecimentos na pèrna direita, ancias de coraçaõ, & suores frios. Para rebater o impeto de tantas queixas juntas se chamou logo ao Doutor Antonio de Figueiredo, que naquelle tempo era o Medico de Cõnvento o qual lhe applicou muitos, & mui excellentes remedios; mas como os doentes naõ melhoraõ com tanta brevidade, quanta desejaõ, naõ só perdem o animo,mas logo suspeitaõ que por erro,ou malicia fe lhes deo algum veneno, mayormente quando vem que as medicinas mais efficazes se malograõ: nesta affliçaõ de dores, & de animo lhe chegou à noticia que eu preparava em minha casa hum bezoartico cordeal de virtude mui singular contra as febres malignas, & contra todo o genero de veneno; & como a vida he mui amavel,me fez logo chamar,livrando (depois de Deos) na minha assistencia, & remedio a esperança de sua vida & chegando eu à presença do enfermo, o achei quasi agonizando, tanto pela crueldade das dores, quanto pela desconfiança, & consternação do animo: & para o alentar, & fzer obedecer ao que lhe mandasse, lhe affirmei com juramneto que nenhuma das queixas, q padecia, procedia de veneno; mas eraõ taõ somente, finaes proprios & inseparaveis de dores nephriticas porque como temos alguns nervos, que se ramificaõ, & estendemdo estomago atè os rins, & a tunica exterior, que os veste, tenha o seu nascimento do Peritoneo que he continuado com o fundo do estomago, naõ he para admirar que aggravados os rions com qualquer area, ou pedra, se gravassem; & irritassem tambem as partes, que com elles tem comunicação, & correspondencia. E quanto ao adormecido da perna direita, tambem lhe certifiquei que de nenhuma sorte procedia de veneno; mas que certamente procedia; de se apertar aquelle nervo, que se ramifica, & estende pelos musculos da perna, & que a tal compressaô, & aperto procediaõ da dureza, peso, ou copia das areas, ou pedras; & que era doutrina de Hippocrates, (I.) que tanto que alguma parte, ou vea se comprime de forte, que os espiritos naõ tem passagem franca para se communicar, sente logo a tal parte hum adormecimento; ou estupor; por quanto os espiritos, & o influxo delles naõ pode estar parado sem damno consideravel do vivente.

2. Ouvidas estas razões, cobrou o doente animo, & ressuscitou nelle a esperança de ter saude. Conhecida pois a natureza taõ violenta, & repentina enfremidade, tomei a meu cargo o curallo, promettendo-lhe que antes de seis horas lhe tiraria a dor, com tal condição que avia de tomar hum remedio Chymico que eu preparava por minhas mãos. Naõ contentou a tal condiçaõ ao doente, porque como naquelle tempo os remedios Chymicos estivessem mal opinados entre entre os Portugueses, porque os naõ conheciaõ, foi o mesmo fallarlhe em remedio Chymico, que se lhe dissera que lhe queria dar hum bocado de folimaõ, ou de refalgar; & amedrontado com o nome do remedio, o naõ quiz tomar, & por mais que eu lhe affirmei afirmei que era segurissimo, & quase milagroso, me respondeo que se contentava com seguir o conselho do seu Medico, o qual lhe tinha dito que as sangrias, & ajudas, & algũs remedios conhecidos de todos o aviaõ de livrar do perigo. Alguns impulsos tive de deixar ao doente, & despedirme logo; porque quem naõ obedece ao que lhe manda o Medico, mostra que confia pouco nelle: & diz Galeno, (2.) que aquelle Medico cura mais doentes,em quem mais doẽtes confiam;mas porque sempre tive grãde respeito aos Doutores mais velho,naõ me quiz dar por sentido de repulsa do meu voto, como aconselha seneca; (3.) antes quiz ver (como de palanque) em que parava aquella doença nas mãos alheyas: mas sem embargo que o doente obedeceo à risca aos preceitos de seu Medico, nem por isso teve alivio,antes de hora em hora peyoravão as queixas com taõ incomparavel excesso, que chegou a dizer que os tormenteos do inferno naõ podiaõ ser mayores que os que elle padecia,.& desnecessaria no mundo, pois nenhum remedio della lhe tinha aproveitado: lembroulhe entaõ a promessa que eu lhe avia feito,& com as lagrimas nos olhos me pedio lhe quizesse dar o remedio, em que lhe tinha fallado, porque estava resoluto a obedecerme em tudo o que lhe ordenasse: & suposto eu estava escandalizado pelo desprezo que fez do meu conselho, pode tanto comigo acompaixaõ de o ver em taõ grande aperto, que me esqueci da raiva, que contra elle tivera, & assim lhe dei às seis horas do dia humas colheres de caldo de frangaõ, em que misturei vinte grãos de pò de quintilio : o qual remedio como dizem gravissimos Authores, (4.) he o melhir que ha para tirar estas dores, vencer os adormecimentos, q da tal causa procederem: & foi taõ grade a quantidade de coleras que evacuou por ambas as vias, que antes de passar hũa hora reconheceo notavel melhoria; mas porque ainda restavaõ alguns vestigios de dor, ordenei tomasse huma ajuda feita de cinco onças de cozimento de frangaõ, rim de vacca, & malvas, a que ajuntei huma onça de diaphenicaõ, duas de lambedor violado, huma gema de ovo, & huma onça de therebinthina de beta, lavada em agua de malvas, atè se fazer bem branca: porque naõ he dizivel a virtude, que esta ajuda tem para as colicas nephriticas: & para alimpar os rins das areas, & humores viscosos lhe fiz tomar tres vezes, em dias alternado, a seguinte conserva, que he fresco meya onça, de ruibarbo polvorizado hum escropulos, de cremores de tartaro verdadeiros dous escropulos, misturise tudo, & se tome em jejum; & passadas tres horas o fiz jantar; & foi taõ maravilhoso o successo deste remedio, que viveo 23. annos depois desta cura com boa saude.

3. Innumeraveis dores nephriticas curei presentaneamente com os pòs de quintilio, desatando vinte grãos delle em tres onças de caldo de gallinha, ou em tres onças de agua commua; ordenandolhes que naõ comessem, nem bessem cousa alguma, em quanto a dor perseverasse, ou ao menos em quanto naõ passassem vinte horas; porque na opinião de Thomas Rodrigues da Veiga, (4.) & na minha experiencia, hum dos melhores remedios que ha ( depois de pòs de quintilio) para que as dore nephriticas, & colicas se tirem, ou naõ cresçaõ, he a abstinencia do comer, & beber; & os que fizerem o contrario, experimentaraõ muito à sua custa o grande damno, que o comer lhes faz, acrescentando as dores ao galarim.Alguns doentes tive, que naõ quizeraõ tomar o quintilio por medo dos vomitos que provoca; aos quaes curei dando-lhes quatro onças de oleo de amendoas doces tirado sem fofo, em que mandei soltae duas onças de manna escolhido. Finalmente outros doentes tive com semelhantes dores, que naõ podendo melhorar com os sobreditos remedios, cobràraõ saude com o seguinte banho. Tomem dous arrateis de amendoas doces, pizemse muito bem, & se cozaõ em dous almudes de agua, & deitando este cozimento dentro de hũa tina, lhe misturem seis almudes de agua fria, & se misture hũa com outra muito bem,de tal forte, que fique moderadamente quente, & dentro neste banho ordenei q estivesse o doente hũa hora, porque com semelhantes banhos tenho feito curas maravilhosas, como os curiosos poderaõ ver na minha Polyanthea da segunda impressaõ, trat. 2. cap. 87. fol. 551 de num. 12. até 16. aonde refiro (para credito da minha verdade) os nomes de alguns doentes, que curei com os ditos banhos por modo de milagre.

OBsERVAÇAM XXV

De huma dor de estomago, e ventre, acompanhada com febre, ourinas muito vermelhas, fastio excessivo, e repetidos vomitos de humor verde, que desprezando a muitos remedios singulares, só com huma purga ordinaria, e com as pilulas de hiera de Pachio, e hum especifico estomachico, que agora ensino a fazer em fera viço do bem commum, sarou radicalmente.

1. ENganaõse os que tem para si que as ourinas naõ podem ser muito vermelhas por outra causa mais que por febres ardentes, ou por abundancia de coleras, ou por inflammações interiores; porque se a vermelhidaõ das ourinas procedesse sómente de abundancia de coleras, amargariaõ; e como a experiencia mostra que naõ amargaõ, antes saõ salgadas, bem se deixa ver que naõ saõ vermelhas só por copia das coleras. Nem tambem saõ vermelhas só por causa das febres ardentes, ou de inflammaçoens interiores, que fazendo circular o sangue com mais arrebatado movimneno, derretem mais porçaõ de partes sulphureas, e salinas, que misturandose com os soros, fazem as ourinas acesas; porque se só por estas causas tivessem a dita cor, nem nas hydropesias, nem nas dores de colica, nem nas cruezas de estomago, e das veas appareceriaõ vermelhas, pois nestas doenças pela mayor parte naõ ha febre ardente, nem inflammaçaõ interior, nem circulaçaõ do sangue impetuosa; comtudo vemos cada dia, que assim nas hydropesias, como nas colicas, e febres, que procedem de cruezas, saõ mui córadas as ourinas, e que se fazem algumas vezes vermelhas pela fraqueza do figado, dos rins, ou das veas, que naõ podendo apartar o sangue dos soros, os deixaõ ir juntos, como vemos nos hydropicos. Outras vezes se fazem vermelhas pela copia de cruezas, que enchendo os intestinos, naõ deixaõ sahir os excrementos, como vemos nas dores de colica. Outras vezes se fazem vermelhas pela fraqueza do estomago contrahida de largas enfermidades, ou de muito trabalho: nos quaes casos quem (levado da vermelhidaõ das ourinas) sangrar aos doentes, fará hum erro da mayor grandeza. E porque naõ cuide alguem que este dito he apocrifo, ou livremente proferido, me permittaõ que em confirmaçaõ desta verdade refira o seguinte caso, que nem será desagradavel o relatarse, nem deixará de ser util o saberse.

2. O Reverendo Padre Fr. Francisco, Religioso Carmelita Calçado, estando para fazer huma viagem ao Brasil com o cargo de secretario do Padre Fr. Matheus, Provincial que hia ser da dita Ordem, antes de se embarcar acudio a muitos negocios, que o casaraõ de maneira, que cahio em huma febre, fastio, e lassidaõ de todo o corpo: ao quaes symptomas sobrevieraõ humas ourinas muito vermelhas, e acesas; e como a febre, e as mais queixas referidas tivessem o seu principio do excessivo trabalho, lhe ordenei que deixasse os negocios, e que naquelle dia tomasse duas ajudas purgativas, feitas de cinco onças de assucar mascavado, e meya onça de diaprunis, obrou com ellas copiosamente; mas nem por isso sentio alivio, antes peyorou de sorte, que o mandei sangrar oito vezes; porèm foraõ as sangrias taõ infelicemente succedidas, que cahio em outra queixa mais penosa, porque o assaltàraõ dores de estomago taõ grandes, e intoleraveis, que perdia o juizo: deste excesso entendi que as taes dores procediaõ de copia de flatos, a que as cruezas deraõ causa, e para remedio de huma, e outra queixa lhe aconselhei bebesse agua cozida com macella, que para vencer dores de estomago, e de colida flatuosa he efficacissima, como certificaõ muitos Authores, (1.) e eu observei em hum Religioso Franciscano, que depois de padecer dous annos dores continuas de estomago, se livrou totalmente dellas com beber a dita agua; mas como ella no caso presente nenhum proveito fizesse, entendi que as taes dores procediaõ de materias mordazes, e acido-salinas que picavaõ, e estimulavaõ as tunicas do estomago, e fundado nesta razonavel conjectura, me pareceo acertado darlhe huma purga, paraque evacuados os taes humores, o livrasse de taõ grande martyrio: porèm no mesmo dia, em que eu determinava darlhe a purga, crescèraõ tanto as dores, a febre, e o incendio das aguas, que tive medo de purgallo sem conselho de alguns Mecidos mais experimentados: e como o doente visse que eu appellava a sua causa para outros Juizes, entendeo que mais era politica, e razaõ de estado, (por elle ser hum Religioso grave) do que medo, nem falta de ciencia; e como assentasse nesta presumpção, e tivesse de mim grande conceito, naõ quiz admitir outros votos, com que me foi preciso tomar sobre mim todo o peso da enfermidade; resolvime a continuar com as sangrias, porque a febre, as dores de estomago, e o incendio das aguas continuavaõ: mas (Deos nos livre) fizeraõ tal estrago as que novamente mandei fazer, como se fosse o mais presentaneo veneno, porque àlem de acescentarem as dores, e as ancias, lhe sobrevieraõ huns vomitos de humor taõ verde, que parecia çumo de ervas.

3. Neste conflicto entrei em diversas considerações: hũas vezes me parecia que a materia verde, que o doente vomitava, tinha por causa a grande quantidade de humor azedo, que no intestino Duodendo se misturava, com o succo pancreatico, e lhe fazia naõ só aquella cor do mesmo modo que o vinagre deitado em um vaso de prata o faz verde, mas excitava no dito intestino, e no ventre taes dores, e vomitos, e levado deete diecureo entendia, que o verdadeiro remedio aviaõ de ser os absorbentes antacidos muito repetidos. Outras vezes me parecia que o humor verde era colera porracea, gèrada do grande incendio do figado, e entranhas naturaes: e confirmavame neste parecer, pela grande vermelhidaõ das ourinas; e por consequencia assentava comigo que nenhum remedio avia de aproveitar tanto para as sobreditas queixas, como as sangrias repetidas, e applicaçaõ dos medicamentos refrigerantes. Outras vezes me parecia que o humor verde, as dores de estomago, a vermelhidaõ das ourinas, e os mais sympntomas que o doente padecia, procediaõ de fraqueza, e diminuiçaõ do calor natural exhaustado com os cuidados, trabalhos, vigias, dores, e fastios, que o dito Religioso avia tido; e que as sobreditas queixas de nenhuma sorte procediaõ de sobra de calor, antes de falta delle: o que se deixava conhecer nas paredes, e lugares humidos, que se o sol os naõ aquenta, e enxuga com o calor dos seus rayos, se enchem de limos, e musgos verdes; donde certamente se confirma que a humidade, e falta de calor procedem as verduras: assim que assentei firmemente com Amato Lusitano, (2.) que os vomitos verdes, as ourinas vermelhas, e as dores do estomago procediaõ de frialdade da phlegma tinta com a dita verdura; e acabei de confirmar isto, vendo que quanto mais o sangrava, e mais remedios frios lhe fazia, tanto peyor se achava.

4. Isto assim considerado, julguei que era conveniente suspender as sangrias, e os outros remedios; antes em lugar delles ordenei tomasse a purga seguinte. Em quatro onças de cozimento fresco cordeal, com duas oitavas de folhas de sene, deitei de infusaõ dous escropulos de agarico trociscado, e meya onça de catholicaõ atado em ligadura, e coandose depois de doze horas, ajuntei a esta bebida duas onças de xarope Rey. Com esta medicina teve o doente notavel melhoria; mas porque ainda sentia alguns desejos de vomitar, e as ourinas naõ acabavaõ de tomar a cor natural, me pareceo darlhe, em tres dias interpolados, as pilulas de hiera de Pachio em quantidade de quatro escropulos, porque verdadeiramente saõ milagrosas para repurgar o estomago, e confortallo. Finalmente lhe aconselhei tomasse, em seis dias successivos, o meu Especifico estomachico, que tive muitos annos em segredo, mas por fazer este serviço à Republica, o quero revelar agora na fórma seguinte: Tomai de raizes de Jaro feitas em talhadinhas delgadas huma onça, metaõse em huma tigela vidrada cheya de vinho branco, e se deixem estar de infusaõ por espaço de doze horas; passadas elas, se deite fóra o vinho, e tornem a encher a tigela com outro tanto licor, e tornem a estar de infusaõ outras doze horas; passadas ellas, se deite fóra o vinho, e sequem as raizes à sombra, e entaõ tomem das sobreditas raizes assim preparadas meya onça, das tunicas interiores das muelas das gallinhas seccas ao sol duas oitavas e meya, de olhos de caranguejos preparados quatro oitavas, de galanga, canela, e sal de losna, de cada cousa destas dous escropulos, tudo se faça em pò subtil, e deste dem ao doente dous escropulos por cada vez, desatados em caldo de perdiz, ou de galinha, ou em hũa colher de xarope de cascas de cidra, ou em duas colheres de vinho tinto. Faltaõme palavras para dizer o grande proveito, q̃ estes remedios fizeraõ; porque dentro de doze dias se tiràraõ os vomitos, as dores, a febre, e o fastio; e o q̃ he mais, se reduziraõ as ourinas à sua cor natural, estando atè aquelle tẽpo vermelhas como sangue.

5. Daqui aprendaõ os Medicos modernos, que nem sempre que virem ourinas mui vermelhas, ou vomitos de humor verde, cuidem que procedem de quẽtura: e saibaõ que em taes casos he erro da primeira grandeza o sangrar, ou applicar remedios frios; porque nas colicas, nas hydropesias, e nas debilidades do estomago procedidas de grande trabalho, ou de muito estudo, e luxuria, ou de doenças prolongada, costumaõ as ourinas ser muito vermelhas, como dizem muitos Doutores; (3.) e nestes casos taõ longe estaõ as sangrias de ser boas, que antes saõ damnosissimas; porque (peloque experimentei neste Religioso) conheci que semelhantes vomitos, dores, e ourinas devem ser curadas com purgas, e naõ com sangrias, nem remedio frios.

6. E se alguem duvidar que as ourinas se podem fazer vermelhas por causa das cruezas, lea a Galeno, (4.) o qual tratando de febre quotidiana, que he acompanhada de cruezas, diz as seguintes palavras: Nas febres quotidianas vem as ourinas brancas, delgadas, grossas, ou vermelhas. sobre este ponto se veja o doutissimo Pedro Miguel de Heredia, (5.) e a Francisco Henriques de Villa corta, (6.) os quase concordaõ uniformemente que a cor vermelha das ourinas, nem sempre he sinal de quentura, nem de sobegidaõ de sangue; mas que algumas vezes he sinal de frialdade, de crueza, e de debilidade; nos quaes termos avaliaõ por erro o sangrar.

7. semelhante caso a este observai no Padre Luis Dias, Cappellaõ das Almas na Igreja de saõ Paulo, o qual quantos mais vomitos verdes tinha, e quantas mais sangrias lhe davaõ, e remedios frios lhe faziaõ, tanto mais as ourinas se accendiaõ; e sendo eu chamado para ver a este doente, e conhecendo que as dores, os vomitos verdes, e as ourinas vermelhas procediaõ naõ de grande calor, como erradamente se presumia; mas de copia de phlegmas de cor verde pela falta de quentura, o purguei logo com a sobredita purga, fazendolhe tomar, em seis dias alternados, as pilulas de hiera Pachio, e seis interpolados o meu Especifico estomachico, e com este remedios teve perfeitissima saude.

8. Na rua da Pelada, freguesia de Nossa senhora dos Martyres, curei semelhantes dores, e vomitos verdes, a hum homem, chamado Gaspar Ferreyra, sem o sangrar; mas só com o purgar com hum cozimento cordel, em que infundi quatro oitavas de catholicaõ em ligadura, e lhe ajuntei, depois de coado, duas onças de xarope Rey, acabando esta cura com as pilulas de hiera de Pachio, que tomou seis vezes em dias alternados, em quantidade de quatro escropulos.

9. He de advertir, que tambem as ourinas sahem algumas vezes muito vermelhas por fraqueza do figado, dos rins ou das entranhas, ou por relaxaçaõ da boca das veas, como succede aos que andaõ muito tempo a cavallo, aos muito luxuriosos, e aos que estaõ muito sangrados; nos quaes casos quem os sangra, os mata, porque se fazem hydropicos: como vi succeder a tres doentes, que deitando sangue pelo nariz de cor de lavadura de carne, e ourinas muito vermelhas, o sangràraõ contra o meu voto, e dentro de quinze dias se sizeraõ hydropicos, e morrèraõ.

10. Naõ nomeyo aos tres sugeitos mortos por esta causa, porque se naõ saiba quaes foraõ os complices daquellas desgraças. E tornando ao fio desta Observaçaõ, digo que aos doentes, que ourinaõ sangue, ou ourinas ensanguentadas por fraqueza, ou laxidaõ das veas, lhes constumo acudir com confortativos exteriores de cozimento de balaustias, murta, maçãa de acipreste, cascas de romãs, de bolotas, e de castanhas, ordenandolhes que tomem noventa dias em jejum hum quartilho de leite de ovelhas acabado de mungir daquelle instante, porque deste modo toda a virtude; e assim o aconselha Galeno (7.) fallando com os Medicos sobre o modo com que se deve tomar o leite: Guardareis, e observareis como grande preceito, e ley inviolavel, que o leite se tome acabado de mungir, estando o animal na presença de quem o ouver de tomar. E em outra parte diz: (8.) Metereis o animal, de que se ouver de tomar o leite, no mesmo aposento, em que se ouver de tomar o leite, no mesmo aposento, em que o doente estiver, paraque se tome no mesmo instante, sem se meter tempo em meyo, porque se se essriar, perde muita parte da sua virtude, e com facilidade se corrompe.

OBsERVAÇAM XXVI

De huma surdez antiga, que por se desprezar no principio, tomou tanta posse, que quando se quiz curar, zombou das diligencias da Arte; & sendo eu chamado, lhe appliquei alguns remedios taõ singulares, que dentro de vinte dias ouvio taõ claramente, como quando tinha saude mui perfeita.

1. O Padre Luis Gomes, morador na rua da Adiça, freguesia de saõ Pedro de Alfama, sem causa manifesta cahio em hum zunimento de ouvidos, & como nos princìpios naõ fizesse caso do tal achaque, cresceo de maneira com o tempo, que ficou surdo; vendose o pobre sacerdote neste estado, quando avia de buscar os Medicos mais doutos para que o curassem, chamou a hum barbeiro ignorante, o qual sem conhecer a causa do mal, nem donde procedia o atormentou com variedade de remedios barbaramente applicados; & sem embargo que em castigo do seu deslumbramento, era justo que nenhum Medico letrado lhe quizesse acudir, nem encarregarse de hum caso taõ mal parado, por senaõ expor a risco de que lhe imputassem qualquer sinistro acontecimento; comtudo por amor de Deos sofrem os homẽs muitas cousas, porque, como diz Glaubero, (1.) aonde falta o seu amor nenhuma cousa boa se póde esperar ; mas avendo-o, até aos estranhos, & peregrinos devemos acudir, como aconselha Hippocrates, (2.) sendo hum gentio. Assim que depois de tantos erros feitos me chamàraõ para curar a este enfermo, o qual vendose surdo, & sem esperanças de remedio, perdia a paciencia, e naõ sabia o que fizesse, nem com que santo se pegasse paraque lhe valesse: pois o sentido de ouvir ouvir se precisamente necessario tanto para a prudencia, quanto para aprender todas as boas artes; pois por falta deste sentido parecem os homens parvos, & ignorantes, porque lhes faltaõ as portas por onde entraõ as doutrinas, & os conselhos; & por isso disse Horacio, (3.) que naõ ha homem taõ barbaro, & feroz que naõ se amanse, & abrande, se der ouvidos a quem o ensine, & encaminhe. Nesta desconsolaçaõ o alentei, dizendo que eu sabia alguns remedios particulares, com que esperava o avia de restituir à sua antiga, & perfeita saude. Grande foi o alento, & confiança que o doente cobrou com esta boa nova, & por isso se entregou nas minhas mãos paraque o curasse; & para eu o fazer com acerto, puz grande cuidado em conhecer a causa da doença, porque conforme a essa se devem applicar os remedios.

2. Muitas vezes procede a surdez de fluxo de humor colerico, que correo para os ouvidos: outras vezes procede de febres ardentes, ou malignas: outras vezes procede de algum tumor, callo, leicenço, verruga, ou outra qualquer cousa interior, ou exterior, que fecha o orgaõ auditorio: outras vezes (& saõ as mais dellas) procede de humores frios, & grossos, ou de intemperança fria, & humida.

3. se a surdez procede de fluxo de humor, que correo para os ouvidos, conhecese, se virmos que succede depois de faltarem alguns cursos, ou suor, a que a natureza era costumada: esta surdez se cura purgando ou dando algum sudorifico para tornar a chamar a mesma evacuaçaõ, que faltou: se procede de febres ardentes, ou malignas, como vemos cada dia, conhecese, porque sobrevem a ellas, & se cura, curando a febre: se precede de inflammaçaõ do ouvido, conhecese, porque a dor he muito grande, & pulsatoria, & vem acompanhada com febre, & esta se cura com sangrias, & com todos os remedios, que pertencem às inflammações: se procede de algum tumor, callo, verruga, leicenço, ou outra qualquer cousa interior, conhecese com os olhos do Medico, & curase com as mãos mãos do Cirugiaõ: se procede de algumas bostellas, ou leicenços, que avia na cabeça, & se recolheraõ, como ja vi, todo o remedio consiste em purgar, & abrir fontes, ou causticos na mesma parte: se finalmente procede de humores frios, & humidos, ou de semelhante destemperança, conhecese pelo temperamento do doente, pela vida que teve, pelos ares em que assiste: & como o sobredito sacerdote fosse sujeito a fluxões catarrhosas, & vivesse embairro taõ humido, como he o de Alfama, entendi q a surdez procedia dos humores frios, & grossos, que na cabeça redundavaõ; os quaes humedecendo a membrana Meringe (chamada vulgarmente Tympano) fazião a surdez: porq para ouvir se requere no orgão auditorio hũa bem proporcionada secura, & q a Meringe esteja estendida, & naõ froxa, ou bamba: porque assim como se o couro de hũ tambor se molha, logo afroxa, & naõ faz som capaz de excitar os animos; da mesma sorte se a membrana Meringe se humedece, & afroxa mais do que he razaõ, por causa de algum humor, que nella cahio, naõ póde o tal homem perceber as vozes do q com elle fallarem.

4. Assentado pois que a causa da sobredita surdez eraõ os humores frios, & lymphaticos, que na cabeça se geravaõ, ou a ella de outras partes vinhaõ, era preciso preparar os taes humores com os seguntes xaropes, que mandei tomar em cinco dias successivos pela manhãa, & à noite na fórma seguinte. Tomem de folhas de betonica, & de cardosanto, desemente de funcho, & de cabeças de hyssopo, de cada cousa destas hum punhado, cozãose em vaso de barro com tres quartilhos de agua commua, & coada ella, ajuntem a cada quatro onças deste cozimento huma onça de xarope de rosmaninho , & outra de oximel. Acabados de tomar os taes xaropes, purguei os humores com a seguinte bebida. Em quatro onças de cozimento fresco cordeal com duas oitavas de folhas de sene, & hum escropulo de semente de funcho fiz infundir dous escropulos de bom agarico trociscado, & quatro onças de conserva Alexandrina; & coandose tudo com forte ex - expressaõ, desatei neste licor duas onças de xarope Rey, & dous escropulos de cremores de tartaro verdadeiros. Digo verdadeiros, porque a ambiçaõ de alguns homẽs tem hoje chegado a tal excesso, que falsificaõ muitos remedios, sem se lembrarem da conta que haõ de dar a Deos das vidas, que por sua causa se perderem; Naõ he isto queixa só minha, por se venderem neste Reyno muitos remedios com o nome de meus, que o naõ saõ; tambem Riverio (4.) se queixava de aver esta falsidade em os cremores de tartaro. E entaõ ordenei que tomasse alternadas vezes as pilulas seguintes. Tomai de massa de pilulas sine quibus aureas, & Cochias, de cada cousa destas duas oitavas, de extracto de helleboro negro, & de colocintidas, de cada cousa destas huma oitava, de tartaro vitriolado, & de diagridio sulphurado, de cada cousa destas dous escropulos, tudo se misture muito bem, & desta massa se formem pilulas, de que fiz tomar ao doente dous escropulos por cada vez, & obràraõ com tanta felicidade, como eu esperava, porque saõ quasi milagrosas para todos os achaques da cabeça; com tal condição, que se tomem nove, ou dez vezes em dias alternados.

5. Depois que com estas pilulas purguei ao doente as vezes referidas, seguindo nisto o conselho de Massaria, (5.) & de outros Authores, que mandaõ repetir as purgas muitas vezes, & que essas sejaõ as mais efficazes, quando as doenças saõ rebeldes, ou estaõ em parte mui distante, & profunda, porque de outra sorte dandose poucas vezes os remedios, ou sendo taõ leves, que naõ cheguem com a sua virtude aonde està a enfermidade, naõ se consegue a saude, & ficaõ os doentes como estavaõ de antes. Para lhe confortar a cabeça, lhe mandei fazer o seguinte cozimento capital. Tomem de folhas de cardo santo, de orgevaõ, betonica, salva, manjerona, rosmaninho, hyssopo, & fegurelha, de cada cousa destas huma maõ cheya, de enxofre sutilmente polvorizado tres onças, tudo junto se ferva a fogo moderado, com quatro canadas de vinho branco em panela de barro, & com hum jarro se se deite de alto este cozimento morto sobre a cabeça, repetindose duas vezes no dia, em quanto a doença o pedir, porque naõ se póde explicar a virtude, que esta emborcaçaõ tem para curar a surdez procedida de intemperançafria, porque conforta muito a cabeça, & deseca os humores superfluos, que nella ha. No entretanto que se faziaõ estas emborcações, lhe ordenei recebesse nos ouvidos o seguintes bafos. De polpa de colocintidas, de baga de loureiro, & de semente de alfazema, de cada cousa destas meya maõ cheya, com huma duzia de cravos da India se machuque tudo, & se coza com meya canada de espirito de vinho, & por hum funil se tomem estes bafos, estando mastigando alguma cousa muito dura, paraque se abraõ mais as vias, & orgãos do ouvir, & entrem melhor os ditos bafos. Finalmente deitei todos os dias nos ouvidos quatro gottas de fel de perdiz misturado com igual quantidade de oleo de alambre branco, porque naõ se póde explicar a virtude que tem este remedio para curar os surdos, como experimentei neste sacerdote, que ouvio claramente tudo, o que fallava, aindaque fosse com voz branda.

6. A agua de pào fe freixo destillada per descensum, he remedio maravilhoso, deitando no ouvido quatro gottas della cada dia:mas porque nas aldeas, & terras limitadas se naõ acharà a dita agua feita per descensum, póde fervir em seu lugar a agua, que o dito páo verde deitar de si, metendo huma ponta delle no fogo, & ficando a outra ponta fóra. Nem he menos admiravel a agua, que destilla da enxundia da eyró de rio de agua doce. O espirito de terebinthina, em que ferverem em banho de Maria as flores de en-xofre, atè se fazer vermelho, he grande medicina; com tal condiçaõ, que este, ou qualquer dos remedios sobreditos se applique depois do corpo evacuado.

7. Permittaõme os Medicos modernos, que lhes faça aqui huma advertencia, senaõ muito agradavel ao seu gosto, muito importante ao seu credito; e he, pedir - pedirlhes que por amor de Deos naõ desemparem aos seus doentes, (6.) por mais perigosos que estejaõ, porque se o tempo o permittira, pudera eu mostrarlhes com mil exemplos os infinitos doentes, que estando submergidos com as ondas da morte, & deixados dos Medicos, os livrei da sepultura, naõ sem grande vergonha dos que os tinhaõ desemparado. Naõ digo isto por jactancia propria, nem por vituperio alheyo; mas digo-o para os excitar, & animar a que acudaõ aos doentes, & lhes appliquem remedios em quanto a alma se naõ apartar do corpo; porque se eu naõ fizera assim, morreriaõ muitos, que devem a vida às minhas resoluçoens: & assim como na natureza acontecem cada dia monstruosidades; tambem na Arte succedem cada dia muitos prodigios, & sem embargo sey muito bem que no tempo presente he taõ grande a malicia de alguns homens, que aindaque hum Medico de cincoenta doentes perigosissimos livre quarenta & nove, lhe naõ daraõ tanto credito, como lhe tiraraõ de fama hum, ou dous que morraõ. Bem à minha custa tenho experimentado esta verdade: quantas febres malignas, quantas suppressoões de ourina, quantos accidentes de gotta coral, quantas alporcas, quantas asthmas, quantos fluxos involuntarios da semente, quantos fluxos de sangue de qualquer parte, quantas camaras, quantas almorreimas, quantas hydropefias, & quantas outras doenças, que estaõ no catalogo das incuraveis, tenho eu curado naõ só nesta terra, mas em todo o Reyno, & na India, & em algumas Conquistas, só por informações de cartas? & nem huma só palavra se diz em credito de taõ maravilhosas curas; mas se algũ doente morre, logo se apregoa com voz de trombeta o mao successo: mas digaõ o que quizerem, que em Deos tenho muito bom Juiz: nem averà calumnia, que me atemorize, (7.) para deixar de fazer o que entender que convem aos doentes, porque, como outro Alfario, (8.) já não faço caso de detraccções.

OBsERVAÇAM XXVII

De hum esquentamento gallico, a que sobrevieraõ febre ardente tosse seca, pontada no lado esquerdo, e difficuldade na respiraçaõ; para remedio dos quaes doenças, tendo respeito à gonorrhea, mandei sangrar seis vezes ao doente no pé da parte da pontada; mas vendo que o mal crescia com excesso; mandei sangrar no braço da ilharga queixosa, ordenando que de seis em seis horas tomasse huma chicara da minha agua antipleuritica; com estes dous remedio sarou, e ficou livre de quanto padecia.

1. NInguem póde pode duvidar que o humor complicado com doenças agudas he mais dificultoso de curar: porque se o Medico remedios contra o gallico, avendo febre ardente, pontada aguda, & tosse seca, fará um erro sem, porque acrescentarà todas as queixas referidas; & se pelo contrario o Medico respeitar a febre, a, & a tosse, como coufas mais urgentes, & de que se póde seguir mayor perigo, crescerà a enfermidade gallica com mais vehemencia, e se curarà com mais difficuldade, porque com as sangrias se as forças, se diminuirà o calor natural, e se os espiritos.

2. Naõ obstantes porèm estas razões, aconselhaõ os melhores praticos, que nas doenças complicadas se acuda primeiro àquella de que temermos mayor perigo, e que conforme a urgencia da enfermidade mais aguda, se haõ de applicar os remedios, sem fazer calo da qualidade gallica. Em confirmaçaõ desta verdade reserirei o que me passou pelas máos ha muitos annos.

3. O Capitaõ Manoel Ayques, sendo solteiro contrahio de hum concubito impuro hua gonorhea purulenta, a quelogo sobreveyo huma febre ardente, a qual em breves dias emmagreceo, e debilitou forte, que temi o fizesse hectico, e quando a natureza não estava capaz de refletira huma doença menos perigosa, se achou assaltado de outra mais arriscada, e com sintomas mais formidaveis, como são pontada no lado esquerdo, tosse seca, e respiração dificultosa: e sendo eu chamado para acudir a tantos males juntos, e tomando informação do mesmo doente, conheci que tinha duas enfermidades, huma aguda, qual he o pleuriz, outra chronica, qual he a gonorrhea; e como em razão da febre, e do pleuriz fossem principalemente necessarias algumas sangrias, entrei em duvida se estas se aviao de fazer no pè (tendo respeito à gonorrhea purulenta;) ou se se aviaõ de fazer no braço, (tendo respeito à pontada, e ao assecto inflammatorio.)

Neste conflicto me lembrou o conselho de Valesio, (1.) o qual diz: se nos casos duvidosos fizeres algum remedio tentativamente, naõ seja o tal remedio tão forte, e vehemente, que se vos achardes enganados no juizo que fizestes, fique o doente muito offendido, nem vòs impossibilitado para tomar outro caminho, sem damno do do enferno. E como nas febres acompanhadas com pontada aguda, tosse seca, e respiração presa, sejaõ grande remedio as sangrias, quiz tentativamente fazer as primeiras no pè da parte dolorosa, entendendo que desta forte podia acudir às queixas sobreditas, sem fazer damno à gonorrhea; e que no caso que as sangrias baixas naõ fizessem o bem, que eu esperava, ao menos não fizessem damno taõ consideravel, que se não remediasse facilmente com as sangrias do braço; feito assim este discurso, mandei sangras seis vezes no pè da parte da dor, porque era taõ nova que entendi que o fluxo do humor para a parte affendida estava ainda no principio em cujo sentido seria mais proveitosa a sangria baixa affim para a gonorrhea, como para o pleuriz: mas foi o sucesso taõ contrario ao q eu esperava, e se exacerbou a pontada, e febre de maneira, que o doente quase doudo desconfiou de sua vida. Neste aperto tomando a indicaçaõ da doença mais perigosa, qual he o pleuriz, e posto de parte o rustico temor da gente ignorante, que tem por sacrilegio subir das sangrias dos pès às sangrias dos braços, fiz menos caso da gonorrhea, e todo o meu empenhofoi acudir à pontada mandando-o sangrar no braço do ladoqueixoso seguindo nisso o preceito de Galeno, (2.) em que nos encomendaque acudamos primeiro àquella doença, que mais apertar, e que nos descuidemos de acudir aos outros symptomas, que acompanhão a principal doença: e paraque os humores inficonados com a qualidade gallica não subissem com as sangrias do braço, e conspurcassem as partes superiores, e mais nobres, mandei que antes de abrirem a vea, lhe deitassem humas hu-mas> ventosas nas pernas, e que nellas se fizessem ligaduras fortissimas por todo o tempo que se estivesse sangrando. No entretãto que isto se fazia, julguei que era precisoapplicar algum remedio especifico, e extinguem as dores, ou pontadas procedidas dos acidos errantes, e exaltados. Porque (como dizem os Doutores modernos (3.) exercitados nas filosofias novas) todas as dores procedem dos acidos errantes: e supposto que as sangrias evacuaõ o sangue, naõ adoção a acrimonia, nem o azedumepungente, que algumas vezes reyna nelle; por isso entendo que a curados pleurizes não consiste tanto em sangrar, (como os antigos imaginarão) quanto nos remedios alcalicos absorventes, e nos volatilizantes; e por isso desde o primeiro dia do leuriz (àlem das sangrias) uso logo da minha agua antipleuritica, que sobre ter virtude muy especifica para curar pleurizes, he composta dos melhores absorbentes, que tem achado a industria humana. Eu tive a tal aguamuitos annos em segredo, porèm agora a quero ensinar para utilidade de todos, e se prepara do modo seguinte.

Tomem de cascas de raiz de bardana fresca duas duas onças, cozaõse em panela de barro, em seis quartilhos de agua commua atè que fiquem cinco, e quando quizerem tirar a panela do fogo, lhe deitem dentro humamaõ cheya de flores de papoulas secas, para que larguem na dita agua a tintura vermelha, e coandose com forte expressaõ, desatem nella tres oitavas das pilulas antifebriles, chamadas absorventes, que saõ muito dulcificantes dos humores acidos: (e nas terras aonde naõ se acharem as taes pilulas, ou os Medicos naõ quizerem usar seu lugar, de tres oitavas de coral bem preparado, porque aindaque este tem muito menor virtude, comtudo póde fervir. E desta bebida morna, e bem vascolejada use o enfermo todas as vezes que tiver feder, porque esta he a minha agua antipleuritica, cujos effeitos maravilhosos experimentaraõ os que se aproveitarem della. E então acabaraõ de conhecero serviço que fiz à Republica, em lhe revelar taõ grande segredo.

6. Finalmente, porque depois da extinçaõ da pontada restavaõ ainda alguns vestigios de febre, entendi seria conveniente sangrar outra vez nos pès, porque deste modo attendia à febre, e à gonorrhea: e foi Deos servido conseguisse taõ perfeitissima saude, que vive por beneficio desta cura ha trinta e oito anos.

7. Infinitos saõ os pleurizes mortaes, que curei por este estylo, aindaque tive alguns tão rebeldes, aos quaes naõ aproveitaraõ sangrias, nem sanguisugas, nem ventosas sarjadas deitadas sobre o lugar da dor, nem a camoeza assada, recheada com huma oitava de almiscar, que he muito melhor que o incenso macho, nem com a sobredita agua: e vendo eu que remedios taõ efficazes, e qualificados com unnumeraveis experiencias naõ aproveitavaõ, e que o doentemorria, lhe fiz beber quatro onças de oleo da semente do linho tirado do fresco por expressaõ; do qual dizem graves Authores (4.) maravilhas estupendas para curar os pleurizes desesperados: e obrou o tal oleo taõ prodigiosamente, que dentro de oito dias livrei ao doente da morte.

8. se me perguntarem a razaõ porque o dito oleo tem taõ grande efficacia para curar os pleurizes rebeldissimos; responderei que isto procede, porque as dores do pleuriz pela mayor parte nascem da circulaçaõ do sangue estar parada, e tanto que a circulaçaõ se suspende, logo o sangue se faz grosso, e azedo, e do azedume, e crassidaõ nasce a dor; por quando o sangue esta disconveniente, e improporcionado para aimentar a parte: e como o oleo de linhaça tenha grande prerogativa pra adelgaçar, e arrarar o sangue, logo o faz capaz paraque continue a circulaçaõ, e consequentemente para se retirar o azedume, e a acrimonia de maneira, que naõ possa fazer dor.

9. Agradeçãome o revelar esta razaõ, porque supposto que algus Medicos soubessem primeiro que eu a grande virtude, que tem o oleo da semente do linho para curar os pleurizes m naõ me consta que até o dia de hojesoubesse algum a razaõ porque tem a tal virtude.

10. Por fim desta Observaçaõ advirto aos Medicos principiantes duas cousas importantissimas para o seu credito, e para a saude dos doentes. A primeira he, que se com a qualidade galllica se ajuntar alguma doença aguda muito perigos, como se saõ pleuriz, febre aredente, ou maligna, camaras de sangue, ou outras semelhantes; se naõ empenhem em acudir primeiro ao agallico, mayormente quando virem que da demora de curar o gallico naõ ha tanto risco, como da tardança em acudir às doenças agudas: já´se os remedios, que fervem para curar o gallico, forem damnosos para as doenças, que com elle estaõ complicadas, de nenhum modo se devem applicar: ponho por exemplo: se Pedro estiver enfermo com hua febre ardente complicada com gallixo, farà hum erro sem desculpa quem lhe der suores, porque lhe augmentarà a febre, e o matará. E se Paulo, estando gallicado, adoecer com hum garrotilho,ou com hua asthma, fará hum erro casso,quem lhe der unturas,ou fumos de azougue, porque o affogará com os humores, que com as unturas necessariamente haõ de buscar a garganta, e vasos salivaes, que como já estavaõ aggravados, se aggravaraõ mais com a saliva, e baba que a ella ha de acudir. se FRancisco deitar sangue pela boca, ou pelas almorreimas, ou estiver leproso, ou tiver impingens, ou bostellas, ou padecer quenturas do figado, estando gallicado, o matará, quem lhe der suores de falsa, porque aindaque ella respeita muito ao gallico, faz grande damno à lepra, às impingens, aos fluxos de sangue, e às queixas referidas. Porèm se a doença, que se complicar com o gallico, naõ for aguda, nem correr risco a tardançapodemos acudir primeiro ao gallico, ou curalla juntamente com elle, se os remedios, com que o gallico se cura, não affenderem as doenças, que com elle estiverem juntas. Ponho por exemplo; se com o gallico se ajuntar hua parlesia, hu estupor, hua gotta, coral, hus vagados, ou hua cratica, poderaõ curarse juntamente com o mesmo remedio do gallico,porque o tla remedio naõ he manoso às sobreditas doenças, que com elle se achaõ complicadas.

OBsERVAÇAM XXVIII.

De huma dor acerrima nas costas mendosas, que certa enferma padeceo por causa de hũs vomitos violentamente provocados; & depois de se lhe applicarem muitos remedios sem alivio, cobrou saude, tomando medicamentos, que adelgaçàraõ o sangue, paraque se circulasse melhor.

1. CErta senhora padecia muitas vezes no anno acerrimas dores de cabeça, & como na mayor força dellas cosumasse a mesma natureza vomitar, semque para isso interviesse alguma diligencia da Arte, & com os ditos vomitos aliviasse muito, tomou motivo desta experiencia, para querer provocar aquella mesma evacuaçaõ, que tantas vezes tinha experimentado proveitosa, & por isso quando lhe dava a tal dor, se a natureza faltava com os vomitos costumados, metia os dedos na boca, & vomitando ficava logo boa; chegou porèm hum dia taõ infausto, que dandolhe a mesma dor, lhe faltáraõ os vomitos costumados, & como sempre com elles se livrava, pertendeo logo provocallos, metendo os dedos na boca, tendo por infallivel, que como vomitasse, livraria da dor, que tanto a atormentava; mas não lhe succedeo assim, porque naõ podendo vomitar, porfiou muitas vezes, metendo a mão na boca para este fim; o que foi grande temeridade; porque devia esta enferma advertir a diferença que vay de hum tempo a outro, & que os remedios, aindaque sejaõ bons, & os mesmos, nem sempre obraõ igualmente bem. Desta violencia que se fez, começou a sentir huma dor nas costas mendosas da ilharga direita, aindaque sem febre, & sem dissiculdade na respiraçaõ; para curarse da dita dor applicou varios remedios, mas todos sem proveito: neste aperto me fez chamar, & depois de me dar conta do que padecia, entendi que a tal dor naõ era pleuriz, porque naõ tinha febre, nem tosse, nem dissiculdade de respiraçaõ; mas que era hum flato, que distendia, & mordicava aquella parte, & por isso appellei para o seguinte remedio, que costuma ser maravilhoso tanto para resolver flatos, & vapores, quanto para desfazer as inchações edematosas. Tomem do pò subtilissimo da raiz da butua, (chamada tambem parreira brava) duas oitavas, misturemse com tanto vinho branco, quanto baste para fazer hum polme grosso, & com elle quente mandei fomentar a parte dolorosa duas vezes no dia. Porèm como este remedio tendo aproveitado a muitos em semelhantes dores, lhe não aproveitasse a ella, recorri para a seguinte fomentaçaõ, que he excellentissima. Mandei fazer huma cellada de partes iguaes de losna, & alfavaca, & que pondose estas ervas ao fogo em huma tigela nova, se fossem borrifando com espirito de vinho, ou com agua da Rainha de Ungria, & se fossem voltando até que amollecessem, & tomassem boa quentura, & que entaõ se applicassem sobre o lugar da dor; mas como nada aliviasse, appellei para a seguinte fomentaçaõ, que costuma ser milagrosa. Mandei cozer huma maõ cheya de folhas de meimendro, outra de flores de papoulas seccas, ou verdes, outra de semente de linho, em hũa canada de leite de cabras , ou de vaccas, & que a este cozimento coado, & espremido ajuntassem duas colheres de mel, & que nelle ensopassem hum paõ vindo do forno, & o applicassem sobre a parte queixosa; porque verdadeiramente este remedio assim pela virtude anodyna do leyte, & semente do linho, como pela propriedade narcotica do meimendro, & folhas de papoulas costuma fazer prodigiosos efeitos. Mas como este fosse mui alheyo da minha esperança, entendi que a sobredita dor naõ procedia só de flatos, mas que tinha tambem por causa alguns humores, & temi que agitados elles com a violencia da dor, corressem, & se despenhassem com mais ruidosa queda para o lugar enfermo, & puzessem a doente em mayor perigo; & levado eu desta consideração mandei sangrar a dita senhora no pè da parte enferma; porèm como a dor perseverasse depois de oito sangrias, & de tantos remedios applicados, suspeitei que huma rebeldia taõ porfiada só podia nascer da lympha ser tão grossa, & viscofa, que senaõ podia circular naquella parte, por cuja causa (estando remorada) tinha adquirido tal acrimonia, & azedume, q̃ fazia a dor, & pontada taõ rebelde, & desobediente; & como para adelgaçar a dita lympha, & fazella circular, naõ achasse (depois que sou Medico) remedio mais appropriado que a bosta de boy fresca, fervida levemente com huma onça de banha de flor, meya de enxundia de gallinha, hum escropulo de açafraõ, duas oitavas de spermaceti, & duas gemas de ovos cruas deitadas fóra do lume, usei deste remedio, & sem embargo que o appliquei repetidas vezes, não se diminuhio a dor quanto era justo esperar de hum remedio tão grande; appellei entaõ para o mais eficaz absorbente dos acidos remorantes, & impedientes da circulaçaõ que ha no mundo, & he o seguinte. Tomai de folhas de cerfolio, & de pimpinella, de cada cousa destas huma mão cheya, tudo se coza em panela de barro, & em fogo brando, com quatro quartilhos de agua ordinaria, & coandose a tal agua, mandei desatar nella duas oitavas das minhas pilulas alcalicas; ou, em falta dellas, de coral bem preparado, & desta agua bem revolvida, & vascolejada mandei dar meyo quartilho de seis em seis horas ao enfermo; & tão eficazmente se dulcificáraõ os acidos pungentes, & incrassantes, que em poucas horas se tirou a dor, & se continuou a circulaçaõ, porque se dulcificàrão os acidos, que a impediaõ, & cobrou a saude que desejava.

2. Neste lugar he necessario advertir que as pilulas absorbentes saõ segredo meu, q̃ preparo com minhas mãos, & a portas fechadas; & como a ambiçaõ dos homens he hoje mayor que nunca, naõ falta quem falsifique o tal remedio, de que me não queixo, porque lá virá hora, em que fe dará conta deste engano; o de que me queixo, & o que não posso tolerar he, que vendaõ estas pilulas, & o meu Bezoartico das febres malignas, & outros meus segredos com o nome de que saõ meus, & carregaõ sobre o meu credito os máos successos, de que só tem a culpa quem os falsifica. Os que quizerem usar dos meus segredos sem escrupulo, podem recorrer a minha casa,ou às boticas de saõ Domingos, de Joaõ Gomes silveira, ou de João Baptista Leitaõ, porque estes boticarios os tem verdadeiros, porque os compraõ feitos por minhas mãos, como inventor delles.

OBsERVAÇAM XXIX.

De huma grande dor de pedra, que por occasiaõ de hum repentino, & excessivo desgosto, se arrancou do lugar em que estava; & para sabir da bexiga atormentou com tanto excesso a hum Religioso, que o chegou às portas da morte.

I. NAõ se pòde negar que as paixões do animo (quando saõ grandes) fazem mayores estragos que as mais perniciosas doenças, & tiraõ muitas vezes a vida com tanta brevidade, como se fossem o veneno mais presentaneo. Esta verdade confessaõ graves Authores, (I.) & pelas experiencias de cada dia o observamos; pois vemos que de excessivo gosto, ou tristeza, de excessiva ira, temor, ou vergonha morrèraõ alguns homens ; outros pelas mesmas causas se viraõ assaltados de dores mortaes: & supposto que esta verdade naõ necessitava de mais prova; comtudo como os exemplos, que entraõ pelos olhos, movem melhor os nossos animos, que as informações, que entraõ pelos ouvidos; (2.) por isso damos mais credito aos successos, que nos passaõ pelas mãos, do que àquelles, de que os antigos nos daõ conta: por esta razaõ me parece acertado referir aqui algumas observações que vi, & de que fui testimunha, donde ficarà mais autentica a verdade com que fallo.

2. Certo fidalgo tão poderoso, como soberbo, deo huma bofetada em hum homem de menor esfera, & vendo este que naõ podia desafrontarse, sentio o aggravo com tal excesso, que dentro de tres dias perdeo a vida, sem que para a sua morte ouvesse outra causa mais que a tristeza, & sentimento.

3. Nesta Cidade conheço a huma nobre matrona, que andando prenhada, sonhou que matavaõ a seu marido; & foi tão grande a tristeza, & agonia que esta dor sonhada lhe causou, que de improviso moveo huma criança.

4. Por huma reprehensaõ aspera, mas bem merecida, que o senhor Rey Dom Joaõ o IV. deo a certo homem, recebeo tanta melancolia, & sentimento, que de improviso, estando ainda na presença do mesmo Rey, lhe deo huma taõ grande, & mortal febre, que dentro de cinco dias o matou. Por huma triste nova, que se deo a Manoel Gonçalves Chanquino, de que avia perdido toda a sua fazenda, perdeo repentinamente o juizo, & no seguinte dia se affogou em hum profundo pégo. Por outra triste nova, que se deo a sebastião Mult, morador junto à Ermida do Corpo santo, se fez repentinamente icterico, & dentro de seis horas lhe deo huma forte apoplexia, que o matou. Por huma grande ira, que o Padre Damiaõ Vieira teve contra huma pessoa; que o aggravou, & de quem não pode vingarse, cahio repentinamente morto: nem he para admirar que assim succedesse; porque (como diz Riverio ) (3.) a ira move, & accende o sangue, & a colera de tal sorte, que não cabendo dentro nos seus vasos, suffoca o coraçaõ, & os espiritos, & consequentemente mata.

5. Finalmente por causa de grandes, & repentinos medos vemos muitas vezes soltarse o ventre, & as ourinas a algumas pessoas; outras sabemos que estando atormentadas com acerrimas dores de gotta, se lhes tiràraõ repentinamente com hum repentino medo que tiveraõ. Tambem he verdade constante, que algumas pessoas sendo moças apparecèrão repentinamente velhas, & com o cabello todo branco por causa de excessivas tristezas, porque estas debilitão muito o calor natural, (4.) resfriam, & seccaõ o corpo de maneira, que saõ capazes de anticipar a velhice muitos annos antes do que era devida. De muita agonia, & tristeza suou Christo sangue, como consta do sagrado Evangelho. (5. )

6. Tambem os excessivos gostos, como diz Galeno, (6.) & Riverio, (7.) sendo repentinos, sabemos que matàraõ a muitos, de que ha mil exemplos; apontarei só hun, que succedeo a huma filha do Doutor Antonio Mendes, Lente de prima de Medicina na Universidade de Coimbra. Vendo a sobredita menina a ama, que a tinha creado a seus peitos, se alegrou com taõ grande excesso, que dandolhe hum abraço morreo. Casos saõ estes, que acontecem no mundo muitas vezes; porèm o que pòde causar admiração, por ser mais raro, he dizer eu que vi dar de improviso humas excessivas dores de ventre, & de pedra procedidas de hum grandissimo temor, & tristeza, cujo successo me seja permittido referir em confirmaçaõ do grande poder, que tem as paixões do animo para aballar, & perturbar os nossos corpos, & fazer nelles effeitos estupendos. (8).

7. O Padre Fr. Pedro da Barca, Religioso Franciscano da provincia da Piedade, teve repentinamente hum grandissimo desgosto, a que logo se seguiraõ tantas ancias do coração, & taõ excessivas dores de ventre, que naõ faltou quem suspeitasse lhe terião dado veneno; & sendo eu chamado para ver a este Religioso, achei que demais das grandes dores, & ancias que o affligião, tinha continuos desejos de ourinar; o que fazia em pouca quantidade, & com muitos ardores. Destes sinaes vim a entender que as dores, & anxiedades procediaõ de alguma pedra, q̃ arrancada como grande medo, & desgosto o atormentava taõ cruelmente. A esta minha presumpçaõ replicou o doente, dizendo que avia mais de trinta annos, que nem deitava areas, nem tivera em sua vida sinaes de pedra; & por consequencia que me enganava, se tinha essa presumpção. Ao que respondi que se elle soubera o muito poder, que tem os desgostos grandes, & repentinos para alterar, & aballar os corpos, naõ duvidaria que algũa pedra, por mais fixa que estivesse, poderia ( com a grande perturbação do animo) despegarse donde estava, & fazer aquelle damno, & estrago; mayormente confessando elle que algum dia deitàra areas, & não era impossivel que creasse pedras, quem areas creava, & que de as não deitar tantos annos, se não inferia com certeza que estava livre dellas, ou de pedras; assim que o avia de curar de accidente de pedra, porque só deste modo esperava livrallo da afflicçaõ que padecia. Por tanto para laxar as vias, excitar a faculdade fraca, & deitar fóra as pedras, ordenei tomasse as seguintes ajudas. De folhas de malvas, violas, ortigas mortas, & de alfavaca de cobra, de cada cousa destas huma mão cheya, tudo se coza com hum rim de vacca, ou (em falta delle) com hum frangaõ, & a cinco onças deste cozimento coado mandei ajuntar huma ónça de diasenicaõ, quatro onças de oleo de amendoas doces, dez oitavas de terebinthina de beta, lavada tantas vezes em agua de malvas, atè ficar branca, & huma gema de ovo crua. Porèm como estas ajudas (ainda que admiraveis) naõ sortissem aquelle grande effeito, que muitas vezes tinha visto, & justamente se podia esperar dellas, determinei darlhe, na mayor força das dores, duas onças de vinho emetico, ou tres onças de agua benedicta vigorada, ou dous escropulos de vitriolo branco desatados em duas onças de caldo de gallinha, naõ só porque qualquer destes vomitorios tem presentanea virtude para as dores de areas, & pedra, mas para todas as queixas dos rins, da bexiga, & das partes pudendas, como dizem graves Authores; (9.) pois com o aballo, & força que fazem os vomitos, não só se evacua, & revelle a causa antecedente das dores, mas se deita mais facilmente a pedra.

8. Obedeceo promptamente o enfermo ao meu preceito, & bebendo tres onças da sobredita agua benedicta vigorada, deitou por huma, & outra via taõ grande quantidade de coleras, & humores viscosos, que antes de passar hũa hora se sentio muito aliviado; mas como não deitasse pedra alguma, nem areas, (como eu esperava) antes no seguinte dia lhe repetissem as dores com a mesma crueldade, mandei sangrallo seis vezes nos braços, para lhe dar cõ mais segurança a minha agua lithontriptica, q̃ em serviço do bem commum faço agora publica, & he a seguinte. Tomai de raiz de bardana, de resta boy, & de saxifragia, de cada cousa destas meya onça, tudo se machuque levemente, & se ponha a cozer em panela de barro com fogo brando, em tres quartilhos de agua commua, até que fique em dous & meyo, & deste cozimento coado, & espremido dei ao doente, de seis em seis horas, meyo quartilho, a que ajuntei de olhos de caranguejos preparados, de semente de bardana, & de pòs dos bichos chamados Mille-pedes, de cada cousa destas meya oitava ; & no entretanto que applicava este grande remedio, mandei que sobre o pentem, & regiaõ da, bexiga se puzesse huma filhò, ou bolo preparado de cebolas feitas em rodas, & mal cozidas em vinho brãco, pizadas, & misturadas com igual quantidade de bosta de boy fresca, gemas de ovos, oleo de lacraos, & meya onça de açafraõ; & foraõ estes remedios taõ bem succedidos, que deitou muitas pedras, que tenho em meu poder, & ficou saõ.

9. Advirtão os Medicos modernos que este remedio, que lhes quiz revelar em serviço do bem commum, he hum dos principaes segredos, de que uso ha muitos annos com prospera fortuna; porèm corno nas cousas humanas naõ aja certeza infallivel, pòde acontecer que falte alguma vez. Neste caso saibaõ que eu tenho hum remedio para as suppressões de ourina, de virtude tão admiravel, que nunca me deixou envergonhado, salvo me chamàrão quando o doente estava espirando, & com o bafo fedendo, a ourina podre, nos quaes termos só Deos póde valer; mas se me chamàrão até o quinto, ou sexto dia, curei a todos com o sobredito remedio, como os curiosos poderaõ ver na minha Polyanthea da segunda impressaõ no tratado 2. cap. 8I. fol. 509. desde o num. 36. até 42. aonde refiro as pessoas que curei de suppressões altas, estando já ungidas, & pranteadas; & só naõ pude curar aquellas suppressões que procedião de parlesia, ou affecto spasmodico das veas emulgentes, ou ureteras, ou dos musculos, & esphinter da bexiga. Algum dia estive resoluto a revelar este grande segredo a algum boticario, paraque os necessitados o achassem a comprar sem lhes custar a vergonha de mo pedir, nem darem a conhecer aos doentes, que as vitorias, que alcançavaõ, eraõ com as minhas armas; comtudo como as experiencias me tem ensinado, que este máo mundo nenhum agradecimento dà aos seus bemfeitores, nem faz estimaçaõ dos homens, que se desvelão pelo servir, & que taõ pouco obrigado me ficaria, se eu lhe revelasse todos os meus segredos, como se lhos encubrisse, por esta razaõ não quiz apressarme em o revelar, por naõ ter mais cedo de que me arrepender; porque se ensinasse este, ou qualquer outro segredo meu a hum só boticario, ou o puzesse feito em huma botica, aviaõ de dizer os mal intencionados, que eu os revelava, ou tinha feitos pelo interesse de os vender, esquecendose da Ley Divina, & humana, pelas quaes he prohibido suspeitar mal do proximo, ou tirarlhes a sua boa fama, sob pena do grande castigo, que se determinarà ao dar da conta. Mas só Deos que conhece os corações, sabe o candor, & zelo com que revelei muitos remedios excellentes, que com grande estudo, & trabalho alcancei no discurso de muitos annos, como se deixa ver na minha Polyanthea; & só reservei para mim a manufactura de dezaseis segredos, para se algum contratempo, ou infortunio me perseguir, tenha os taes segredos, de cujo rendimẽto me possa aproveitar; & sendo esta a causa de os reter comigo, naõ fiz aggravo a alguem em os fechar, basta que tenha feitos os taes remedios, para acudir com elles aos doentes nos seus apertos; naõ estou obrigado a tirar o paõ da minha boca, & da minha família, & deixala pedindo esmolas: aquelles, que com esta reposta se naõ satisfizerem; podem vingarse em naõ usar dos taes remedios, se a consciencia lhes ficar quieta, depois de lhes constar pelas suas experiencias, ou alheyas, dos admiraveis effeitos, que os taes remedios costumaõ obrar. ( IO.)

IO. Dos damnos que fazem em nòs as paixoens d’alma, falláraõ Vallerio Maximo, (II.) Vanelmonte, (I2.) Theophilo Boneto, (I3.) Monardes, (I4.) Tito Livio, (I5.) Amato Lufitano, (I6.) Galeno, (I7.) Christovaõ da Veiga, (18.) & outros muitos. He porèm de advertir, que nem o gosto, nem a tristeza, nem a ira, nem a vergonha, nem outra qualquer paixaõ d’alma saõ capazes de matar, nem de fazer damno grave, salvo quando forem excessivos, & repentinos: assim o diz Galeno no lugar citado: para o que tambem ajuda muito o ser fraca a faculdade vital, & o desordenado, ou arrebatado movimento dos espiritos.

II. Visto que nesta Observaçaõ digo que a ira, & paixaõ, o temor, & o medo, o gosto, & a tristeza, sendo grandes, saõ capazes de matar, perguntaráõ os curiosos, que cousa he Ira, & porque mata; que cousa he Temor, & porque tira a vida; & que cousa he Gosto, & porque causa a morte.

I2. Respondo. Ira he hum fervor de sangue no coraçaõ com desejo de vingarse de quem lhe fez alguma offensa: se a tal ira he moderada, tão longe está de matar a quem a tem, que antes espertando o calor, augmenta as forças; mas quando a ira hé excessiva, resolve, & debilita de forte os espiritos, que tira a vida.

I3. Temor he hum medo de algum mal, que està para vir, por cuja causa o sangue, os espiritos, & o calor natural, que nelles se sujeita, se recolhem ao coraçaõ, do qual recolhimento se segue resfriaremse as extremidades, descorarse o rosto, tremer o corpo, soltaremse as ourinas, & a camara, embaraçarse a lingua, prostraremse as forças; & quando he demasiado, & em pessoas fracas, ou delicadas, mata de repente: & esta he a causa porque alguns homens, sendo muito moços, & tendo o cabello negro, amanhecèraõ repentinamente com elle todo branco, porque lhes faltou o calor natural naquellas partes; & esta he tambem a causa porque se arrepiaõ, & irritaõ os cabellos aos que tem grande medo; porque como a pelle por causa do temor se esfrie faltandolhe o calor natural, se apertaõ os póros, que antecedentemente estavaõ largos, & por isso se levantão os cabellos.

14. Gosto he huma complacencia, & alegria de algum bem que se logra; se he moderado, he muito conveniente para a saude; se he muito grande, & repentino, mata muitas vezes, como consta de varias historias fidedignas, & de alguns exemplos, que eu tenho visto: & a razaõ porque mata o gosto repentino he, porque com o grande gosto sahe para fóra o calor, & se espalha por todo o corpo para contemplar o objecto deleitavel ; & como he pouco, & espalhado, facilmente se extingue.

OBsERVAÇAM XXX.

De huma grande febre, que procedeo de enchimento do estomago; & porque sangraraõ ao doente quando lhe aviaõ de dar hum vomitorio, ou huma purga para evacuar as cruezas, que faziaõ a febre, lhas meteraõ nas veas com as sangrias, & fizeraõ que a febre, que era symptomatica, degenerasse em maligna mortal.

Muitas saõ as doenças, a que os excessos da gula deraõ causa; & supposto que esta verdade naõ necessitava de prova, pois a experiencia nos mostra cada dia o innumeravel numero de enfermidades, & mortes apressadas de que a fartura teve culpa; comtudo paraque os comilões se moderem, & naõ tenhaõ razaõ, com que desculpem a sua voracidade, mo strarei nesta Observaçaõ os damnos, a que se sujeitaõ os glotões, & qual grande erro seja o sangrar aos que adoecem de fartos, sem os purgar primeiro, aindaque tenhaõ muita febre. E quanto aos damnos que faz o muito comer, digo que os grandes comedores raras vezes chegaõ a ser velhos; & por isso diz Galeno, (1.) q os antigos adoeciaõ poucas vezes, porque eraõ muito moderados no comer: & Hippocrates crates (2.) diz que quem quizer ter saude, ha de comer pouco, & trabalhar muito: & o Ecclesiastes (3.) diz que nos naõ entreguemos muito às iguarias, porque nellas acharemos as enfermidades & verdadeiramente naõ saõ tanto os que morrem aos fios da espada, quanto os que perdem a vida pelos excessos da gula; (4.) esta he a que abrevia os annos, (5.) a que faz a gotta, a que causa as parlefias, apoplexias, estillicidios, febres, convulsoes; esta a que embora o juizo; (6.) & finalmente etsa he a mãy de quasi todas as doenças, como se deixa ver; pois pela mayor parte estas, & outras enfermidades se achaõ naquellas pessoas, que naõ vivem mais que para comer: & pelo contrario raras vezes vemos enfermar aos que comem pouco; porque, como diz Riverio, (7.) a sobriedade, & parsimonia no comer he causa de saude, & de prolongar a vida. E quanto ao grande erro que fazem os que sangraõ nas febres, que procedem de enchimento de estomago, sem primeiro purgar, se confirma com o seguinte caso.

Em dezaseis de Mayo de 1667. (sendo alta noite) fui chamado para acudir Manoel Pedro, que estava espirando, sem falla, sem acordo, com pulssos desiguaes, & com huma febre ardentissima: & perguntando eu aos assistentes pelas queixas daquelle enfermo, me responderaõ que eraõ de grande pejo no estomago, amargores de boca, vontade de vomitar, & ancias de coraçao ao grandes, que naõ cabia na cama; o que tudo lhe procedèra das muitas iguarias, que tinha comido em hum banquete: o que se verificava, porque poucas horas depois de sahir delle o assaltaràõ as queixas referidas com huma febre de taõ dedida grandeza, que no dia seguinte o sangrara o barbeiro, sem que precedesse ordem, ou conselho de Medico; endo o barbeiro que a febre, as ancias, os desejos de vomitar, as queixas do estomago se augmentavaõ, entendo que todo o remedio etasva nas sangrias, & e assim fui sangrando, & mais sangrando, & tornando as sangrar, ate que o doente cahio em desmayos mayos taõ syncopaes, que lhe tiràraõ a falla, & o conhecimento dos assistentes. Ouvida etsa informaçaõ, naõ pude deixar de enfurecerme vendo hum absurdo taõ barbaro, como foi o sangrar a hum homem, que enfermou de fartura, sem advertir que a febre procedia do enchimento que tinha no estomago, & que por isso quanto mais o sangravaõ, tanto mais peyorava, & as ancias cresciaõ, porque se metiaõ nas veas as cruezas do estomago, donde se puderaõ aver tirado na mesma noite como hu vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, ou com duas onças de vinho emetico, ou (se o doente tivesse medo aos vomitorios, como remedio odioso aos Portuguezes) com quatro onças de assucar rosado de Alexandria; mas que de taõ enorme erro, como foi o sangrar, etsando o estomago recheado de comer, naõ era taõ culpado o barbeiro, como os parentes do enfermo, pois fiavão de hum homem ignorante hum negocio de tanta importancia como he a vida, devendo chamar logo algus Medicos de mayor fama, porque se assim o fizeraõ, indubitavelmente o purgariaõ logo, pois das cruezas, & carga de iguarias lhe sobrevieraõ a febre, & as mais queixas; & sem embargo de que era ja alta noite, me parecia que lhe deitassem logo hua ajuda de cinco onças de assucar mascavo, & seis oitavas de diaprunis, & que no dia seguinte chamasem aslguns Medicos para ver se concordavaõ comigo em que se purgasse, como me parecia necessario. Deitoselhe a ajuda, & fez com ella oito cursos, (evidente final da grande carga que tinha) & aliviou taõ visivelmente, que estando sem falla, & sem acordo quando me chamaraõ, fallou, & conheceo a sua mulher, & mais parentes, em cujos desanimados corações resuscitaraõ as esperanças da vida, mas como o que ha de ser tem muita força, chamaraõ para se juntar comigo dous Medicos inimigos capitaes das purgas, & muito mais inimigos dos vomitorios & assim taõ longe etisveraõ de renderse às minhas razões, nem aos textos que alleguei em abono da ga, que antes o mandáraõ sangrar mais. Oh Deos eter-no, no, até quando permitireis que dure alguns Medicos tanta cegueira, & tanta crueldade contra huma obra das vossas mãos? Vendo pois eu a teimosa obstinaçaõ dos taes remedios, & que as minhas razões naõ eraõ bastantes para rendellos, me quiz despedir; mas o grande alivio que o dnte sentio com a ajuda, & as concludentes razões, com que mostrei a necessidade que tinha de ser purgado, satisfizeraõ de sorte ao doente, & a seus parentes, que todos me pediraõ o naõ desemparasse, pois tinha cobrado tanta opiniaõ da minha pessoa. Obrigado destes rogos, & compadecido de ver que se o naõ purgassem morreria, tornei a pedir aos sobreditos Medicos se lembrassem que aquelle enfermo avia etsado em hum banquete no qual naõ tiveraõ numero as iguarias: que era recem casado com mulher moça, & fermosa: que tinha o estomago muito cheyo com grande amargores de boca, & desejos de vomitar: & que das sangrias naõ aviaõ tirado fruto, antes com ellas crescèraõ todas as queixas muito; & sobretudo advertissem no alivio que tivera com a ajuda, que lhe mandei deitar & no muito que obràra com ella; o que tudo arguhia grande carga de cruezas, & grande necessidade de despejallas; & que se a nenhuma razão destas quizessem attender, seguissem os conselhos, & preceitos de Galeno, (8.) de Avicenna, (9.) de Paulo Gineta, (10.) & de infinitos Doutores, que todos uniformemente condemnaõ as sangrias nos enchimentos, & cruezas do estomago, & mandaõ continuar os remedios, quando aproveitaõ, & fugir delles, quando damnificaõ, (11.) Nenhũa persuasaõ destas foi bastante para reduzir a inflexibilidade dos sobreditos Medicos, porque lhes pareceo que era menoscabo de suas pessoas estar pelo conselho de hum Medico moderno, como se fosse incompativel o saber com a mocidade, ou impossivel o ser ignorante com a velhice: protestei pois aos taes Medicos, & aos parentes do enfermo, que se o sangrassem mais, morreria antes de tres dias; & succedeo como eu o disse, porque sangrando-o mais qua-tro tro vezes, acabou a vida com grande perda da sua casa, & afronta vergonhosissima dos dous Medicos, que por ignorancia, ou teima naõ quizeraõ admitir as minhas advertencias, dando por razão que os humores estavão crus, & incapazes para se purgar. Esta reposta, diz Valesio, (12.) que he de homẽs rudes, & não de Medicos letrados; porque naõ ha regra na Medicina, como diz Valhes, que naõ tenha suas excepções, & este era o caso em que he arte afastarte da arte. (13.) Eis-aqui os damnos que fazem as sangrias nos enchimentos do estomago, pois delle cheyo de alimento se seguem as corrupções, & fuligens podres, que subindo ao coraçaõ fazem febre, & subindo à cabeça fazem dores, delirios, convulsoẽs, & apoplexias, pela grande communicaçaõ que estes membros tem entre si, donde se segue morrerem alguns, porque os naõ purgam, & sararem outros, porque os purgàrão com hum vomitorio, que nese caso louva muito o doutissimo Valhes. (14.) Aprendaõ pois daqui os Medicos modernos naõ sangrar estando o estomago cheyo de comer, ou carga de humores na primeira regiaõ, sem purgar primeiro com hum vomitoio de agua benedicta, ou com hũa purga alviduca, por mais que a febre, & as cruezas pareçaõ q o prohibem; porque succede muitas vezes, que limpo o estomago dos humores, que saõ causa da febre, & dos symptomas, que a acompanhão, se tire no mesmo dia; & no caso que se naõ tire logo, bastaraõ poucas sangrias para a tirar, & sem a purga naõ bastariaõ muitas. Assim observei em alguns doentes, a quem livrei da morte dandolhes hum vomitorio, ou huma purga no primeiro dia, em que adoecèraõ. Peço muito aos barbeiros, que curaõ em aldeas, & terras aonde naõ ha Medico, ou a pessoas taõ pobres que o naõ podem ter, que quando forem chamados para curar a algum doente, se informem primeiro se o tal doente he muito comilaõ, se sente pejo no estomago, se tem desejos de vomitar, ou amargores de boca; (15.) se he mui falto de exercicio, & dado à vida des- descansada, & regalona, se he casado de poucos dias, ou muito dado a mulheres, porque se tiver alguma cousa detas, o matarà, quem o sangrar, sem primeiro lhe limpar o estomago com huma purga vomitativa, ou alvidejectoria. Tambem se informará se o doente he muito penitente, ou demasiadamente estudioso, ou trabalhador, ou se lhe falta o comer a seu tempo; porque a estas taes pessoas gastadas, & exhaustadas das forças, às matarà naõ só quem as ansgrar, tambem quem as purgar; & por isso, aindaque tenhaõ febre, se lhes naõ ha de fazer mais remedio, que darlhes bons alimentos, prohibirlhes as penitencias, & retirallas do estudo, & trabalho. Pasmaria o mundo se eu nomeasse aqui as muitas pesosas, que vi morrer, porque as sangràraõ, tendo feito alguns excessos com estomagos taõ cheyos de comer, & coleras, que as estavaõ vomitando: mas não he licito nomear os que fizeraõ etses absurdos; eu me contento com deixar estas advertencias aos vindouros: nem eu escrevo estas cousas para offender a alguem; escrevo-as fim para aproveitar a todos.

Duas cousas muito importantes advirto aos senhores Medicos: A primeira, que naõ desprezem os votos dos mais moços, aindaque lhes pareça que saõ menos doutos, porque muitas vezes permite Deos que acerte melhor o que era tido em menor conta: reparem em que a materia de que trata he a vida do homem: aprendaõ de Antonio Ponde de santa Cruz, (16.) que sendo hum dos mayores Medicos, que ouve no seu seculo, dizia as seguintes palavras: Renego do Medico teimoso, & inflexivel: muitas vezes me aconteceo ouvir aos meus discipulos, (elles o sabem,) & cuido que Deos lhes póde dar a luz para o acerto, que me negou a mim pela minha soberba: eu tomo o conselho de quem quer que mo dà, com tanto que o doente se cure bem. Estas palavras saõ de hum Medico Catholico, ouçaõ agora as de Hippocrates (17.) sendo gentio; diz elle: Ninguem se envergonhe de aprender, & perguntar alguma cousa pro- proveitosa para curar ainda que seja a huma velha, ou official mecanico.

A segunda cousa que advirto he, que assim como na hora de morte hei de dar conta a Deos, se fiz o que aqui ensino, & escrevo, vòs leytor a dareis tambem se o não fizerdes depois destas advertencias dadas por hum Medico taõ cheyo de experiencias, como de annos, & taõ vizinho da sepultura, como que passa de setenta.

OBsERVAÇAM XXXI.

De huma peripneumônia caufada de grande frialdade do ar, muito impetuofo, & penetrante, que fechou os póros do corpo, & impedio tranfpiração, & circulação do sangue.

Ninguem me condene, fe me atrever a dizer com Galeno, (I.) que muitas doenças, que fobrevem aos noffos corpos, principalmente os pleurizes, & peripneumonias, procedem, pela mayor parte, da grande frialdade do ar ambiente; pois obfervamos muitas vezes que no inverno, ou avendo ventos frigidiffimos, reynaõ femelhantes doenças, que de nenhuma outra caufa coftumaõ fucceder, fenaõ porque com o frio fe fechaõ, & apertaõ todos os póros do corpo de maneira, que fe fufpende a tranfpiração das fuligẽs, & a circulaçaõ do fangue, & daquellas fufpendidas; ou retrocedidas, & defte reprezado, & detido na pleura, & nas vias do bofe, neceffariamente fe inflamma, azeda, & incapacita para nutrir, & alimentar as ditas partes, & por iffo a natureza fentindofe offendida, irritada, & dolorofa pelo tal fangue acre, incraffado, & retrocedido, fe altera, & fahe a campo, naõ fó para deitar fóra, mas tambem para franquear a entrada ao ar; porque he impoffivel que eftando obftruidos os vafos pneumonicos com fangue groffo, ou outra qualquer materia corpulenta, poffa refpirar o enfermo com aquella liberdade, que coftumava no tempo da faude: & pofto que fe poffaõ dar muitos pleurizes, & perineumonias fem vento frio, ou ar nevado, mas de exceffivo vinho, ou agua ardente, de muito exercicio, ou trabalho violento, de demafiada agua nevada, ou frigidiffima, de muita ira, de grandes brados, de beber aguas encharcadas, & alagadiças, de algum veneno, & de humores melancolicos, & de mil outras coufas, que pervertem repentinamente a boa temperança do fangue, ou impedem a tranfpiraçaõ, & a diaphorefi dos vapores; comtudo naõ me refolverei facilmente a crer que he apocrita a opiniaõ dos que dizem que do grande frio, & vento muito delgado procedem as ditas enfermidades; mayormente quando me lembra que vi duas peripneumonias procedidas de taes caufas, como pelas feguintes Obfervações farei manifefto.

2. Em nove de Abril de 1976. foi uma honefta viuva, chamada Anna Ayques, ao Convento de santa Gatharina de Riba-mar, que ftá fituado junto às abas do Rio Tejo, naõ tanto para fe divertir, quanto para ver a hum filho Religiofo, morador no dito Convento; & como amanheceffe hum dia fermofiffimo, fahio a dita fenhora de cafa para huma quinta, na qual o frondofo das arvores, a verdura dos campos, a mufica das aves, o fuffurro das agua, a purpura das rofas, a graça das violetas, & a fragrancia dos goivos, erão doce feitiço aos olhos, & roubavaõ as attenções: fe olhava para huma parte, via hum exercito de formigas occupadas em differentes trabalhos; humas levando cargas mayores que os feus corpos; outras defempedindo o caminho para que as que paffavaõ; outras levando na boca as fementes das ervas para o feu fuftento; outras acarretando, & deitando fóra a terra para fabricaar o feu celleiro; outras ajudando a levar os pefos àquellas que por fua fraqueza naõ podiaõ; outras levando fobre fi (com piedofa caridade.) os corpos das formigas defuntas; finalmente via a todas occupadas, & a nenhuma ociofa; & o que fazia mais plaufivel a efte efpectaculo, era ver que em huma multidaõ de tantos caminhantes, as que fahiaõ, naõ eraõ embaraço às que entravaõ: fe olhava para outra parte, eftava admirando como as mellificas abelhas voavaõ, jà fobre os redondos cachos das verdes heras, já fobre os agradaveis, & cheirofos rofmaninhos, jà fobre as pallidas grieftas, jà fobre as fragrantes, & encarnadas rofas, jà fobre os brancos, & nevados jafmins, chupando de humas, & bebendo em outras o doce orvalho, para fabricarem o fuave, & delicioso mel. Entre tantas delicias da vifta, & recreaçaõ dos mais fentidos eftava goftofamente divertida efta pobre fenhora, quando repentinamente fe levãtou hum furacaõ de vento tão grande, frio, & defabrido, q foi neceffario recolherfe a cafa com muita preffa; porque como eftiveffe veftida com huma delgada roupa, a trefpaffou a frialdade de tal modo, como fe tiveffe fobre fi toda a neve dos montes Alpes; & fem embargo que logo a recolhéraõ em huma camera abrigada, & a cubrirão com muita roupa, metendolhe juntamente os pés em agua bem quente, que he remedio de que tenho muita experiencia, para mover a circulaçaõ do fangue, para aquecer o corpo, abrir os póros, & continuar a tranfpiraçaõ das fuligens, que he huma efpecie de evacuação muito proveitofa, como diz Galeno. (2.) Nada foi baftante para fentir alivio, nem cobrar quentura as primeiras quatro horas, porèm paffadas ellas, começou a ter febre, dor gravativa em todo o corpo, toffe fecca, & refpiraçaõ tão difficultofa, & apreffada, que a não podia fazer, fem ter a cabeça levantada, & o corpo erguido; aos quaes fymptomas fe ajuntárão outros finaes não menos formidaveis, & ameaçadores da mayor ruina, como forão não poder eftar deitada de nenhum dos lados, exceffiva vermelhidão no rofto, & fede inextinguivel. De todos eftes finaes não pude deixar de entender que a doença era huma peripneumonia, na qual as entranhas, principalmente o bofe, eftavão inflammadas, & eryfipeladas, & ardendo em Vefuvios de fogo; & como para extinguir femelhante inflammação, & incendio, naõ aja remedio mais efficaz que as fangrias, como diz Galeno, (3.) logo a quiz mandar fangrar, fe mo não impedira o grande pejo que fentia no eftomago, & a grande propenfão que tinha para vomitar por caufa de humas favas verdes, que na mefma hora tinha comido; no qual cafo feria erro fangralla, fem lhe tirar primeiro o dito enchimento, mayormente quando elle era a caufa da doença: porque, como diz Valefio, (4.) a abundancia de cruezas no eftomago he hum grande impedimento para fangrar, porque defpejando as veas, chamão para fi as ditas cruezas, & arrebatadas ellas, ou ficão dentro nas veas pequenas, & caufaõ obftrucções, ou fe metem em lugares mais grandes, & enchem a todo o corpo de cruezas, & vicião ao fangue; ou fazem huma, & outra coufa; por tanto, diz o mefmo Valhes, (5.) o que convem, he evacuar as taes cruezas, antes que fe faça fangria; perfuadindo-o tambem affim Hippocrates; (6.) pois, como diz efte Doutor, a inflammação do bofe nafce pela mayor parte dos exceffos de comer, ou beber; & nefta fupofiçaõ, diz Lormes (7.) referido por sponio, que naõ he fóra de razão dar algũas vezes vomitorios, q valerofamente evacuem, & fação revellir or humores, q correm para o bofe, principalmente fe o doente não efcarrar fufficientemente: defta opinião he Hippocrates, (8.) & outros graves Authores, (9.) os quaes expreffamente mandão dar o vomitorio de agua benedicta, dizendo que ainda que alguns Medicos medrofos fe naõ atrevaõ a feguir efte methodo de curar, comtudo que elle he fundado em razaõ, & experiencia, porque ouve Medico doutiffimo, que por efte eftylo curou peripneumonias de que não avia efperança; mas como contra eftes Doutores aja outros tambem graviffimos, que nos pleurizes, & peripneumonias, por ferem inflammaçoens internas, condemnaõ as purgas, & fó louvão as fangrias; contenderão entre fi a peripneumonia, & o enchimento do eftomago, fobre qual dos remedios avia de preferir; mas revalecèrão não fó as experiencias de Lormes, de Handfchio, jà referidos; mas a de Hartmano, (I 0.) de Rulando, (I1.) de Freitagio, (I2.) & de outros Doutores graves, que differão naõ aver remedio mais efficaz para curar o pleuriz, & peripneumonia, do que o antimonio applicado no primeiro dia da doença: affim o aconfelha tambem Pedro Pacheco (I3.) & eu o faço tambem affim, quando com o pleuriz, ou peripneumonia fe ajuntão cruezas, ou carga de comer no eftomago, & obfervo admiraveis effeitos. Nem me acovardou a authoridade do grande Hippocrates, (I4.) o qual aconfelha aos Medicos, que nas doenças mui perigofas, em que os enfermos tem já a morte na garganta, fe naõ appliquem remedios, por não infamar com huns os medicamentos que tem aproveitado a outros. Não obftante porèm efte confelho, coftumo eu dizer, que em quanto a alma fe não aparta do corpo, fempre podemos ter efperanças da vida, & applicar remedios; por tanto, aindaque a fobredita enferma eftava moribunda, me pareceo impiedade ver perigar a hũa doente, a quem eu amava como mãy, & não perigar juntamente com ella, & affim tentei a cura, dandolhe no mefmo dia vinte grãos de pòs de quintilio preparados por minhas mãos, mifturando-os com tres onças de agua commua; & forão tão proveitofos os vomitos que fe feguirão, que logo refpirou com facilidade, & paffadas feis horas, a fiz fangrar na vea d ‘ Arca do lado enfermo, repetindo efte remedio quatro vezes no mefmo dia, paraque defpejadas com preffa as veas do fangue, fe defpejaffe tambem a caufa da doença, & reforbeffem as veas em fi a materia, que eftava embebida na parte queixofa. Nefte comenos para retundir o fervor do fangue furiofo, & refrigerar as partes interiores inflammadas receitei o feguinte cordeal antipleuripneumonico. Tomai de cevada pilada hũa mão cheya, ponhafe a cozer em anela de barro com vinte quartilhos de água commua, até ficarem feis, & então fe deite na dita agua huma onça de cafcas de raiz de bardana machucadas, & hum punhado de flores de papoulas feccas, ou verdes, & com eftas duas coufas ferva hum quarto de hora, & entaõ fe tire a panela do fogo, & dentro na tal agua, eftando ainda quente, deitem feis efquibalas, ou bonicos de efterco de cavallo frefco daquelle inftante, & paffadas duas horas fe coe a fobredita agua por panno bem tapado, & entaõ lhe mandei ajuntar duas onças de lambedor magiftral de flores de papoulas, & tres oitavas das minhas pilulas abforbentes, chamadas por outro nome alcalicas: & nas terras aonde não fe acharem as taes pilulas, podem deitar em feu lugar tres oitavas de coral bem preparado, porque ainda que não tem tanta virtude como as fobreditas pilulas, em falta de paõ de trigo póde fervir paõ de centeyo, ainda que feja muito inferior. E defte cordeal antipleuripneumonico bem vafcolejado, & revolvivo fiz tomar à doente meyo quartilho de feis em feis horas; & naõ he dizivel a brevidade, com que a doente farou, porque logo refpirou com liberdade, logo fe pode deitar de hum, & outro lado, logo fe tirou a exceffiva vermelhidaõ do rofto, logo fe tirou a febre, & ficou livre do grande perigo, em que avia eftado. Nem he de admirar que affim fuccedeffe, porque efte cordeal conftava dos melhores abforbentes, & volatilizantes, que ha em toda a Medicina: porque dos abforbentes os melhores fão as minhas pilulas antifebriles, os olhos dos caranguejos, os aljofares, & os coraes: & dos volatilizantes os melhores faõ o efterco do cavallo, a ferrugem da chaminè, o priapo do vedo, o efpirito do corno de veado, o incenfo, o almifcar, o fangue do bode, a raiz da bardana, as flores das papoulas, & outras muitas coufas, que deixo de referir por não enfadar.

3. Finalmente como todas eftas coufas tenhão admiravel virtude, affim para embeber os humores acidos, que coalhaõ o fangue, como para defcoalhar a groffura delle, & eftes dous vicios coftumaõ fer a caufa do fangue fe reprezar, & não fe circular, & de apodrecer, daqui procedem as inflammações pleuriticas, & peripneumonicas; & daqui fe fegue ferem eftes remedios a clava de Hercules, que ajuntandofe com as fangrias repetidas coftumaõ obrar milagrofos effeitos na cura dos pleurizes, & peripneumonias, como nefte cafo, & no que logo contarei, fe deixa ver com toda a evidencia.

Observaçam XXII.

De outra peripneumonia, que fobreveyo a huma mulher, porque eftando muito fuado, & canfada bebeo hum pucaro de agua fria, & fe poz a huma janella por onde entrava ar muito delgado; & fendo eftes erros capazes de a matar repentinamente, (como tem fuccedido algumas vezes) cahio em uma pneumonia tão perigofa, que fe lhe eu naõ acudira com hum vomitorio, & repetidas fangrias, & outros remedios efpecificos ,infallivelmente morreria.

I. GRande fortuna he daquelle doente, que para fe curar acha hum Medico douto; mas ainda he mais bem afortunado, fe fobre fer douto, tiver conftancia, & valor, paraque nem o defempare (desampare? não sei como se encaixaria),fe o vir em grande perigo, nem tenha medo de lhe aplicar os mais efficazes remedios, ainda que fejão violentos, quando não achar outro recurfo para falvarlhe a vida, fem recear que a malicia o calumnîe, quando o fuceffo feja menos bom do que o feu defejo. Digo ifto, porque avendo nefta Corte alguns Medicos grandes letrados, fe atemorizaõ.de maneira,(quando vem que a doença he muito perigofa,) que naõ fe atrevevem a applicar os remedios mais activos,de puro medo de que lhes attribuaõ algum finiftroacontecimento, como muitas vezes attribuem (de ~q já fe queixava Hippocrates,) (I.) fem reparar na granderazaõ que o Medico teve para applicar efte, ou aquelle remedio; mas defta demafiada covardia fe feguem dous grandes damnos: o primeiro he, morrerem os doentes, que poderiaõ viver, fe o Medico naõfoffe medrofo: o segundo he, privarfe da gloria de fazer curas, que pareceffem milagrofas: mas deftestaes Medicos, que fabendo muito, (de pura covardia)obraõ pouco, ou nada, não fó fe queixa Galeno, masos pragueja, & almadiçoa. (2.).

2. Em confirmaçaõ difto que digo, referirei o feguinte cafo. No fim da rua das Arcas era moradorLuis Rodriguez de Pavîa: avia em fua cafa h~ua criada,que ao romper de hum dia muito frio, fe ergueoda cama para amaffar (algum tipo de atividade profissional?), & pondofe ao trabalho, prezada de grande amaffadeira, fe fatigou na fabrica daquella obracom tal exceffo, que acabou com humcopiofiffimo fuor, & com muita quentura, & fem faber o que fazia, não fó fe fartou de agua fria, mas fepoz a huma janella, aonde corria ar mui penetrante, & delgado: de improvifo parou o fuor, & fe fecháraõ os póros de todo o corpo de maneira, que nãocontinuou a tranfpiraçaõ, & lhe deo logo huma pontada na parte efquerda, toffe fecca, vermelhidaõ no rofto, fifficuldade de refpirar, & de poder deitarfe,com huma febre taõ intenfa, que todos entendèraõque naquella mefma hora morreria: nefte aperto me chamàraõ, & pelos fymptomas referidos conheci que a fobredita.enferma naõ fó tinha o bofe inflammado, mas tambem a membrana, que o prende com as coftas: tinha inflammaçaõ, porque fentia dor, que não teria, fe o bofe fó foffe o inflãmado: bem conheci que efta doença era huma peripneumonia, & que o verdadeiro remedio para efcapar da morte, aviaõ de fer as fangrias grandes, & repetidas, feitas nos braços, como he confelho de Baronio, (3.) o qual tratou defta enfermidade melhor que todos, & fallando nella, diz as feguint es palavras: Em conclufaõ ne erro da mayor marca, nas grandes doenças, qual he a peripneumonia, fangrar poucas vezes, mas he neceffario fazer fangrias copiofas, porque nas grandiffimas inflammaçoens, faõ neceffarias grandifimas defcargas, para acudir com preffa, & revellir (não consigo entender no contexto) os humores da parte que padece. E em outro lugar diz: Ninguem fe admire fe vir morrer de peripneumonia aquelles doêntes, a quem os Medicos em lugar de os fangrar copiofa, & repetidamente, os fangrarem pouco. E em outra parte diz: Naõ ha razaõ, ou pretexto; que bafte para defperfuadir as fangrias na cura da peripneumonia, pois em toda a forte de pleuriz, & peripneumonia he remedio conveniente.

3. Não obftante porèm eftas razões de hum Author tão grave, & que compoz hum livro inteiro fobre efta doença, faziãome grande duvida para as fanfrias as cruezas que tinha no eftomago; no qual cafo affim Galeno, (4.) como toda Efcola Medica prohibem muito as fangrias, por não meter as cruezas nas veas, em lugar de fangue que dellas fe tirou; por outra parte o aperto da doença aguda, & o grande perigo da doente não davão lugar para que fe cozeffem, & diftribuiffem; nefte aperto efcolhi por melhor remedio defpejar logo o eftomago das cruezas, para que pudeffe fangrar com mayor fegurança, feguindo defte modo o confelho de Celfo, (5.) o qual diz: se hum doente eftiver em grandiffimo perigo, & para o livrar delle naõ ouver outro remedio mais que hum temerario, deve o Medico ufar delle com toda a confiança; porque he melhor fazer algum remedio duvidofo, que deixar morrer o doente com certeza. E como eu viffe (visse?) que fem defpejar o eftomago o matarião as fangrias, dei à fobredita enferma logo nas primeiras horas da doença tres onças de agua benedicta vigorada, de que fe feguio hum grande defpejo de cruezas por vomito, & curlo, & hum confideravel alivio da natureza. Nem efta minha refoluçaõ de dar o vomitorio foi tão fem padrinho (?)(talvez uma expressão idiomática antiga), que não tiveffe em feu favor a muitos Authores doutiffimos, que nos pleurizes, & peripneumonias os dão, & louvão tanto, que os antepoem a outras purgas.

4. Defpejado já o eftomago, fangrei naquella mefma tarde duas vezes, & no feguinte dia tres, & no outro outras tres, efperando que com taõ apreffada defcarga fe impediffe o augmento, & perigo de inflammação de parte taõ mimofa, & delicada, como he o bofe; & no entretanto que hiaõ repetindo as fangrias, lhe fazia tomar ajudas frefcas, & leviffimas, feitas de feis onças de foro de leite, & tres de affucar mafcavado; outras vezes de caldo de frangaõ, & tres onças de lambedor violado. Tambem lhe mandei que de feis em feis horas tomaffe meyo quartilho da feguinte agua antipleuritica, que para temperar a inflãmaçaõ, & dulcificar a acrimonia dos humores acidos he mui appropriada. Tomai as cafcas de raizes de bardana machucadas huma onça, de flores de papoulas vermelhas huma maõ cheya, de agua ordinaria huma canada, tudo fe coza em panela de barro com fogo brando, & coandofe, ajuntai a efte cozimento duas oitavas de pó fubtiliffimo de dente de porco montèz, &tres oitavas das minhas pilulas antifebriles, que faõ abforbentes, & dulficantes da mayor grandeza, com duas onças de lambedor de papoulas. Porèm ainda que èfta agua he admiravel, comtudo a dor nafcida dos acidos errantes, & exaltados picava (agulha?), & efpafmava as fibras das partes inflammadas de tal modo, que neceffitava de mais efficazes remedios para modificar a fenfaçaõ da parte, & rebater a acrimonia do humor, & affim ufei da feguinte fomentaçaõ anodyna, & tanto, ou quanto narcotica, feita de huma onça de unguento peitoral, & tres oitavas de triaga magna, & huma gema de ovo crua; & com efte lenimento fiz fomentar o lugar da dor, pondolhe por cima hum paõ quente vindo do forno, partido pelo meyo. Mas como a dor fe naõ tiraffe com os abforbentes, nem com os rarefacientes, & volatilizantes, nem com os anodynos, entendi que era precifo cozer a materia, que eftava embebida no bofe, para que com toda a brevidade fe deitaffe fóra por efcarro; porque o efcarrar bem na peripneumonia ainda he mais proveitofo, & neceffario que no pleuriz; por quanto a caufa da peripneumonia, como eftà no mefmo bofe, tem mayor perigo que a materia do pleuriz, que não eftà nelle; por tanto ordenei que tomaffe muitas vezes no dia o feguinte lambedor morno. Tomai de raizes de malvaifco, & de bardana machucadas, de cada coufa deftas meya onça, de folhas de avenca huma maõ cheya, de cabeças de hyffopo, & de oregão, de cada coufa deftas meya duzia, com vinte maçãs da Nafega, tres figos paffafos, & hum cacho de paffas fem grainha, fe coza tudo em panela de barro com tres quartilhos de agua, & coandofe com forte expreffaõ, fe faça lambedor (não entendi no contexto), com o affucar neceffario; ao que fiz ajuntar duas oitavas de fperma ceti, porque tem admiravel propriedade de defcoalhar o fangue, & refolver os humores tartareos do bofe.

5. Finalmente para acabar de aperfeiçoar o cozimento da materia, & facilitar mais os efcarros, lhe dei tres noites fucceffivas hum pero camoez recheado com meya oitava de almifcar, & hum efcropulo de pò de flor de papoulas, affado com fogo brando, bebendolhe em cima quatro onças de agua de cardo fanto morna; & foi taõ efficaz efte remedio, que cozeo a materia, & a foi deitando por efcarro com tanta felicidade, que dentro de doze dias teve perfeitiffima faude. Alguns ufaõ do pero affado com huma oitava de incenfo macho; mas o almifcar faz tanta ventagem áo incenfo, quanta faz o ouro ao chumbo, creame quem quizer.

6. Do que acima diffe confta, que nos pleurizes, & peripneumonias póde alg~uas vezes fer conveniente o purgar: & ainda que antes do fepteno tenha algum rifco, por ferem inflammações internas; comtudo naõ faltaõ Authores graviffimos, que o aconfelhaõ, avendo grande neceffidade.

7. Martim Rulando (6.) purgou a alguns com quatro onças de xarope violado folutivo, defatado com duas onças de agua de chicoria, repetindo a mefma purga paffados tres dias: a outros purgou dandolhes huma onça do feu efpirito da vida aureo, com que purgavão por huma, & outra parte com feliciffimo fucceffo, não lhes dando de comer mais que caldo de gallinha, & em lugar de agua, leite de amendoas doces, & pevides de melaõ defatadas em agua de farelos, primeiro muito bem lavados, & limpos da farinha. Gregorio Handskio(7.) nas do~eças difficultofiffimas de curar, como faõ as peripneumonias, as inflammações do coraçaõ, & do eftomago, dava o antimonio preparado. Pedro Pacheco (8.) diz ~q todos os doentes, que tendo pleuriz vomitàraõ no primeiro dia de enfermidade, faràraõ, aliviada a pleura da carga, que a opprimia, com o beneficio da purga. Riverio (9.) purgou a hum peripneumonico ao quarto dia com feliciffimo fucceffo. Hartmano (10.) diz ~q a verdadeira peripneumonia fe cura com vomitorios dados no primeiro dia. O Doutor Lormes (11.) dava aos peripneumonicos, & pleuriticos os pòs de quintilio, & livrava com efta purga a muitos, eftando jáfem efperança de vida. sponio diz que elle ufa nas peripneumonias de vomitorios, & que nunca fe achou enganado com o tal remedio; antes tem por muito covardes aos Medicos que temem delle.

8. sejame licito advertir aos Medicos principiantes, que o Mediaftino, ou tunica, que divide os lobos do bofe, fe inflamma, & incha algumas vezes de tal forte, pela grande quantidade de humor, que nelle fe embebe, que naõ fó o faz adquirir nome de peripneumonia , mas he caufa de que o bofe fe inflamme pela vizinhança que com elle tem.

9. Tambem advirto aos modernos, que fe algum dia fucceder que o pleuriz, ou peripneumonia fejaõ taõ.rebeldes que naõ obedeçaõ aos remedios fobreditos, que nefte cafo dem com toda a confiança aos taes doentes duas vezes no dia hum bom copo da feguinte amendoada antipleuritica, que he fará do modo feguinte. Tomem de femente de linho huma onça, de femente de dormideiras brancas meya onça, pizemfe eftas duas coufas muito bem em hum gral de pedra, & entaõ fe desfaça efta maffa em meya canada de agua da fonte, que primeiro feja cozida com duas oitavas de limadura fina de offo de veado, com huma onça de cafca de raiz de bardana, & entaõ lhe ajuntem a efta amendoada duas onças de lambedor de flores de papoulas, duas oitavas de coral bem preparado, & duas de pò fubtiliffimo de dente de porco montez; porque não he dizivel a eftupenda virtude, que eftas amendoadas tem para os pleurizes, & peripneumonias, que não querem obdedecer a remedio algum.

10. Diffe acima que as fangrias grandes, & repetidas era hum dos remedios mais proveitofos para as peripneumonias; mas ifto fe deve entender, fe a doença começou logo por peripneumonia, & quando o doente eftava com todas as fuas forças; mas fe a peripneumonia fobreveyo depois de outra qualquer doença, eftando jà o corpo fraco, & falto de forças, nefte cafo naõ louvo (parece muito fora de contexto) as fangrias, fenaõ poucas, & pequenas. porque como toda a efperança de efcapar do perigo depende do efcarrar bem, faõ neceffarias forças para cozer os humores, & para os expectorar. Rodo muito aos Leitores, que vejaõ Baronio. (12.)

11. Advirto ultimamente que fe nem os vomitorios de agua benedicta dados no primeiro dia, nem as repetidas fangrias fizeram o proveito defejado, que em aõ apertado lance fomentem a pontada com o oleo de Contraveleni do graõ Duque de Florença, que fe for verdadeiro, obfervaraõ hum effeito taõ prodigiofo, que fiquem admirados: digo ifto, porque o tenho experimentado muitas vezes com fucceffos quafi milagrofos.

12. Mas porque nem em todas as terras fe achará o oleo fobredito, ou poderá fer falfificado, como hoje ha muito, podem ufar do oleo da abobora, que he o mais grande, & admiravel remedio que ha para as pontadas de pleurizes; os que o experimentarem, conheceraõ o grande beneficio que fiz ao mundo em lhes defcubrir hum tão grande thefouro, & fe faz do modo feguinte.

13. No mez de Agofto tomem quatro aboboras brancas, & faõ aquellas que os doentes comem, & rafpandoas muito fubtilmente, lhe tirem a pellinha exterior de forte, que fiquem na cafca verde, & então fe fação em tiras compridas, & eftreitas, & com a mefma faca fe lhe tire tudo o que for miolo, & carne branca de tal forte, que naõ fique pegada nas ditas tiras coufa alguma do branco, mas fó fique o que he verde; eftas tiras fe pezem em huma balança com outro tanto de azeite velho, o melhor que fe puder achar, & metendo tudo em huma tigela de fogo vidrada, que naõ tenha fervido de outra coufa, fe ponha fobre fogo fem fumo, & fe ferva tanto tempo, atè que as fobreditas tiras fe torrem quafi como carvão, tiremfe de dentro as taes tiras, & efta tigela com o azeite, fe leva a cafa de hum ferreiro, & com tres pedaços de ferro virgem, (quero dizer, que naõ aja fervido,) fe ferre tres vezes o dito oleo, cobrindo a tigela com tefto quando fe ferrar, para que fe apague muito depreffa a lavareda; & efte he o admiravel fegredo dos fegredos, com que fe curaõ os pleurizes por modo de milagre.

14. O modo com que fe ufa defte remedio, he na fórma feguinte. Aquentaráõ duas colheres de oleo, & com a maõ quente molhada nelle esfregaràõ o lugar da pontada com tal brandura, que fe naõ efcandalize a parte, mas durarà a esfregaçaõ tempo, que fe rezem oito Ave Marias, para que a virtude do oleo penetre dentro, & logo cobriràõ o lugar com humas eftopas quente, & enfaixaràõ com h~ua toalha de linho quente; & não ferà neceffario repetir eftas fomentações mais que dous, ou quando muitó, tres dias, porque nelles obfervaráõ huma melhoria quali milagrofa.

OBsERVAÇAM XXXIII.

De huns accidentes uterinos, que Dona Maria Fuzarte padeceo quatro anos, & estando já deixada ao arbítrio da natureza, me chamarão, para que a curasse; & sem embargo que pudera acovardamente, o saber que alguns Medicos da mayor opiniaõ tinhaõ largado o leme em taõ grande tormenta, fiz quanto pude por livralla; & faraõ as minhas diligencias taõ bem succedidas, que no discurso de dous meses teve saude taõ perfeita, que gerou dous filhos, & viveo dezoito annos por beneficio da cura que lhe fiz.

Dona Maria Juzarte, mulher de Nicolao Pedro, morando à Boa vista, padeceo quatro annos huma enfermidade rebeldissima, acompanhada de symptomas taõ formidaveís, que atè os Medicos mais doutos, & experimentados a tiveraõ por diabolica, & tanto mais crescia esta suspeita, quanto menos alivio colhiaõ dos remedios, que em taõ largos tempos lhe applicàraõ, porque em todo o ventre, & estomago sentia grandes dores, às quaes se ajuntavão palpitações do coraçaõ, dores de cabeça, inchaçaõ de ventre, tremores de membros, laxidões de todo o corpo, arrotos taõ grandes, & contínuos, que lhe duravaõ horas successivas: vacillavalhe o juizo de forte, que humas vezes entendia que a despenhavão de huma torre, & por isto resistia, & fazia grandes forças contra os imaginados empuxões; outras vezes estava taõ calada, que nem huma palavra dizia; outras vezes tinha a respiraçaõ taõ presa, & apertada, que presumia a affogavão com huma corda; outras vezes estava taõ triste, que sendo levada a hum campo, nem o brando sussurro das aguas de hüa fresca ribeira, nem o verdor das ervas de hum valle ameno, nem a viraçaõ suave das arvores sombrias, nem a doce melodia das canoras aves, podiaõ divertir sua tristeza, nem moderar os seus cuidados. seria impossivel referir aqui a multidaõ de achaques, que atormentavaõ a esta enferma, digna de melhor fortuna; nem encarecer os grandes apertos, em que se viraõ os mais engenhosos Medicos para a tirarem de taõ profundo mar de tormentos. Imaginavaõ huns q a doença era hypocondriaca, & por isso (depois de varias sangrias, sanguisugas, xaropes, purgas, & apozemas) appellarão para os banhos de agua doce, como remedio muito proprio da hypocondriaca; porèm foi o successo taõ contrario ao que se esperava, que obrigou aos assistentes a suspendellos. lmaginavão outros que a tragedia de taõ exquisita doença procedía de obstrucções prufundissimas, occasionadas pela vida sedentaria, & falta de exercicio que sempre tivera, ou pelo barro que tinha comido, & por isso (depois de applicados os remedios universaes) chegàraõ ao uso do aço; mas com taõ infeliz sorte, que lhe faltou pouco para morrer com elle. Consideravaõ outros que huma hydra de tantas cabeças tinha a sua origem na qualidade gálica, & que para a render, era necessario lançar maõ da poderosa espada do mercurio, ou da falsa parrilla; & estando os Medicos por este parecer, entrou a tomar suores com grande esperança de que com elles avia de achar remédio ao seu mal; mas em lugar da saude desejada, se tornou a doença mais ferina.

2. Neste enleyo, & confusaõ de Medicos taõ doutos se chamàraõ outros, & fazendose huma consulta se propoz nella se feria acertado mandalla às Caldas, visto as grandes eructações, & rugidos de ventre, & estomago que tinha, o que tudo denotava fraqueza das entranhas, & acidos errantes, que ellas geravaõ: concordàraõ todos que sim, & logo sem demora partio para ellas, & entrou nos banhos com huma certeza moral de conseguir com elles a saude pertendida; mas não succedeo como desejavaõ, antes se fez a doença muito mais obstinada. Admiraraõse os Medicos, & confessaraõ q se tinhaõ enganado, quando entendèraõ que semelhantes rugidos, flatos, inchações, & dores de ventre tinhaõ por causa a debilidade do calor natural suffocado com a copia dos humores crus, & que fundandose nestas conjecturas, lhe aconselharaõ as Caldas; porèm como vissem que depois delas peyoràra com excesso, accusaraõ a grande de quentura do figado, & para o refrescar lhe deraõ muitos dias caldos de frangãos recheados com ervas refrigerantes; porèm tudo sem utilidade: appellaraõ para os soros de leite, dando-os largo tempo, & em grande quantidade, como aconselhaõ graves Authores (I.) porque de outra sorte sendo poucos, ou pequenos, nada aproveitariaõ, porque naõ chegariaõ às partes mais distantes: naõ se esquecéraõ das tisanas, dos epithemas, das ajudas, dos julepos, das ventosas, das ligaduras, esfregações, fontes, & outros medicamentos capazes de temperar os incendios, em que entendiaõ se abrazava. Mas porque a doença desprezou a todos os remedios, chamàraõ a conselho a outros Medicos, que uniformemente disseraõ com Domingos Duclos, (2.) que a causa de taõ grandes males, & sua resistencia davão a entender que tudo procedia de obstrucçóes das veas lacteas, lymphaticas, & mesaraicas, porque naõ podendo passar por ellas, a parte mais grossa do chylo se requeimava, & esturrava, & fazia varios damnos a todos os membros do corpo; & porque as doenças, ou por muito antigas, ou por muito centraes fe não rendem às medicinas ordinarias, resolveraõ que se lhe desse a agua de Aspar, por ser mais subtil, & penetrativa que outros remédios; & tomandoa cinco, ou seis dias, se achou a doente muito peyor; ou porque o mesmo remedio naõ serve para todos; (3.) ou porque o corpo não estava taõ evacuado como era necessario: & todo o fundamento que tiveraõ para o entender assim, foi o ver que ourinava muito menos quantidade do que bebia; & naõ succederia assim, se a agua passasse bem, porque ourinaria muito mais, & faria grande proveito; mas como o naõ fizesse, tornàraõ a purgar, & repetiraõ a agua em quantidade de huma canada, cada manhã em jejum, porque sendo pouca, dizem muitos Authores (4.) que nada aproveita; porèm teve o mesmo mào successo que da primeira vez.

3. Neste aperto presumiraõ os Medicos, que a doença era escorbútica, porque ainda que na enferma se não achavaõ pintas vermelhas, roxas, ou negras, nem bafo fedorento, nem gingivas inchadas, ou sanguinolentas, nem dentes aballados; que todos estes finaes, ou algum delles saõ inseparaveis dos que padecem o tal affecto, por causa do sangue adulto, salgado, lixivioso, & corrosivo; comtudo para se poder dizer que era affecçaõ escorbutica, bastava que a doença resistisse a todos os remedios, & que a phlegma, a lympha, ou o chylo, não pudesse entrar nas veas mesaraicas, ou nas glandulas do mesentério, mais que com a, parte tenue, & serosa; & ficando fora a parte mais crassa, ficava como estagnada, & por isso mais corruptivel, mais acida, & mais austera, & como tal offendia todas as partes, & fazia romper nos sobreditos symptomas. Resoluto pois que a enfermidade era escorbutica, começàraõ a curar, mandando que a doente fosse para sitio de ar puro, & inclinante a calido, fugindo de ares grossos, nebulosos, maritimos, ou paludosos, por quanto as partes salsuginosas, & acidas do ar exhalante fixão, & engrossaõ o sangue, & o capacitão para se contrahir o escorbuto. Alem disto proseguirão a cura com alimentos de boa substancia, & facil digestaõ com os quaes misturàrão algũs especificos antiscorbuticos, como saõ os agrioẽs, a alfacinha a coclearia, a erva ferro, o trifolio acetoso, a erva vermicular, fervidas todas, ou algumas mas dellas a fogo brando em caldo de frangão; porque que todos os remedios antiscorbuticos, & quaisquer outros, que tem as suas virtudes na parte superficial, ou volatil, naõ sofrem cozimento largo, sem perder a virtude. O cozimento pois da erva vermicular costuma aproveítar maravilhosamente, assim bebido, como applicado por fora, nas dores contracturas, & chagas nascidas de qualidade escorbutica. Mas como destes remedios se naõ colhesse utilidade alguma, recorrèrão para os saes volateis do corno de veado, do alambre, do sal armoniaco, & para outros de igual efficacia; porque ainda aos pouco exercitados na Medicina consta, que naõ ha enfermidade alguma, que taõ promptamente obedeça aos remedios volateis, do que o escorbuto. Porèm como nem destes remedios taõ decantados colhessem alivio, se derão os Medicos por rendidos, & se despedirão, dizendo que elles tinhão feito por sua saude quanto cabia na esfera do poder humano, & que de boa vontade darião a palma a quem a curasse.

4. Neste aperto appellou a miseravel doente para as velhas benzedeiras, consultou os barbeiros ignorantes, & entregouse a alguns estrangeiros saltimbancos, & o que peyor he, não temeo fiarse de feiticeiras; mas de todos estes mesinheiros se experimentàrão baldados os remedios, & os conselhos.

5. Em taõ desesperado conflicto me chamou Nicolao Pedro, marido desta affligida enferma, & dandome, conta dos remedios applicados, & dos symptomas referidos, vim a conhecer q a enfermidade toda era uterina; porque àlem de que estou certo que o utero he capaz de fazer accidentes mui semelhantes aos, escorbuticos, & ainda mais horriveis, tinha ouvido dizer a huma mulher mui fidedigna, que esta enferma sentira a primeira invasaõ da doença no mesmo dia, em que certa senhora lhe foi dar os parabens do nascimento de hum filho; & como os vestidos, que levava, fossem muito cheirosos, de tal forte se alterou, & enfureceo a madre, que estando ainda presente a visita delirou, & ficou fóra do seu juizo, & desde aquella hora naõ passou dia algum sem padecer esta, ou aquella queixa; por tanto fui de opiniaõ, que as dores, & inchações do ventre, & do estomago, os rugidos das entranhas, as palpitações do coraçaõ, os pesos da cabeça, & costas, os tremores de membros, as laxidões do corpo, as alheações do entendimento, o fastio, a tristeza, os soluços, &, todos os accidentes referidos se deviaõ reputar como uterinos, & por isso se avia de curar com remedios antistericos, & que tanto mais consiadamente avia de seguir aquelle methodo de curar, quanto mais desenganado estava do pouco fruto, que os remedios antecedentes tinhão feito, & ainda que pela multidão dos symptomas, & grande duraçaõ da enfermidade, estivessem as forças taõ prostradas, que o Medico de mayor valor teria medo de entrar na cura; comtudo, porque me pareceo cousa indigna de Medico Catholico desemparar a hum doente, por mais perigoso que esteja, me resolvi a aceitar a empreza, mayormente quando me consta que escaparaõ da morte alguns doentes, de que ja não avia esperança, & que morrèraõ muitos, de q nenhũa desconfiança avia; (5.) por tanto tenho por bom conselho, que o Medico faça da sua parte quanto puder, por soccorrer ao doeute, porque ainda que a Medicina naõ possa livrar da morte a todos, sempre se deve aplicar (como diz seneca) (6.) a huns para remedio, a outros por consolaçaõ; obrigado da necessidade tratei de evacuar brandamente a causada doença com a purga seguinte, que he admiravel, & tirada do escritorio dos meus segredos.Tomem de massa de hiera de Pachio huma onça, de mechoação polvorizado grossamente tres oitavas, de zedoaria huma oitava & meya, de castoreo meya oitava, de diagridio sulphurado dous escropulos, tudo se misture com o que bastar de xarope de artemija, & se façaõ pilulas ; destas dei oitava & meya por cada vez, de tres em tres dias, & deste modo as tomou doze vezes: porque as enfermidades muito antigas, ou que estaõ em partes mui distantes, nem se podem curar com remedios leves, nem poucas vezes repetidos. Encomendo muito aos senhores Medicos modernos, que observem pontualmente este conselho; que he fundado em muitas experiencias minhas, & na doutrina de Galeno, (7.) & de outros gravissimos Authores, que ja se queixavaõ de que nestes tempos se tinhaõ por incuraveis muitas doenças, só porque os Medicos naõ se atrevião a usar dos remedios efficazes, & repetidos.

6. Depois que a minha nobre enferma usou destas pilulas, se rebatéraõ, & diminuiraõ de sorte os accidentes hystericos, q foraõ menores, & vieraõ mais retardados, & em gratificaçáo da melhoria q experimentou com os meus remédios, prometteo ser muito obediente ao q lhe mandasse. Para que pois naõ tornassem a brotar algumas raizes da enferrmidade, & fizessem novos accidentes, lhe dei outras pilulas, cuja preparaçaõ tive muitos annos em segredo, porque não quis envilecer hum taõ grande remedio com a publicidade; porèm agora o quero fazer publico para utilidade de todos. Tomai de assafetida, de semente de bisnaga, de agno casto, de raiz de pionia macho, & de alambre preparado, de cada cousa destas duas oitavas & meya, de cravo da India meyo escropulo, de zedoaria huma oitava, tudo se incorpore muito bem com o que bastar de terebinthina em ponto, & se formem pílulas; destas dei cada vez dous escropulos em dias alternados, atè se acabarem. E para coroar esta obra, & confortar a madre, fomentei muitos dias todo o ventre com o seguinte lenimento. Tomem de banha de flor duas onças, deitese dentro de huma tigela de fogo vidrada com huma mão cheya de folhas de gallacrista, & ferva até que as folhas se torrem, & depois que este licor estiver quasi frio, se deitem fóra as ditas tas folhas, & lhe ajuntem tres oitavas de tacamaca, meya oitava de oleode alambre, & meyo escropulo de espirito de alfazema, & misturandose estas cousas muito bem, ficou hum lenimento maravilhoso, com que se fomentou o ventre todos os dias. Faltaõme palavras para explicar a alegria, que os patentes, & toda a familia tiveraõ, vendo escapar a esta senhora de hum perigo taõ grande, depois de desemparada dos Medicos mais famigerados.

7. Muitas mulheres pudera nomear, que por beneficio dos referidos remedios se livràraõ de taõ penosa enfermidade; mas porque tive entre mãos algumas donzelas, & outras casadas, cujos acidentes uterinos zombaraõ de todos os remedios antistericos interior, & exteriormente applicados, me resolvi a entender que semelhantes accidentes naõ traziaõ os seus principios de copia de sangue, nem de semente reteùda, nem podre, como muitas vezes succede, & algumas pessoas cuidão; porque se procedessem destas causas, nem as casadas, que usaõ largamente dos actos conjugaes, nem as donzellas, que pagaõ com pontualidade, & abundancia os tributos lunares, terião taes accidentes. Avemos pois de entender que os assaltos uterinos, q nem com o uso do matrimonio se vencem, nem com a copia das purgações mensaes se tiraõ, nem com os remedios mais decantados se domão, procedem indubitavelmente de alguma qualidade occulta, & imperceptivel ao nosso juízo, que a modo de aura, ou vapor venenoso sobe da madre, & irritandoa, ou enfurecendoa, deita de si huma tal qualidade, ou vapor, que offendé o septo transverso, o bofe, & os orgãos da respiraçaõ, convellindo-os, ou espasmando-os, & deste modo causaõ a suffocaçaõ uterina; & nesta supposiçaõ se o accidente proceder de aura, vapor, ou qualidade occulta, naõ avemos de porfiar com purgas, nem com sangrias, nem com fumaças fedorentas; porque estes remedios taõ fóra estão de aproveitar, que antes tenho visto fazerem grande damno a alguas mulheres, porque não tinhaõ proporçaõ com a causa occasional do accidente uterino: mas o que observei ser remedio quasi divino para discutir o vapor venefico, & fixar a causa convulsiva, ou aura espasmodica, he o seguinte. Tomem de raizes de pionia macho meya onça, de zedoaria tres oitavas, de alambre preparado tres oitavas & meya, de contrahierva huma onça, de unha da graõ besta tres oitavas, de visco quercino outras tres, de almiscar duas oitavas & meya, de canela finissima tres oitavas, tudo se polvorize subtilmente, com agua de alquitira se formem pastilhas, & depois de bem seccas se guardem; & deste remedio lhe dei por cada vez huma oitava desfeita em tres onças de agua de erva cidreira, & outras tres de agua de cereijas negras; ou em onça & meya de rosa – solis ou de agua de porco Espim; porque que naõ ha remedio que taõ promptamente diffine a aura maligna, & occulta, que da madre se levanta, como a agua de porco Espim, ou a rosa - solis, com tal condiçaõ, que lhe misturem os pòs sobreditos.

8. Ultimamente, se este remedio, sendo hum dos mais celebrados, que no discurso de muitos annos tenho achado, naõ bastar para rebater, & fixar os furiosos, movimentos convulsivos da madre, recorraõ a minha casa, que eu tenho hũ segredo, chamado, Confeiçaõ contra os accidentes uterinos, o qual dado em quantidade, de huma oitava, misturado com huma onça de arrobe das bagas de sabugueiro, ou com duas onças de agua de porco Espim, obra effeitos taõ maravilhosos, que parecem milagrosos: tomase duas vezes no dia, & rara vez foi necessario repetilo dous dias.

9. Advirto não só aos Medicos modernos, mas a toda a gente do mundo, que naõ confirmão que as mulheres, que morrerem de accidentes uterinos, como tambem nem os homens, que morrerem de apoplexias, ou de outro qualquer accidente repentino, se enterrem, sem que passem quarenta & duas horas, porque se tem visto que algumas mulheres, & homens tiveraõ accidentes suffocativos taõ apertados, que não se distinguiaõ que verdadeiramente estavão mortos; comtudo paffadas quarenta & duas horas, tornàraõ em si, fallàraraõ, & viveraõ depois disso muitos annos; & se os tiveram enterrado antes de passarem as sobreditas horas, infallivelmente morreriaõ, como já tem acontecido; porque abrindose huma sepultura para enterrar a hum defunto, achàraõ na escada do cemeterio o cadaver de huma mulher; donde certissimamante conhecèrão que fora sepultado intempestivamente, porque ainda que tinha finaes de morta, na realidade estava viva, pois subio a escada.

OBsERVAÇAM XXXIV.

De huma enferma, que parindo dous meninos de hum parto, deitou uma só parea, de que se seguio morrer a tal parida no espaço de onze dias

I. Assim como sempre me pareceo justo obedecer à razão, me pareceo sempre temerario contradizer a experiencia; pois no sentir de Galeno, (I.) a razaõ, & a experiencia são as duas columnas, em que se sustenta a Medicina: comtudo como sejaõ maravilhosas, & estupendas as obras que a natureza faz por caminhos occultos, (2.) sem que a razaõ, nem o entendimento as alcancem; daqui procede que mayor fé se deve dar à experiencia; que à razaõ. Infinitos exemplos pudera referir em confirmação desta verdade ; apontarei só quatro, por não ser enfadoso aos Leitores:

2. Quem averà que naõ se admire, vendo sarar feridas horriveis, & fluxos de sangue implacavéis, sem se applicar remedio algum sobre as taes feridas, mas deitando sómente os pós da sympathia sobre o sangue, ou sobre o instrumento que ferio, com tal condiçaõ, que o sangue esteja ainda fresco? Quem naõ ficarà admirado, vendo que que huma velha de oitenta annos creou com o leite de seus peitos a huma sua neta, que por ficar sem mãy, & taõ pobre, que naõ tinha dinheiro para pagar a quem a creasse, estava disposta a morrer? A quem naõ parecerà fabuloso o dizer que o panno Amianto (quando está çujo) se lava, metendose no fogo, sem se queimar? A quantas pessoas parecerà engano o dizerse que os membros abrazados com o incendio de uma erysipela, se curaõ applicandolhe pannos molhados em agua ardente? Quem averá que naõ tenha por mentira dizerse, que muitas tosses se curaõ com laranjas azedas? se ouvessemos de dar mais credito à razaõ, que à experiencia, mais razaõ era que os pós symphaticos se deitassem sobre a ferida, que sobre o sangue, ou intrumento que ferio. se ouvessemos de dar mais credito à razaõ, que àexperiencia, pareceria impossivel que huma velha de oitenta annos tivesse leite para crear hũa neta. se ouvessemos de dar mais credito à razão, que à experiencia, mais conforme à razão era que o panno Amianto se lavasse com agua, & sabão, que com o fogo. se ouvessemos de dar mais credito à razaõ, que à experiencia, mais conforme à razão era, que a tosse se curasse com lambedores, & cousas doces, que com laranjas azedas: comtudo ainda que todas estas cousas parecem incriveis, & contra a razão, a experiencia mostra que todas saõ verdadeiras; pois vemos que com os pòs sympathicos, deitados sobre o sangue, ou sobre o pãno molhado nelle fresco, se curaõ as feridas & tambem consta de muitas pessoas fidefignas que huma velha de oitenta annos creou com o seu leite a huma neta sua: & tambem vemos que o panno Amianto se naõ queima, ainda que esteja metido em fogo muitas horas: vemos finalmente que muitas tosses (principalmente as seccas) se curaõ com laranjas azedas, peyorando com os lambedores, & cousas doces: assim o observei em huma tosse, que padeceo o Padre Fr. Manoel de Brito, Religioso do Carmo, com quem (no discurso de quatro meses) se esgotàrão quantos lambedores avia nas boticas: outra tosse secca, e rebeldissima curei com laranjas bicaes no Padre Frey Manoel de santa Ursula, Religioso Agostinho Descalço: da mesma tosse secca curei a huma mulher, moradora do ao poço das taboas, seis mezes avia que a sobredita mulher padecia huma tosse taõ secca, & rebelde, que tinha zombado de quantos remedios inventou o engenho dos homens, & como eu fosse chamado, & entendesse que semelhantes tosses seccas procedem de soros colericos, & pungintivos, que se exasperaõ mais com doces, lhe dei laranjas bicaes, & lhe mandei cozer com a gallinha hum molhinho de folhas de azedas, & deste modo a livrei da tosse. De todos estes exemplos se deixa conhecer, que a experiencia he mais poderosa que a razão, & em confirmaçaõ desta verdade me seja concedida licença para referir o seguinte caso, que observer com grande sentimento meu.

3. Em dezaseis de Novembro de 1664. pario minha primeira mulher dous filhos de hum parto, & ainda que com elles deitou hũa grande grande parea, naõ deixei de ficar mui cuidadoso, porque pedia a razão fossem duas, pois eraõ duas as crianças; mas os Medicos a quem dei conta do grande cuidado com que estava, por naõ ver mais que huma só parea, me alentàraõ dizendo, que naõ era precisamente necessario se multiplicassem as pareas, quando avia deitado huma taõ grande, que podia valer por duas; àlem de que se as duas crianças fossem geradas em hum só acto, huma só parea bastava. Comtudo vendo eu que a enferma tinha mayores ancias de dia em dia, & que da boca lhe sahia hum fedor horrivel, & cadaveroso, suspeitei que aquelles symptomas naõ procediaõ de outra causa mais, que da parea reteùda, & por consequencia que era necessario deitalla fóra com toda a brevidade, porque se se retivesse dentro muitos dias, communicaria grandes damnos ao coraçaõ, ao estomago & à cabeça, & pela corrupçaõ mataria a doente; e supposto que para fazer esta obra tinha a Medicina muitos remedios, me pareceo acertado chegar logo aos mais efficazes; porque (como dizem Hippocrates, (3.) Galeno, (4.) & outros Doutores,) (5.) Quando o perigo he grande, são escusados remedios pequenos Deilhe pois vinte gottas de oleo de alambre misturadas com duas onças de vinho branco; do qual remedio naõ conheci alivio: appellei para uma oitava de pò de parea do primeiro parto, misturada com huma chicara de caldo de gallinha bem açafroado; mas naõ aproveitou: neste aperto me ocorrèraõ varios remedios de mui relevantes virtudes, como são o figado, & fel da enguia, (6.) os pós dos testiculos do cavallo, que não morresse de doença, o sal volatil oleoso de silvio, a pelle de cobra applicada sobre o pentem, a agua da infusão da pedra Candar, a que vulgarmente chamaõ pedra Quadrada, já bebida, & já atada a mesma pedra na perna direita pela parte de dentro: mas como nenhum destes remedios se achasse nas boticas, nem o aperto da doença desse lugar a que se buscasse por algumas casas particulares, me vali de dar quatro onças de vinho branco, em que estivessem de infusão, por tempo de seis horas, sabina, canela, & açafraõ; & vendo eu, que nem este remedio, sendo excellentissimo, sortia effeito, appellei, como para ultima ancora em taõ desfeita tempestade, para o seguinte remedio, no qual se tem huma quasi milagrosa confiança para semelhante aperto. Tomai de canela finissima, de folhas de artemija, de raizes de genciana, de aspargo, & de rubea tinctorum, de cada cousa destas meya onça, de bagas de louro descascadas, de atincar Veneziano, & de myrrha, de cada cousa destas duas oitavas, de centaurea menor, de neveda, & de poejos, de cada cousa destas duas oitavas, de cabeças de macella huma oitava, de açafraõ, & de flor de noz noscada, de cada cousa destas meya oitava, tudo se pize grossamente, & se infunda em huma canada de vinho branco generoso, por espaço de doze horas, & passadas ellas, se coem as ervas bem espremidas, & deste licor lhe dei duas vezes no dia quatro onças, misturandolhe de xarope de artemija huma onça, porque por repetidas experiencias consta que o tal cozimento provoca maravilhosamente a purgaçaõ lochial, & faz deitar as pareas por mais arreigadas que estejaõ, com tal condiçaõ, que se repita muitos dias: assim se fez, & com taõ feliz sucesso, que antes de passar uma hora deitou a parea, que tinha dentro, mas já taõ corrupta, que não só inficionou a madre, mas matou a enferma. E porque póde acontecer que no campo, ou aldea se ache alguma parida, que naõ possa deitar as pareas, nem possa fazer qualquer dos remedios sobreditos, aconselho que use do seguinte, que he excellentissimo, & muito facil. Tomai de azeite commum seis onças, misturailhe meya oitava de açafraõ feito em pò, & de-se a beber, que infallivelmente deitarà as pareas. E se a parida naõ quizer tomar este remedio, por temer que se enjoe o estomago, com o azeite, pòde tomar huma oitava dos pós da tunica da muela da gallinha, misturados com huma tigela de caldo de perdiz, & hum escropulo de açafraõ. E se nem deste remedio quizer usar, pòde tomar, como remedio mui experimentado, duas onças de vinho branco misturado com outras duas de çumo de angelica, chamada canabràs.

4. Desta Observaçaõ aprendaõ os Medicos modernos duas cousas: a primeira, que ainda que a razaõ diga que basta huma só parea para duas crianças, dem mais credito à experiencia, pela qual consta que haõ de ser duas, & todas as vezes que virem só huma, sendo as crianças duas, tratem de applicar logo os remedios acima apontados, porque infallivelmente deitarà com elles a parea que faltar, como observei na sobredita doente. A segunda cousa que os Medicos modernos haõ de observar he, que nos grandes perigos usem logo dos remedios mais efficazes que souberem, porque algumas doenças correm tão apressadamente para morte, que naõ daõ lugar a tentar primeiro os mais brandos: assim o vi em a sobredita enferma, que por eu querer tentar primeiro os mais benignos, naõ lhe aproveitàrão os mais efficazes. (7.)

OBsERVAÇAM XXXV.

De bum menino, que no instante, em que nasceo, se resfriou com taõ grande excesso, como se estivesse morto; & a este final tanto para temido, se ajuntou outro mais formidavel de naõ querer mamar por tempo de quinze horas: neste grande perigo, & de confiança da vida, recorrèraõ ao meu conselho, o qual foi que abrissem hum carneiro pela barriga, & que tirandolhe as entranhas; metessem ao dito menino dentro naquelle vaõ, para que com o calor natural do carneiro se espertasse o calor amortecido do menino; & que pela boca dessem ao moribundo innocente huma papinha, feita de huma gema de oco cru, assucar, vinho, ambar, & canela, esperando que reparadas as forças por dentro com este grande, & espirituoso restaurativo, & esforçandose por fóra com o calor do animal, escaparia da morte: & succedeo assim; por que dentro de meya hora cobrou quentura, começou de mamar, & viveo muitos annos.

1. TInha determinado passar em silencio hum caso que observei taõ raro, que temi me naõ dessem credito os que o lessem; comtudo para utilidade commua, & abono da verdade me pareceo razaõ escrevello, assim por ser hum caso que atè este dia se naõ veria outro semelhante, como por mostrar aos homens o quanto se enganaõ, os que cuidaõ que os Medicos naõ podem saber cousa alguma fóra do que está escrito nos livros, ou do que os antigos enfinàraõ nas cadeiras, porque só em caso que sempre fossemos meninos, só entaõ seria impossivel esperar de nós algyma cousa digna de applauso: & posto que nem a todos seja facil curar huma doença cheya de embaraços, & contradições, sem mestre que ensine, ou author que encaminhe; comtudo naõ he para admirar que o entendimento humano guiado pelo lume da razaõ faça algũas curas dignas de nome, sem que preceda liçaõ dos Authores, ou conselho dos mestres, como pela seguinte Observaçaõ farei manifesto.

2. Em quatro de Fevereiro de 1675. (estudando os frios do inverno no seu mayor rigor) nasceo hum menino, filho de Francisco Lubech, & de sua honestissima consorte Paula Maria Rufina, & como pela excessiva frialdade do tempo, ou pela tenrissima idade do menino se extinguisse o calor natural com tanto excesso, que todos entendéraõ que a dita criança sahiria do mundo no mesmo dia, que tinha entrado nelle, pois nem podia mamar, nem engolir o leite, que lhe deitavaõ por colheres. Nesta affliçaõ dos pays se naõ ouviaõ em roda a sua casa mais que desconsolações, tristezas, & sentimento, porque era este jà o terceiro filho, ou, para melhor dizer, a terceira flor cortada em botaõ, & colhida antes do tempo. Naõ sabiaõ os pays que fizessem, vendo o seu amado filho em tanto perigo; porque em idade taõ delicada, & aonde o calor natural estava taõ amortecido, naõ era conveniente sangrallo, nem purgallo, porque naõ avia forças capazes para sofrer estes remedios; nem era necessario darlhe medicinas bezoarticas, nem cardiacas, porque naõ avia indicio algum de veneno dado por erro, ou malicia: fazerlhe esfregações com pannos asperos, ou deitarlhe ventosas, eraõ remedios infructuosos, por serem mayores do que a idade poderia sofrer: envolvello em pannos de baeta quentes, era só o que cconvinha, & o que se fazia; mas nem por isso a criança cobrava quentura, porque a frialdade excessiva do ar nevado, & a repentina mudança que a creaturinha fizera sahindo das entranhas de sua mãy em hum dia, em que reynava hum Nordeste taõ desabrido; & cruel, foraõ os poderosos combatentes, que o chegaraõ às portas da morte; & porque entre a minha casa, & a de seus pays avia muitas razões de parentesco, & amizade, me avisaraõ do grande perigo; cm que estava o menino; & commovido eu da piedade, & amor, me deliberei a dar o meu conselho, dizendo q eu entendia certamente que todas as diligencias eraõ baldadas, & todas as esperanças seriaõ infructuosas, & nullas, se o calor natural naõ tornasse a sahir para as partes exteriores, & suscitasse os espiritos vitales; porque se (como he proloquio (1.) commum) pelas mesmas causas por onde huma cousa nasce, pelas mesmas se dissolve; como a causa de estar o corpo refrigerando fosse o retrocesso do calor para as partes interiores, & a extinçaõ dos espiritos vitaes, que influem para as partes exteriores, tudo o que revocasse o tal calor, & promovesse o influxo dos espiritos para o ambito do corpo, tiraria ao menino da garganta da morte: & como para fazer estes effeitos nenhum remedio era mais proprio que o calor das entranhas da mesma mãy, nellas devia ser reposto; & metido; mas como isto fosse impossivel, quiz o que pude, se naõ pude o que quiz; (2.) por isso em lugar do calor natural do ventre da mãy, me vali de mandar abrir o ventre de hum carneiro vivo, & que com grande pressa lhe tirassem as entranhas, & metessem ao menino dentro naquelle vaõ, & o deixassem estar em quanto a quentura do carneiro perseverasse, porque era mui conforme à razaõ, que o calor, & espiritos amortecidos do menino resuscitassem, & esforçassem com o calor do carneiro, que era natural, & semelhante ao da criança, & hum semelhante junto com outro semelhante cobra forças, & vigor, como he proloquio dos Filosofos. (3.)

3. Feita esta diligencia exterior, tratei de confortar interiormente os espiritos vitaes da criança, porque desta sorte sahiria logo o calor, que estava escondido nas entranhas, para a superficie do corpo, & para este fim ordenei o seguinte restaurativo, para cujos louvores saõ pequenos os mayores encarecimentos. Mandei bater duas gemas de ovos frescos com duas onças de vinho branco muito excellente, ajuntandolhe quatro grãos de ambar polvorizado, & vinte grãos de pó de canela finissima, & meya onça de assucar branco, ordenando que desta mistura lhe fossem dando duas colheres de hora em hora; & de tal modo aproveitàraõ estes remedios, (inventados pela minha industria) que o mesmo que estava espirando, recobrou forças, & calor, & começou logo a mamar; & deste modo o livrei da morte, nam sem grande credito da Arte, & gosto meu.

4. Esta Observaçaõ quiz escrever para mostrar q ainda que as doenças sejaõ mui perigosas , & cheyas de embaraços, ou taõ novas, que nunca as tenhamos visto, que nem por isso deixemos de applicarlhes alguns remedios, ainda que naõ tenhamos Author, a que nos encostemos, ou sigamos; porque se os Mestres, & os Oraculos da Medicina, que florecèraõ antes de nòs, naõ obrassem algumas cousas discursadas com os seus entendimentos, & naõ descubrissem algũs remedios melhores que aquelles, que os antigos descubriraõ, escusado seria desvelaremse com taõ continuo estudo, & trabalho, (4.) & estaria ainda a Medicina muito rude, muito diminuta, & em mantilhas, com grande perda dos enfermos; por isso devemos fazer quanto for possivel por soccorrellos conforme a razão, & regras do discurso, ainda que naõ tenhamos exemplar a que segnir: & se estes conselhos parecerem mal a alguns Aristarcos, que sendo inimigos das letras, querem competir com Minerva, & sendo roucas gralhas, cantar com os cisnes; dissera eu que se desvelassern mais em saber remedios efficazes para curar aos seus doentes, que em estudar especulações taõ delicadas como arestas, & de taõ pouca substancia como o fumo; pois os enfermos naõ se curaõ com eloquencia, nem palavras campanudas, mas com medicinas experimentadas, & efficazes: assim o diz Celfo, (5.) & a razaõ natural o diz tambem assim.

5. Como estes casos das crianças, que acabadas de nascer se esfiiaõ, naõ mamaõ, & tem accidentes de gotta coral, succedaõ poucas vezes, & por essa razaõ se poderaõ achar muito embaraçados os Medicos principiantes, sem saber como lhes haõ de acudir, lhes quero dizer, que isto procede humas vezes de naõ naõ deitarem logo o ferrado, ou de deitarem quasi nada delle, como vi em hum filhinho de Pedro Longo, que por naõ se advertir que naõ tinha deitado o ferrado, se esfriou, & lhe derão tantos accidentes de gotta coral, que morreo no mesmo dia de nascido.

6. Outras vezes daõ accidentes às crianças recem nascidas, porque mamão em secco, porque as amas q os criaõ naõ tem leyte, como vi em huma filhinha do Doutor Joaõ Bernardes de Moraes.

7. Outras vezes daõ accidentes às crianças acabadas de nascer, porque o leyte que mamaõ he taõ grosso, & taõ cheyo de queijo, que nem ourinaõ, nem cursaõ, & daqui lhes sobrevem os accidentes, como observei em hum filhinho de Tristaõ de Mendonça, & em outro de Joaõ Tavares Moniz.

8. O remedio dos que se esfriaõ & tem accidentes por ferrado reteudo, he fazerlhes deitar o ferrado com mecha de sabaõ, & metelos no vaõ de hum carneiro acabado de matar, ou penna molhada em azeite.

9. O remedio dos que tem accidentes por falta de leite, he darlhes ama que tenhaõ abundancia delle.

10. O remedio dos que tem accidentes pelo leite ser muito grosso, & cheyo de queijo, he darlhes ama de leite seroso, & delgado; deste modo lhes acudiraõ, como eu acudi a muitos que naõ nomeyo, porque não pareça jactançia, o que só faço por advertencia para os Medicos modernos.

11. Tres grãos de ouro fulminante, misturados com doze grãos de arcanum duplicatum, dados em huma colher de agua de cereijas negras, saõ divino remedio para as crianças, que tem accidentes de gotta coral.

OBsERVAÇAM XXXVI.

De hum menino quebrado de ambas as verilhas, e tendo seu pay noticia que eu preparava por minhas mãos alguns remedios eƒƒicazes para esta doença, me chamou, pedindome lhe desse o tal remedio, & tomando-o o dito menino, salou taõ singularmente, como se ƒosse obra de milagre.

I. Como foi sempre grande o desejo que, tive de valer aos doentes nos seus perigos, trabalhei incansavelmente por saber alguns remedios eficazes, com que pudesse rebater as armas da morte, & naõ baldei a diligencia; porque por mercê de Deos, & disvelos do meu estudo alcancei alguns segredos, com que tenho curado doenças tidas, & avidas por mortaes. E se as ditas curas naõ deraõ taõ grande brado, como se podia esperar dellas, he porque a mayor parte fiz em pessoas humildes; (sendo que nas grandes fariaõ os mesmos bons effeitos) mas como os Titulares, & senhores illustres se naõ curaõ com hũ só Medico, muito menos se quereriaõ curar comigo, sabendo que nos grandes perigos, & doenças rebeldes, (quando os remedios ordinarios naõ aproveitaõ) curo com segredos meus, que naõ quero revelar a outrem, naõ por ambição da fama, mas porque as experiências me tem mostrado que depois de revelados sem agradecimento, ficaõ reprovados com injuria; daqui procede que curas grandes as fiz aonde curei só, & naquellas pessoas que confiaõ tanto em mim, que me não obrigão a que declare os meus segredos, para que os approve, & os julgue quem os não conhece, esta sem-razão se usou só comigo, não ufando com qualquer estrangeiro saltimbanco; porque destes, sem lhes fazerem exames, nem perguntas se tomaõ os remedios que applicaõ a olhos fechados, esta tem sido a causa, porque as minhas curas não fazem estrondo nos palacios dos soberanos, (1.) elles tem noticia dos muitos, & bons effeitos, que os meus segredos obraõ nas pessoas commuas, porque os canos por onde lhes avião de chegar estas noticias, os fechou a desaffeição, que como he enferma dos olhos não póde ver a luz.

2. Hoje porém que estou quasi entrado na ultima velhice, quero (pois o bem do proximo he o motivo que tive para fazer estas observaçoes) manifestar ao mundo alguns dos meus segredos, para que os doentes, que se aproveitarem delles, depois da minha morte lhes dem applausos, que lhes não quizerão dar em quanto eu for vivo; do que não me queixo, nem admiro, conhecendo a minha pequenhez, quando nem ao Gigante se lhe soube a medida, nem grandeza que tinha, senaõ depois de morte. Vamos ao caso da quebradura.

3. Manoel Barbosa, morador ao poço da Foteya, teve hum filho, que nasceo quebrado de ambas as verilhas, & vendo o pobre pay tão lastimoso espectaculo, não sossegava de dia, nem de noite, vendo padecer ao inocente filhinho tão cruel achaque; derãolhe noticia que eu sabia alguns remedios secretos, com que fazia curas mui singulares, buscoume logo, & me pedio (com lagrimas nos olhos) lhe desse algum remedio, com que seu filho tivesse saude; porque menos lhe custaria vello morrer, que vello padecer tão penosa enfermidade.

4. Animei muito ao dito homem, dizendo lhe que eu lhe ensinaria os mayores três remedios, que avia alcançado com a experiência de muitos anmos; que o mais proprio para tão tenra idade era o seguinte, que eu lhe oferecia, porser segredo meu, & eraõ pòs das lebrezinhas tiradas das entranhas da mãy, estando viva, & metidos no mesmo instante em huma panela barrada com seu testo, & mandados secar, ao forno, de sorte que se possaõ pizar, & peneirar, & destes pós mandei dar ao menino cada dia por tempo de huma somana huma oitava, misturada com huma colher colher de vinho bem tinto, ou com duas colheres de agua cozida com a raiz de pe de Leaõ: assim se deu, & succedeo taõ felizmente como o pay desejava, & por incultas deste successo tão excellente se deu a outros, & todos sararão.

5. O segundo remedio que lhe ensinei, & agora o quero fazer publico a todo o mundo, tem igual, ou superior virtude, & se faz do modo seguinte. Tomem seis quartilhos de vinagre forte, deitemse dentro de huma panela vidrada, com vinte & quatro maçans de acipreste verdes, com as cascas de duas romans azedas, tudo se machuque, & se ponha a cozer até que estejaõ capazes de se poderem pizar em hum almofariz, & se irão tirando os paos, ou teagens se tornaraõ a deitar dentro da mesma panela, com as calcas que se não puderão pizar bem, & lhe ajuntaraõ três onças de incenso macho muito bem muido, & mexendo-o muito bem, se tornará a dita panela a pôr ao fogo, estando bem tapado com seu testo, & de quando em quando se irá mexendo, até se gastar o dito vinagre, & então se tomará quarta de cera bella, & se deitará dentro, & com huma massa grossa, & então se tirará do fogo, & continuaraõ mexendo até que se esfrie, & então se tomará aquella massa nas mãos, & se formaraõ huns paos como de chocolate, & esta massa assim preparada se guardará como huma joya de grande preço, porque naõ se póde explicar com palavras admiráveis curas, que com este remedio se tem feito taes casos.

6. O modo de usar deste maravilhoso unguento he o seguinte. Estendaraõ junto ao lume hum pequeno deste unguento sobre hum pedaço de panno de linho novo bem tapado do tamanho da quebradura, & recolhendo as tripas dentro, poreis sobre a tal quebradura o dito emprasto com aquella quentura, que o doente possa sofrer, sem lhe causar molestia, & sobre o tal emprasto se applicará a funda, & se deixará o doente estar (se puder ser ) de costas ao menos dous dias, & quinze dias na cama, farão melhor negocio, para que as tripas não tornem a descer, & para mayor segurança tomará o quebrado, tres, ou quatro manhãs a fio estando em jejum, huma gema de ovo mal assado, deitandolhe dentro, quanto pode levar hum tostão, de pò de huma raiz que chamão solda, ou o emprasto póde estar dez, ou doze dias, & então se alimpe, & se ponha outra parte, que he marivolhoso, & dentro de hum mês, o mais tardar, se achará o doente bom.

7. O comer de hum mes será de pao duro, ou biscoito, carne assada, & nada cozido, & bem póde passar com pouquissima agua, ou com hũa gotta de vinho.

8. O terceiro remedio, que lhe ensinarei, he o seguinte. Tomarseha hum quartilho de vinho branco bom em hũa panela nova, & posto a ferver se lhe botará huma maõ cheya de poejos pícados em fellada, & depois de cozido se lhe botará huma onça de farelos, & se apertará muito bem com a funda, & estará com este emprasto vinte & quatro horas, sem fazer movimento com o corpo.

9. E passadas as vinte & quatro horas, tomará hum quartilho de melaço, & posto a ferver, depois de bem grosso se estenderá em huma pasta de algodaõ bem aberto, & se polvilhará por cima com huma oitava de incenso, & outra de breu, & outra de pòs de solda, & se porá na parte até cahir; & depois trará o tempo que quizer o emprasto contra rotura.

10. O Regimento será naõ comer verdura, azeite, & toucinho, & o mais tudo pòde comer.

OBsERVAÇAM XXXVII.

De huma grande hernia humoral muito inflammada, acompanhada com huma febre ardente, & huma gonorrhea parulenta, & com hum fluxo de almorreimas.

I. EM nenhuma cousa se conhece melhor a ciencia, & engenho dos Medicos, como em saber curar doençãs complicadas; pois no commum sentir dos que exercitão a Medicina, he cousa mui difficultosa remediar no mesmo tempo, & no mesmo sujeito enfermidades mui differentes, & contrarias; mas porque os Medicos não escolhem os casos leves para curar, nem rejeitaõ os perigosos, & complicados, para lhes fugir; devem acudir a todos com igual caridade, porque se esta lhes faltar, diz Vanelmonte, (I.) lhes negarà Deos o dom de curar: por esta razaõ imitando eu a Hippocrates, (2.) nunca me escusei de acudir a quaesquer doentes, por mais perigosos que estivessem; & ainda que por essa causa puzesse muitas vezes o meu credito em grande risco. Comtudo Deos, que he o valentaõ, que toma por sua conta defender, & desaggravar a innocencia, me alumiou de sorte na escuridade de muitas doenças complicadas, que as curei, estando ja deixadas dos Medicos por incuraveis, como pelo seguinte caso farei manifesto.

2. Em dezaseis de Janeiro de 1699. me buscou certo homem nobre, para que o curasse, dizendo que elle se achava cercado em hum labyrintho de achaques: porque padecia huma inflammaçaõ horrenda nos testiculos, hum copioso fluxo de almorreimas, huma febre ardentissima, & huma gonorrhea purulenta.

3. Varias forão as indicações, & muito poderosas as duvidas, que se me offerecèrão para curar a este T 3 doen - doente: nem forão menos poderosos, & varios os prohibentes, que se me representàraõ para fazer a dita cura, & neste enleyo, & perplexidade estive muito tempo duvidoso do caminho que avia de seguir: porque se punha os olhos na hernia taõ grande, & taõ inflammada, eraõ necessarias as sangrias no braço, para divertir o fluxo, que impetuosamente corria para o escroto; porque se sagrasse no pé, poderia acudir tanto humor ao lugar queixoso, que se mortificasse o calor natural, & degenerasse a hernia em huma gangrena mortal: se olhava para o esquentamento novo, & fluxo das almorreimas, eraõ necessarias as sangrias dos pès, & muito para temidas, & arriscadas as dos braços; porque divertirião os humores para cima no mesmo tempo, em que a natureza os estava deitando para baixo, & seria taõ grande erro sangrar nos braços a quem estava com fluxo de almorreimas, & com huma gonorrhea nova, como seria sangrar nos braços a huma mulher estando recem parida, ou com a purgaçaõ mensal de poucos dias.

4. Neste aperto usei do conselho de Galeno, (3.) em que nos manda acudir primeiro àquella doença, de que se pòde seguir mayor perigo; & vendo eu que da hernia se podia seguir mayor risco com as sangrias dos pès, que da gonorrhea, & almorreimas com as sangrias do braço, por este respeito tomando a indicaçaõ da inflammação herniosa, como achaque mais perigoso, mandei sangrar no braço correspondente à parte tomorosa, sem fazer caso da gonorrhea, nem das almorreimas.

5. Pontualmente observou o enfermo este preceito, & sangrandose seis vezes na vea d’Arca do braço direito, cessou o despenhado fluxo de humor, & visivelmente se foi desfazendo a hernia; & porque avia ainda alguma inflammaçaõ, & dor na parte, appliquei sobre ella o seguinte remedio, que he segredo, que atè hoje não quiz revelar a alguem; mas agora o quero ensinar para utilidade dos que tiverem semelhante achaque, com seja novo, & de pouco tẽpo.

To –

6. Tomem folhas de arruda, & de meimendro verdes, de cada cousa destas hum punhado, pizemse muito bem em hum gral de pedra, & com humas gottas de vinagre rosado se formem humas papinhas de mediana grossura, para se estenderem em panno de linho delgado, & se applicaraõ sobre a hernia nove, ou dez dias, & não fôse desfara a inchaçaõ, mas se tirarà a dor, & se desinflammara a parte com grande felicidade; & se succeder que algum dos testiculos, ou ambos, ou o escroto todo, fiquem ainda inchados, ou mais duros do que devem ser, em tal caso podem fazer o seguinte remedio, que tambem he efficacillimo, & se faz do modo seguinte.

7. Tomai daquelle sebo, que esta pegado aos rins do carneiro, duas onças, pizese muito bem com duas gemas de ovo cruas, & tudo se misture com onça & meya de farinha de favas, & duas onças de oxicrato, & sobre hum panno de linho brando se estenda huma pouca desta massa morna, & sobre a parte enferma se applique cada vinte & quatro horas, & dentro de oito dias fará hum effeito taõ maravilhoso, que será o melhor abonador da sua grande virtude; & se succeder que algum destes remedios obre menos bem do que eu tenho visto, assim neste doente; como em outros muitos, aqui revelo outro, que o não quiz manifestar até o dia de hoje, só afim de que naõ perdesse a estimaçaõ com a publicidade. O remedio he fomentar a hernia, trinta dias continuos, com oleo de canela; & podem estar certos que se o tal oleo for verdadeiro, fará hum proveito tão admiravel, qual se não achará em outro remedio humano. Muitos exemplos pudera referir de pessoas, que depois de esgotarem a Medicina, os cabedaes, & a paciencia sem proveito, só com o dito oleo melhoraraõ, com admiraçaõ dos que os tinhaõ deixado por incuraveis. Esta he a primeira vez, que por meyo da estampa deixo sair ao theatro do mundo hum segredo taõ prodigioso; mas porque he muito caro, & naõ poderaõ os pobres usar delle, lhes quero descubrir dous remedios, que tendo igual virtude, tude, saõ de pouco custo: o primeiro he feito de pó subtilissimo das cascas das ostras, misturado com tanta quantidade de vinagre branco, quanta bastar para fazer humas papas; que postas sobre a inchação cinco, ou seis dias successivos, a desfara, como tenho observado. O segundo remedio he trazer sobre a hernia, por tempo de seis meses, humas folhas de figueira baforeira, & certamente se desfara a tal dureza, como me consta por algumas experiências de pessoas, cujos nomes naõ refiro, porque naõ tenho licença para isso.

8. Vencidas ja a hernia, & a febre ardente, faltavão por render a gonorrhea, & as almorreimas, para estas ordenei que se lavassem duas vezes cada dia com agua cozida com huma maõ cheya de erva congorça, cuja virtude he especifica para esta doença, & que depois de enxugada a parte com muita brandura, a untassem com o meu admiravel lenimento das almorreimas, o qual para curar a esta enfermidade, leva ventagem a quantos remedios inventou o engenho dos homens; advertindo que se as almorreimas estiverem por dentro, nem por isso deixem de usar do tal remedio metido em huma mecha de fios, porque de todo o modo que o applicarem, obrarà maravilhas, como o poderaõ certificar não só os innumeraveis doentes, que o tem experimentado nesta Corte, mas todo este Reynò, & até as Nações estranhas, & terras de Europa. Os curiosos podem ver os prestimos deste meu lenimento na Polyanthea de segunda impressaõ no tratado 3. cap. 4. fol. 859. num. 78. & 79.

9. A gonorrhea venci com summa felicidade, ordenando que o doente tomasse de quatro em quatro dias dous escropulos de terebinthina de beta, a que ajuntava quinze grãos de pó subtilissimo de alcaçuz, & cinco grãos de mercurio precipitado doce, formando nove pilulas, reperindo este mesmo remedio doze, ou quinze vezes, de quatro em quatro dias, como fica dito: & porque póde aver algum doente, que naõ tenha geito para tomar pilulas, ou naõ tire com estas a doença, póde tomar quinze, ou vinte amendoadas feitas tas de tres duzias de caroços de ginjas muito bem pizados, & desatados em oito onças de agua cozida com duas oitavas de alcaçuz machucado, ajuntando a esta amendoada huma onça de lambedor violado magistral, quero dizer, feito de succo da florida violeta, ajuntandolhe meya oitava de fal das faveiras; & posso certificar que estas amendoadas saõ hum dos melhores remedios da Arte para esta doença.

10. se porèm a gonorrhea for taõ rebelde, & obstinada, que se naõ renda a estes dous taõ singulares, & efficazes remedios, saibaõ que eu tenho a lacerta viridis, que tomada de tres em tres dias em quantidade de quatro até cinco grãos, formando huma pilula com huma migalha de terebinthina de beta, fara o que nenhum outro remedio humano póde fazer: & porque conste a todos os homens presentes, & futuros a vontade que sempre tive de prestar para a utilidade publica, lhes quero ensinar aqui o modo com que faço este grande segredo, que he na fórma seguinte.

11. Em huma garrafa deito tres onças de bom azougue, & sobre elle deito seis onças de agua forte, que naõ seja feita com pedra hume; & em outra garrafa deito duas onças de agua forte com huma onça de limadura finissima de cobre, & no fim de dous dias ajunto em huma retorta ambas as duas soluções, do mercurio, & do cobre, & sobre fogo de area se destillaõ estes dous licores no principio com fogo moderado, acrescentando-o pouco a pouco, até chegar a toda a força, para que a mayor parte dos espiritos da agua forte se consumaõ, & depois de estar bem secca a materia que restar no fundo da retorta, se tire de dentro, ou se quebre a retorta com tal cautela, que naõ se misture cousa alguma do vidro quebrado com a materia que restou no fundo, & esta se moa em huma pedra destas em que os pintores moem as suas tintas, & se meta o tal pò em huma garrafa, deitandolhe em cima seis onças de vinagre bem forte, se ponha a dita garrafa por tempo de seis dias em digestam sobre fogo de candea, & no fim dos ditos seis dias se acre - acrescente o fogo de forte, que ferva o vinagre, & se emprenhe bem da virtude do mercurio, & do cobre, & depois se vaze o dito vinagre com tal cautela, & resguardo, que com elle não passe cousa alguma das fezes que estaõ dentro na garrafa, & este tal vinagre se deite dentro de huma tigela da India, ou qualquer outra bem vidrada, & sobre fogo de area se evapore o dito vinagre, até que no fundo da tigela fique a materia, ou pòs verdes, & estes se guardem em hum vidro bem fechado: & esta he a lacerta viridis, ou o grande segredo das gonorrheas; advertindo que ainda que este he o mayor remedio que ha para a sobredita doença, nem por isso se dará aos doentes nos primeiros dias das gonorrheas, mas só quando já forem de muitos dias, ou naõ quizerem obedecer aos remedios apontados.

12 Deste, & de outros serviços que tenho feito à minha patria, não espero agradecimento em quanto for vivo, porque sei muito bem que a desaffeiçaõ de alguns homens tem preoccupado os corações de outros de tal sorte, que não só os faz surdos para naõ ouvirem as honrosas acclamações, que o mundo publica dos meus medicamentos; mas cegos para não verem o que os bem intencionados vem: (4.) mas saibaõ os taes homens que isso me naõ afflige, porque a verdade he taõ poderosa, que naõ necessita de armas para defenderse; & quando a malicia porfiadamente queira desluzir os maravilhosos effeitos deste, & de outros remedios meus, me conolsarei com o que diz o Nazianzeno; (5.

) que por isso o orgaõ do ouvido hetorcido, & fabricado com varios gyros, & anfractos, paraque a mentira naõ entre tam depressa ao juizo, mas gaste mais tempo em penetrar aquellas voltas, & cavidades, & deste modo chegue naõ só diminuida, mas de tal modo misturada com as fezes da maledicencia, que naõ possa entrar dentro, mas fique na superficie, & naõ logre o seu mao intento, por mais que brame a maldade, & o pertenda a malevolencia.

OBsERVAÇAM XXXVIII.

De uma hydropesia Anasarca, que depois de durar sete meses chegou a inchaçaõ de todo o corpo a tanto excesso, que não deixava deitar a doente de nenhum lado, porque de qualquer desses lhe faltava a respiração, e se suffocava; e vendo os Medicos o excesso, com que a doença crescia, perdéraõ as esperanças, e desemparáraõ ao doente; neste aperto me chamàraõ, e depois de me informar da doença, e dos remedios, que se tinhaõ feito, lhe manifestei o grande perigo em que estava; mas que se sem embargo disso queria tentar fortuna, poderia succeder que com alguns remedios, que eu preparo por minhas mãos, escapasse da morte. Aceitou o partido, e foi o successo taõ feliz, que viveo depois desta cura trinta e dous annos.

1. HE a hydropesia huma enfermidade tam grande, como difficultosa de curar principalmente em Lisboa, assim por terra de temperamento muito humido (o que prejudicialissimo para esta doença) como pelo excessivo numero de sangrias, q̃ nella se fazem, por cuja causa necessariamene se enfraquece o calor do estomago, e delle enfraquecido se seguem os máos cozimentos, e cruezas, e destas as oppilações, os estupores, as convulsoẽs, as parlesias, as tosses, as fraquezas de nervos, e de vista, as cachexias, hydropesias, e outras mil enfermidades, que muitos padecem, e choraõ sem remedio, mas não ha muito que assim succeda, pois para toda a doença, seja quente, ou fria, seja simples, ou composta, proceda de qualidade manifesta, ou occulta, seja em pessoa fraca, ou robusta, seja criança delicada, ou velho decrepito, se naõ applica outro remedio mais que sangrias, não sem grande afronta da Arte, damno dos enfermos, e sentimento dos Medicos doutos, vendo que degenerou em vicio, o que se inventou para remedio: naõ he isto queixa minha, já Cornelio Celfo, (1.) Author gravissimo, se queixava do excessivo uso das sangrias dizendo: Naõ he para mim cousa nova o abrir as veas, e sangrar; mas o que para mim he novo, he que naõ aja doença, seja ella qual for, em que se naõ tire sangue. E supposto que os doentes naõ sentem logo os graves damnos, que as muitas sangrias lhes fazem, passados poucos annos começaõ a sentir as queixas referidas, e observadas de Galeno, (2.) o qual fallando dos grandes damnos que fazem as muitas sangrias, diz as seguintes palavras: Postoque muitos doentes não morrem logo por causa das muitas sangrias, andando os tempos vem a morrer pela fraqueza em que ficàraõ, e naõ morreriaõ, se os tivessem sangrado menos.

2. Para esta queixa de Galeno, e que alguns doentes tambem fazem, deu motivo huma hydropesia universal, que Maria Nunes, moradora na rua da Cruz, padeceo sete meses: enfermou a dita mulher como dores de cabeça, e grande febre; chamouse logo Medico, o qual a mandou sangrar dezaseis vezes; melhorou com effeito das queixas referidas; porèm passados poucos dias, tornou a sentir febre, e chamando outra vez o Medico, a fez sangrar dez vezes, mas antes de passarem vinte dias tornou a sentir febre, e conseguintemente tornou a ser sangrada: o que se seguio de tanto sangue tirado, foi incharlhe o rosto, o ventre, os braços, e todo o corpo com tal disformidade, que jáse naõ podia deitar de nenhum dos lados, porque logo lhe faltava a respiraçaõ, e se suffocava, e por esta causa naõ só estava em cama avia sete meses mas naõ dormia avia dezoito noites, e só tinha algum alivio estando assentada, ou em pè; e depois q̃ por tãto tempo padeceo hũa doença taõ perigosa, sem que conseguisse alivio com os remedios continuamente applicados por dous Medicos de boa nota, fez chamar os outros dous mais antigos, e experimentados, os quaes por naõ perderem o costume de tirar sangue, ordenaraõ que tomasse sanguexugas; mas porque aplicadas ellas conheceo a enferma, que a hydropesia, e faltas da respiraçaõ se augmentavão com excesso, appellou para outros Medicos, os quaes como naõ tivessem remedio especifico nem de virtude superior, com que pudessem render a hum inimigo taõ poderoso, naõ quizeraõ pòr mão na miseravel doente; antes foi taõ grande o medo que tiveraõ pelo máos finaes que viraõ, que na primeira visita a deixaraõ sem lhe fazer remedio algum, jurando, e affirmando que aquella enfermidade era taõ irremediavel, que se o mesmo Hippocrates, e Galeano estivessem presentes, a naõ poderiaõ curar; e que ainda que se ajuntasssem quantos Medicos ouve nos seculos passados, e quantos avia no presente, e quantos Deos avia de crear até o fim do mundo, a naõ poderiaõ tirar da garganta da morte, com a qual entendiaõ estava já lutando.

3. Neste aperto, e ultimo desengano recorreo a desconsolada enferma ao meu conselho, como para huma firme ancora da sua esperança, e entre agonias de moribunda, e afflições de desemparada me disse as palavras seguintes: Ay de mim desgraçada mulher, que me vejo morrer sem permissaõ, nem vontade da Medicina ! Eu naõ reparei em gastos, nem me receitàraõ, obedeci a todos os preceitos, que me impuzeraõ, estou sem febre sem dor, e sem fastio, e comtudo vejome desemparada a morrer, se vòs ò Doutor Christaõ compadecido da minha angustia me naõ acudires com alguns remedios mais efficazes da Chymica, em cuja preparaçaõ (como he notorio) tendes tanta destreza, que atè os vossos emulos o publicaõ. Confesso ingenuamente que as lagrimas, e enternecidos rogos destas affligida mulher lastimàraõ, e movèraõ o meu coraçaõ de tal modo que me resolvi a condescender com o que me pedia, e comecei a curalla, dandolhe, em dous dias successivos, e tres interpolados, cinco onças da minha agua antidropica, cuja composiçaõ ensinei a fazer ao boticario Joaõ Gomes silveira, e a tive muitos anno em segredo, mas agora a quero fazer publica, para aproveitar a todos. Tomem de trociscos de Alandal subtilissimamente polvorizados duas oitavas, deitemse de infusaõ em cinco quartilhos de agua commua, e passadas quatro horas, se coe a dita agua por hum papel mata-borraõ, ou por hum panno de linho bem tapado, para que naõ passe algum pó dos trociscos com a dita agua, que fara grandes dores no ventre. Esta he a minha agua antidropica, com que tenho curado hydropesias desesperadas, modorras profundissimas, e somnos invenciveis: assim o affirmo, e tomo a Deos por testimunha desta verdade, e em abono della vejaõ na minha Polyanthea nova cap. 24. fol. 474. do num. 20. até 28. as muitas curas, que com a tal agua tenho feito nas doenças referidas, e acabaraõ de conhecer que as modorras, e somnos invenciveis, que se naõ curarem com a tal agua, saõ incuraveis, porque de muitos annos a esta parte naõ achei ainda remedio que acertasse com a casa onde moraõ estes hospedes taõ desconhecidos, e peregrinos, como saõ modorra, e hydropesia, e só a dita agua antidropica lhe sabe a morada. E desta agua lhe dei, como tenho dito, cinco onças em quatro dias alternados, com a qual evacuou grande copia de humores ferosos, e lymphaticos, e teve notavel melhoria assim na inchaçaõ, como na insoportavel sede; e porque ainda aviaõ vestigios da hydropesia, usei do seguinte remedio, que costuma obrar mui felizmente, com tanto que se applique por nove dias alternados, depois do corpo bem evacuado, e se prepara do modo seguinte. Tomai de semente de giesta brava meya oitava, de canela fina seis grãos, tudo se faça em pò subtil, e se deite de infusaõ em huma garrafa com quatro onças de bom vinho branco, e passadas doze horas, se coe, e se dé a beber ao hydropico, estando em jejum, e logo fará huma hora, ou duas de exercicio laborioso, até que fue, ou ao menos até que o corpo aqueça bem, e passado o tempo do suor, ou do exercicio, beba duas onças de oleo de amendoas doces tirado sem fogo, com huma oitava de assucar cande, e passadas duas horas jante, e ainda que nos primeiros dias naõ sinta alivio, nem por isto deixe de continuar esta cura animosamente vendo por certo, que senaõ absoluto de Deos, contra o qual naõ valem os embargos dos homens, que ha de sarar, como observei nesta enferma, e em alguns outros; porque no fim dos nove dias se desvaneceo a inchaçaõ, e se pode deitar sobre ambos os lados, sem ter molestia alguma: e para que as officinas naturaes enfraquecidas com a larga enfermidade naõ tornassem a gerar novo humo, e fizesse outra hydropesia, me empenhei em confortar as faculdades, abrir os póros, e excitar o calor natural, que estava quase extincto: porque todas estas cousas saõ precisamente necessarias para vencer a hydropesia, e estorvar que se naõ gere outra. E para conseguir este intento, dei a minha hydropica, por tempo de quinze dias seis grãos de ouro diaphoretico, misturados com vinte grãos de crocus martis adstringente feito por mão de grande artifice, misturando tudo com tres onças de çumo de chicoria, serviraõ tres onças de agua ordinaria cozida com cascas de mirobalanos citrinos, ou duas onças de vinho da verdadeira losna, naõ deixando o uso quotidiano do exercicio, porque conforme diz Hippocrates, (3.) he muito necessario aos hydropicos, porque augmenta o calor, confome as cruezas, abre os póros, facilita a transpiraçaõ, e o suor, resolve os flatos, fortalece os nervos, promove a circulação do sangue, e faz mil proveitos essencialmente necessarios para a cura desta enfermidade. E se os doentes naõ se admire; porque como este remedio he hum grande arcano dos Chymicos, naõ he concedido a todos o sabello fazer com perfeiçaõ; mas eu sempre o tenho preparado para acudir aos casos de mayor aperto: he bem verdade que he remedio só para a gente rica, porque he taõ caro, como feito de ouro.

4. Em todo o discurso da doença usei de agua cozida com soldanella, chamada vulgarmente brassica marinha; porque esta raiz tem huma taõ grande virtude para curar a hydropesia que muitos lhe chamaõ erva dos hydropicos, e se prepara na fórma seguinte.

5. Tomem de raizes de soldanella huma onça, ponhaõse a cozer com fogo muito brando; em panela de barro, com duas canadas de agua commua; e desta mandei que bebesse a hydropica com tanta moderaçaõ, que naõ passasse de meyo quartilho ao janta, e outro meyo à noite; advertindolhe, que por mais que a sede a apertasse; não excedesse esta quantidade, (4.) porque todos os remedios seriaõ baldados, se naõ se abstivesse no beber, e que estivesse certa que todo o hydropico, que se resolvesse a morrer às mãos da sede, escaparia das mãos da morte, como consta por muitas experiencias de gravissimos Authores, que sendo perguntados por semelhantes doentes, que aviaõ de fazer para ter saude, respondeo por todos Abel Rosio: (5.) Deliberaivos a morrer de sede, e logo sarareis de hydropico. Com o outro diaphoretico curei de hydropesia a Antonio Correa Barem; a Antonio Borralho, morador na Confeitaria; a senhora Marqueza de Alemquer, Camareira mòr da senhora Rainha de Portugal Donna Maria sophia; e esta mulher, de quem fallo nesta Observaçaõ; e a outras pessoas, que naõ nomeyo, por naõ enfadar aos Leitores.

OBsERVAÇAM XXXIX.

De hum garrotilho taõ forte, que tendo sufocado a seis irmãos, aparelhava a mesma morte a dous, que depois nascèraõ, & que sem duvida teriaõ o mesmo perigo, se eu os naõ preservàra, mandandolhes abrir fontes dous meses depois de mascidos.

1. NAõ saõ necessarios textos, ou persuasões efficazes para conhecermos a fragilidade da natureza humana; pois a experiencia nos mostra cada dia, que todos os homens, de qualquer idade, & condiçaõ que sejaõ, estaõ sujeitos à tyrannia da morte. Naõ ha enfermidade, por pequena que seja, que naõ se atreva a commetter com igual ousadia a moços, & a velhos, a robustos, & a fracos, a nobres, & a humildes, sendo taõ inexoravel a condiçaõ da Parca, que nem tem respeito aos annos, nem a riquezas, nem à purpura Real, ou ao diadema soberano. Vemos a huns suffocados antes de nascidos, vemos a outros, a quem o primeiro dia de viver foi o ultimo para acabar: vemos a outros, a quem a primavera da vida se trocou em outono da morte; naõ avendo idade, que se isente de lhe pagar tributo, igualando na forte, aos que saõ taõ desiguaes na natureza. Provera a Deos naõ ouvera tantos exemplos desta verdade; & em confirmaçaõ della referirei hum cafo, que poderá ser naõ fosse atè hoje visto, nem escrito.

2. Nesta Cidade conheço a huns casados, que no espaço de quinze annos tiveraõ seis filhos, todos sãos, todos robustos, & bem proporcionados todos na disposiçaõ, & formatura do corpo. O primeiro destes ainda naõ tinha hum anno, quando se suffocou com hum garrotilho. O segundo escassamente fazia anno & meyo, quando morreo affogado do mesmo garrotilho. O terceiro compria vinte meses, quando faleceo da propria enfermidade. O quarto antes de chegar a dous annos se suffocou com outro garrotilho mortal.. O quinto, & sexto perdéraõ a vida pela mesma causa.

3. Vendo os pays taõ lastimofos acontecimentos,como se sossem feridos de algum rayo, attonitos, pensativos, & quasi doudos inconsolavelmente choravaõ a falta de taõ amadas prendas. Queixavaõse muito da natureza, porque concedia aos veados, aos elefantes, & às gralhas (I.) taõ larga vida, que chegaõ a duzentos annos, importando taõ pouco ao mundo a duraçaõ dos taes viventes; sendo taõ avara, & madrasta para a duraçaõ dos homens, cujas vidas costumaõ ser taõ necessarias, & uteis à Republica. A esta dor, que, sobre ser grande, era a mais vizinha, & por isso mais sensivel, & penetrante, me pareceo preciso acudir, & consolar aquelles desanimados corações; porem como a ferida estava ainda taõ fresca, temi se aggravasse mais, & que fosse incentivo de nova dor, o que eu queria applicar por lenitivo della; resolvime comtudo a naõ seguir nesta parte o consselho de seneca, (2.) mas a fallar aos pays na fórma seguinte. Cobrai, cobrai animo, ò affligidos, & desconsolados senhores, naõ desconfieis de que os futuros filhos, que Deos vos der, & que com muito fundamento podeis esperar, troquem todas estas penas em excessivos gostos, principalmente sendo vós ambos moços, & fecundos ambos. Porèm a dor era taõ excessiva, & tinha penetrado taõ altamente o animo de ambos, que taõ longe estiveraõ de se aliviar com as minhas consolações, que antes se irritàraõ, & enfurecéraõ com mais agudo ssentimento.

4. Para aver pois de moderarlhes os suspiros, lhes disse que se puzessem fim a tanto pranto, & enxugassem as lagrimas, lhes ensinaria dous remedios, com que poderia preservarlhes de mal taõ grande aos mais filhos, que Deos lhes desse. Ouvida taõ alegre nova; foi incrivel o alvoroço, que ambos tiveraõ, & pegandome na maõ direita em sinal de gosto, & aceitaçaõ da minha promessa, me asseguràraõ se naõ lembrariaõ mais da sua dor, nem se veriaõ mais lagrimas nos seus olhos, se eu lhes dissesse os remedios, com que seus filhos aviaõ de escapar de taõ formidavel perigo. Estive pelo contrato, & para os certificar da verdade com que lhes fallàra, lhes disse que por isso os seus filhos morrèraõ sussocados, porque como todos os meninos tenhaõ as cabeças muito humidas, & cheyas de excrementos serosos, se estes se naõ repurgaõ por algumas bostellas, usagres, chagas, fogagés, frunchos, ou pelos ouvidos, ou babando muito, ou deitando mucos pelo nariz, ordinariamente cahem em accidentes de gotta coral, ou em garrotilhos, ou em outras doenças mortaes; mas se pelo contrario a natureza se descarrega por alguma destas partes, lograõ perfeitissima saude: (3.) & como os sobreditos meninos nunca tiveraõ alguma descarga destas, era mui factivel que toda a immundicia, & saburra de humores das sobreditas creaturinhas se transpuzesse, & descarregasse em os musculos da garganta, & osofago, onde comprimindo-os com mayor augmento, foraõ a total causa do seu perigo; & que os remedios para impedir o tal achaque consistiaõ primeiro no bom alimento, de que a mãy devia usar no tempo da prenhez, pois porque ella (com o privilegio de prenhada ) comia toda a sorte de mariscos, frutas verdes, ervas, azeitonas, & outras bacatellas taõ absurdas, necessariamente criava máo sangue, & como deste se sustentavaõ as crianças, naõ era para admirar q̃ géradas todas de taõ roim sustento tivessem disposições para contrahir mortíferas, & repentinas doenças. segundariamente consistia o remedio para preservar da esquinencia aos taes meninos, em abrir fontes em hum, & outro braço, porque como a materia excrementicia, serosa, & viscosa dos meninos defuntos naõ tivesse sahida para alguma parte, necessariamente cahindo na garganta os sussocou, o que naõ succederia dalli por diante, porque achando a natureza porta aberta nas fontes dos braços, se iria divertindo por ellas aquelle humor, que andando o tempo os avia de sussocar. Ouvidas estas razões taõ cabaes, & coherentes com o juizo, cobràraõ grande esforço, & esperança, & promettèraõ que infallivelmente aviaõ de executar os remedios, que eu lhes apontava, na primeira occasiaõ que se offerecesse; & porque Deos quiz consolar a estes casados, lhes deo antes de hum anno hum filho, chamado Jofeph Curvo, ao qual abri duas fontes, sendo de dous meses, & naõ só escapou de ter garrotilho, que seus irmãos tiveraõ, mas cresceo, & deitou hum corpo taõ agigantado, que antes de quatorze annos cingio espada, porque se envergonhava de andar sem ella vendose com o corpo de hum grande homem: & depois de passarem quatro annos tiveraõ outro filho chamado Pedro Joachim, ao qual mandei tambem abrir fontes antes de ter dous meses, & nem o minimo sinal de inflammaçaõ, ou dor tiveraõ na garganta atè esta hora; antes tem ambos logrado saude taõ perfeita, que estaõ casados, & cheyos de filhos.

5. E porque estes dous exemplos poderáõ ser poucos, para confirmar, como ley inviolavel, que se possaõ abrir fontes em crianças de mama, ajuntarei terceiro cafo maravilhosamẽte succedido. Marianna Josepha, filha de Manoel Ferreyra, morador às portas do sol, no mesmo dia em que nasceo, lhe sobreveyo hum fluxo de humor aos olhos taõ grande, que não ouve remedio que lhe aproveitasse; neste aperto, & perigo de ficar cega, lhe mandei abrir fontes em ambos os braços, sendo de idade de trinta dias; & foi o effeito tão prodigioso, que se admiràraõ todos os que a tinhão visto em tal aperto.

6. Destas Observações tomei mayor confiança para mandar abrir fontes em todas as queixas da garganta, & dos olhos em qualquer idade, por grande, ou pequena que fosse, & sempre vi tão maravilhosissimos proveitos dellas, que entendo saõ as fontes para as taes doenças remedio euporisto, & quasi milagroso. Fallo com a experiencia de muitos annos, & com aquella verdade, com que se devem tratar os negocios taõ importantes, como he a vida, & saude dos homens.

7. Da efficacia que tem as fontes para os achaques da garganta, & dos olhos; para preservar da peste; para as azias, & dores de estomago; para os que tem dores de colica muitas vezes no anno; para os que padecem fluxões repetidas aos dentes, & queixos; para os que vomitaõ todos os dias o que comem; & para os que tem dores de lombos, & para outras doenças, pudera escrever livros inteiros, porque no discurso de muitos annos me tem vindo às mãos infinitos achaques dos sobreditos, & depois de grandes Médicos terem trabalhado muito tempo para curallos sem poder conseguir o effeito desejado, só com as fontes livràraõ de todos. Vejaõ os curiosos os louvores, que Francisco Choinel, (4.) Jeronymo Mercurial, (5.) Ambrosio Pareu, (6.) Christovaõ Benedicto, ( 7.) Thomas Rodriguez da Veiga, & outros gravissimos Authores attribuem às fontes, & logo saberaõ o grande fundamento que tenho para estimar muito este remedio, & o mandar fazer com grande confiança naõ só a dous sobrinhos meus, sendo crianças de dous meses, com que os livrei dos garrotilhos, de que seis irmãos (pelas naõ terem) acabarão a vida; mas tambem a muitas outras crianças, que deixo de nomear por não fer enfadoso.

8. Neste lugar me perguntaráõ os curiosos, se affim como muitas vezes he conveniente abrir fontes em qualquer tempo, & idade, seja algumas vezes conveniente fechallas. Respondo com distinçaõ, dizendo que se as fontes no espaço de hum anno naõ tirarem, ou ao menos melhorarem a doença, por cuja causa as abriraõ, não só se podem fechar; mas será erro conservallas abertas, principalmente se purgarem pouco, porque será loucura estar pagando huma taõ grande pensaõ, como as fontes trazem comsigo, de dores, & máos cheiros sem conseguir o beneficio da saude. Não he isto resolução só minha, he conselho do grande Thomas Rodriguez da Veiga. (8.) Muitos exemplos pudera referir de pessoas, que as fecháraõ porque não conhecérão melhoria com ellas; basta por testimunha desta verdade o Padre Frey Françisto da Natividade; Religioso de Nossa senhora do Carmo, chamado por o Latino; este as fechou depois de as ter abertas muitos annos, & tão fóra esteve de lhe fazer mal, que só teve perfeitissima saude. Tambem a sobredita menina Marianna Josepha depois de ter as fontes abertas seis annos, ou por descuido, ou de proposito as fechou, & nem por isso experimentou damno algum nos olhos, nem na saude. A huma filha de Manoel Galvão, sendo criança de mui tenra idade, fe abrio huma fonte por causa de huma inflammação teimosa que tinha em hum olho, & depois que sarou do olho, a fechou sem prejuizo, nem damno da saude. Não quero porèm dizer que as fontes se fechem, se purgarem muito, ou se aliviarem, ainda que purguem pouco.

9. No mesmo tempo em que estava escrevendo esta Observação, me chegàrão à noticia dous remedios para os garrotilhos, & achaques da garganta, dos quaes me disserão taes excellencias; pessoas de tanta authoridade, que me derão confiança para os escrever aqui ; o que faço, para que se algum doente se achar em tal aperto da garganta, que se veja morrer por naõ lhe aproveitarem outros remedios, & quizer usar destes, o possa fazer, fundado nesta experiencia, & nos conselhos de Celso, (9.) & de Valhes, (10.) os quaes nos dizem que nos casos desesperados lancemos mão de qualquer remedio, ainda que nos pareça temerario: eu não os experimentei, mas posso afegurar que saõ tão fieis, & seguros, que se não fizerem o proveito esperado, que não faraõ damno.

10. O primeiro remedio he atar ao redor da garganta hum escarpim, ou palmilha de mea bem suada, & fedorenta. Este remedio tem a seu favor a approvação dos Religiosos Irlandezes, que vivem na Corte Real, os quaes uniformemente dizem que nas suas patrias he o escarpim suado o mais decantado remedio que ha para os garrotilhos, & queixas da garganta: os mesmos louvores lhe attribue Dom Thomas de Napoles, & Noronha, que foi testimunha de vista de hum doente, que estando ungido por queixa da garganta, sarou com o dito remedio.

11. O segundo remedio he puxar, & esfregar as orelhas do doente para cima tanto tempo, até que se fação vermelhas; para este remedio acho fundamento, & razão que o apadrinhaõ: porque as orelhas tem grande parentesco, & correspondencia com a garganta, como vemos cada dia nas pessoas que tem grande dor nella, as quaes quando engolem alguma cousa, se queixão muito dos ouvidos; & o vemos tambem nos que se fazem tisicos por fraqueza da garganta, ou laringe; porque vemos que a mayor parte delles deitão materia por algum dos ouvidos, ou por ambos, como o tenho observado em muitas, principalmente em hum pagem de Roque Monteiro Paim, & em huma donzella irmãa de Dona Maria de Brito, que estando tisicos por fraqueza da garganta, deitavão materia pelos ouvidos; final infallivel da grande correspondencia, & communicaçaõ que a garganta tem com as orelhas.

OBsERVAÇAM XL.

De humas camaras colericas taõ rebeldes que duràraõ quinze meses, e sem embargo de que em todo este tempo naõ passou dia sem q̃ se fizessem remedios muito experimentados, foi a doença taõ obstinada, que desprezou a todos, e desanimou aos Medicos de modo, q̃ se despediraõ, porque viraõ baldado o seu trabalho: neste aperto me chamàraõ, e entendendo eu que a grande quentura do figado, e entranhas eraõ a causa de taõ indomavel fluxo, ordenei que tomasse sessenta banhos de agua tibia, desfazendo em cada hum delles hum paõ de massa crua; e foi taõ bem logrado esta diligencia, que se venceo a doença, quando todos entendiaõ que se avia de render a vida a tanta enfermidade.

1. sUpposto que para conservar a saude, espertar o calor natural, abrir os póros, exhalar as fuligens, e promover a circulaçaõ do sangue, nenhuma cousa seja taõ proveitosa como o exercicio, e trabalho; comtudo, se qualquer cousa destas for excessiva, fara damno em lugar de proveito: porque o exercicio, ou trabalho demasiado exaspera o calor do figado, do qual esquentado, e irritado se gera grande quantidade de humor colerico, acre, e salino, e como o tal humor seja incapaz, tẽdo estas qualidades, para a nutrição das partes, a mesma natureza próvida o deita fóra do corpo, transpondo-o para os intestinos, e se nelles se derem mais tempo do que he razão, adquirem pela demora huma mordacidade taõ caustica, e corrosiva, que não só faz camaras colericas, sanguinhas, e fedorentas; mas vicîa, e corrompe a carne, e sustancia do figado com a colliquaçaõ, e transcolaçaõ cruenta dos humores. Desta verdade tenho visto muitos exemplos; referirei sò hum, para dar gosto aos curiosos, e fazer serviço aos principiantes.

2. Domingas Ferreira Lopa, vendo a seu marido em perigo da vida por causa de huma febre maligna, com que esteve desconfiado de todos os remedios humanos, recorreo ao Medico Divino, pedindolhe com enternecidos rogos, e copiosissimas lagrimas quizesse dar saude a seu agonizante enfermo, valendose para o despacho de petição tão justa, da poderosissima intercessaõ de Nossa senhora de Penha de França, fazendolhe promossa, e voto, que se seu marido livrasse de tam grande perigo, iria nove dias continous, em acção de graças, à sua Igreja a pé descalço. Não lhe sahio baldada a sua supplica; porque feito o voto, se tirou no mesmo dia a febre do marido, e conseguio saude taõ perfeita, que todos a avaliàrão por milagrosa. Não sossegou o agradecido animo desta taõ bem ouvida, como bem despachada mulher, sem que na mesma hora fosse prostrarse aos pès da piedosissima senhora, e começou logo a pagar a novena prometida; mas pela grandeza, e distancia do caminho, ou pelas excessivas calmas, que avia, ou (o que he mais certo) pelo excessivo trabalho, a que não era costumada, se accendèrão o figado, e entranhas de tal maneira, que geràraõ humores mais acres, e colericos do que convinha, derretendo-os, e perturbando-os de modo, que como se fossem turgentes, os não pode a natureza conter, nem governar, antes os arrojou impetuosamente para os intestinos, donde se lhe seguio hum fluxo de ventre tam porfioso, e obstinado, que durou quinze meses.

3. Para remedio destas camaras se chamàraõ dous Medicos de fama, de cujos conselhos usou quinze meses sem conseguir alivio. Naõ he dizivel quantas sangrias lhe fizeraõ; quantas ajudas alterntes, e lavativas lhe deitàraõ; de quantos emplastros confortativos, e adstringentes se valèraõ; quantas bebidas, e medicamentos especificos; quantas purgas, e apozemas appropriadas; quantos cordeaes adstringetes; quantos epithemas refrigerantes; não lhes esquecèraõ as sangrias da vea salvatella da mão direita; recorrèraõ aos pòs do cypò, às raizes da erva limonio; fizerãolhe tomar por baixo os bafos de vinagre forte cozido com rosas balaustias, e pinhas bravas; usarão dos fumos de esterco de burro; appellàraõ para os pòs das tunicas das castanhas; usárão muitos dias em jejum do xarope de sorvas; derãolhe o pò da ova do peixa Anjo colhido em Mayo; applicarãolhe duas vezes no dia ajudas de cozimento de mãos de carneiro cozidas com arroz torrado, e alquitira, ajuntando a cada ajuda oitava, e meya de Philonio Persico; tomou muitas vezes os fumos de cerol dos capateiros; pela banda de fóra applicaràrão sobre toda a barriga, e estomago emplastros de marmelada, biscouto preto, losna, ortelãa, pòs de casca de romãa, de murta, çumagre, maçãs de acipreste, polvorizado tudo subtilmente, e amassado com vinho tinto, finalmente derãolhe, em duas noites successivas, huma pilula de tres grãos de laudano opiado: e sendo todos estes remedios admiraveis, e muito qualificados com largas experiencias, nenhum proveito fizerão; antes àlem das camaras, lhe sobrevierão hum fastio mortal, huma magreza excessiva, huma melancolia profunda, e huma febre lenta.

4. Vendose a pobre enferma em estado tam miseravel, e desengada dos Medicos, de que certamente morreria, se a febre, e as camaras perseverassem, se resolveo a cuidar menos dos remedios corporaes, pelo pouco que lhe aproveitàraõ; e só se entregou nas mãos de Deos, pedindolhe com lagrimas de dor huma boa morte: porèm os parentes, que estavão mui lembrados dos extremos que ella fizera no perigo de seu marido, naõ quizerão desprezar os remedios da Arte, nem deixar a doença atida só às esperanças de milagre, parecendolhes que era locura, e desesperação, desprezar o conselho do Medicos, (1.) mayormente quando Deos manda que o sigamos, e estimemos, porque ainda que a vida, e a morte estejão na mão de Deos, nem por isso se haõ de desprezar os remedios, que elle deixou para soccorro dos homẽs; que quem desestima o beneficio, offende ao bemfeitor: por estas razões, e outras não menos ponderosas me consultàraõ para q̃ lhe acudisse em tão grande aperto.

5. Fui pois chamado a 4. de Janeiro de 1663. E para que a cura se principiasse com bom auspicio, depoi de fazer varias perguntas, quiz ver os excrementos que deitava no curso, para que pela grossura, ou delgadeza delles, pela mayor, ou menor quantidade, pela cor mais, ou menos subida tivesse perfeito conhecimento do achaque, e causa de que procedia.

6. Examinados com toda a attenção os excrementos, e vendo que erão retintos de cor amarella escura, conheci por elles, e pelo temperamento quente da enferma, que a causa occasional das sobreditas camaras fora o grande trabalho, que tivera nas jornadas da novena; e que a causa material erão os humores colericos, que com o mesmo trabalho se geràraõ; e que a parte mandante era o figado exasperado; e recipiente erão os intestinos. Isto assim premeditado, lhe assegurei que cobrasse animo, porque avia de ter a saude que desejava; com tal condição que obedecesse ao que eu lhe mandasse. Prometteome que faria quanto eu quizesse. Julguei pois que era precisamente necessario evacuar primeiro os humores, porque de outra sorte seria o trabalho baldado, e a diligencia infructuosa; (*) e como para tirar os taes humores, que erão a causa material da enfermidade, nenhum remedio aja mais efficaz que a minha purga corroborante de myrobalanos citrinos, ruibarbo, e xarope das nossas rosas, cuja receita se achará escrita na minha Polyanthea nova da segunda impressaõ cap. 56. fol. 372. num. 6. e 7. lhe receitei a dita purga, para tomar tres vezes em dias alternados; e como para temperar o calor das entranhas, que erão a causa efficiente, nada aja tam efficaz como os banhos de agua doce, lhos ordenei, não só porque refrescão, e temperão muito o calor; mas porque abrem, e dilatão os póros de todo o corpo, de que se segue a attracção, e revulsaõ da materia pungente, que avia de despenharse nos intestinos, e fazer os cursos; por isto pondo de parte os engrossantes, e adstringentes de que tanto tempo tinha usado, a purguei, tres dias alternados, com o remedio sobredito, e depois disso lhe fiz tomar cincoenta banhos de agua doce, em que mandei desfazer todos os dias hum pão de massa crua, e antes de passarem trinta dias, teve saude taõ perfeita, que admirou, e entendèraõ que resuscitàra; e vive por benedicio desta cura, ha mais de quarenta e tres annos.

7. Com as mesmas purgas, e banhos curei muitas camaras antigas, que tinhaõ desprezado aos mais decantados remedios da Medicina, como observei no senhor Bispo de Miranda Manoel de Moura Manoel; no Padre Mattheos Gomes de Mercado; na mulher de Luis Rodriguez de Paiva; na mulher de Lourenço Friarte, ourives do ouro; e em outras muitas pessoas, que deixo de nomear, por naõ ser enfadoso. E porque naõ pareça que os banhos para curar as camaras saõ louvados só por minha authoridade, e experiencia, ouçaõ a Galeno, (2.) o qual fallando delles diz as seguintes palavras: são os banhos convenientissimos para reter os cursos, porque revellem, e chamaõ o humor do ventre para a superficie do corpo, e deste modo paraõ o fluxo. Ouçaõ tambem a Avicenna, (3.) o qual em termos identicos diz assim: são os banhos, e as esfregações os dous remedios, que retem os cursos, porque dilataõ os póros, e attrahem a materia delles para as partes exteriores. Confirmase a virtude, que os banhos tem para curar camaras, com a experiencia de Riverio; (4.) diz elle as seguintes palavras : Achandome eu acometido com humas camaras colericas taõ acres, e mordazes, que me seriaõ, e escandalizavaõ as partes sedaes, e provocavaõ ardores de ourina por causa dos humores salgados, e acrimoniosos que naquellas partes cabiaõ; e tomãdo banhos, naõ só melhorei das taes camaras, mas me preservei de as ter de sangue q̃ me estavaõ ameaçando. Thomas Rodrigues da Veiga, (5.) que foi o mayor Medico que teve Portugal, adverte, que para curar camaras antigas he remedio utilissimo chamar o humor para as partes superficiaes, e cutaneas, fazendo esfregações em todo o corpo, e deitando ventosas sobre os hypocondrios, e espadoas, e dando banhos de agua quente; he porèm de advertir, que supposto os ditos banhos aproveitem muito para as camaras procedidas de humor quente, acre, e corrosivo, e sejaõ uteis aos magros, adultos, e esquentados, e os que tem grande ardor do corpo, e aos resecados da febre, como tambem aos melancolicos, e opprimidos com o humor crasso, e terreno, como tambem aos que padecem terçãs exquisitas, principalmente se forem pessoas esquentadas, magras, e torradas, como diz Galeno, (6.) comtudo he necessario advertir, que saõ damnosissimos aos que tem o corpo cheyo de cruezas, e de humores cacochymicos; e aos que tem as entranhas languidas, e debilitadas; e finalmente àquelles que tem os hypocondrios duros, ou tumorosos, porque adelgaçaõ o humor preternatural, e cahindo em alguma parte languida degenera em tumores, e abscessos.

8. Neste lugar me faraõ os curiosos duas perguntas. A primeira, porque razaõ assegurei à sobredita enferma que avia de ter saude, quando Galeno (7.) nos aconselha que nas doenças perigosas naõ demos grandes esperanças de vida aos enfermos; porque disso resulta, que se a melhoria tarde, ou a doença peyora, se entregaõ a huma melancolia taõ profunda, que basta para os matar; e se saõ grandes os esforços que o Medico lhes dá, cobraõ tal animo que naõ querem aceitar os remedios, porque se persuadem que naõ tem perigo.

9. A esta pergunta respondo, que ainda que he conselho prudente naõ encher de esperanças aos muito perigosos, por lhes naõ ser occasiaõ a que, se faltar o promettido, se cuide que o Medico he mentiroso, ou ignorante; comtudo, quando o doente he imaginativo, e desconfiado, e tem tratado da sua salvaçaõ, e feito testamento, he licito, e justo animallo, e alentallo muito, porque no bom conforto, e esforço do Medico consiste algumas vezes toda a cura, ou huma boa parte della.

10. A segunda pergunta he, porque razaõ dei banhos a esta doente em Janeiro, se as camaras duràraõ quinze meses, e no discurso delles ouve tempo mais proprio para este remedio. Respondo, que como eu era entaõ muito moço, e falto de experiencia, naõ tive confiança para aconselhar remedios, aonde assistiaõ Medicos mais velhos, e experimentados ; porèm quando vi que elles desconfiàraõ, e se despediraõ, me resolvi a dar os banhos, porque ainda que o rigor dos frios era grande, muito mayor era o perigo em que a doente estava; e nestes termos a todo o tempo he tempo, porque a dilaçaõ em nehuma cousa he taõ prejudicial, como nos casos da Medicina. (8.) Mas este zelo de acudir ao proximo affligido com risco do proprio credito, costuma Deos favorecer com successos taõ maravilhosos, e felices, (9.) como foi o desta doente; a qual depois de padecer camaras tanto tempo, e estar deixada por incuravel, a livrei da morte dentro de trinta e seis dias.

11. Finalmente saõ os banhos taõ proveitosos para suspender as camaras, que até para as que procederem de algũa superpurgaçaõ, ou purga taõ forte, q̃ em hum dia provoque noventa, ou cem cursos, obraõ effeitos maravilhosos; mas neste caso ha de ser a agua do tal banho hum pouco mais quente que aquella dos que se daõ para temperar as febres, e para os hypocondriacos, ou dores ictericas; porque nas camaras de superpurgaçaõ, e excessivas todo o intento do Medico he abrir os póros, para chamar, e divertir para a superficie do corpo os humores, que despenhadamente correm para o ventre, e fazem a superpurgaçaõ, ou camaras taõ excessivas que podem matar.

12. Tambem os banhos que se derem aos que tem suppressoens de ourina por causa da pedra, ou grossura dos humores, devem ser com agua mais quente, para deste modo se facilitar a saida da pedra, alargar as vias, e adelgaçar os humores.

13. Estes dous casos saõ os em que he necessario dar os banhos com agua mais quente; mas em todos os mais achaques, em que se derem banhos, seja a agua manos de morna, de tal sorte, que os doentes se queixem de que a achaõ fria. Digo isto em utilidade dos doentes, e conselho dos Medicos novatos, porque como saõ faltos de experiencia, dão muitas vezes os banhos com agua mais quente do que convem, donde se segue fazerem mais damno, que proveito.

14. Tres documentos colheraõ daqui os Medicos modernos: o primeiro, que nas camaras rebeldes procedidas de quentura do figado, saõ os banhos de agua morna excellente remedio , com tal condiçaõ, que se appliquem depois do corpo estar evacuado: o segundo, que nas suppressoẽs de ourina, ou camaras procedidas de superpurgaçaõ, ou excessivas, deve a agua do banho ser mais quente, que para qualquer outra doença, pelas razões acima apontadas: o terceiro, que os banhos se podem das a todo o tempo que a necessidade o pedir, ainda que seja no mayor rigor do inverno; como eu os dei muitas vezes em Janeiro, e Fevereiro, e com tão feliz successo, como os curiosos poderaõ ver na minha Polyanthea nova no trat. 2. cap. 57. fol. 374 do num. 13. até 14. aonde nomeyo as pessoas, a quem os dei nesse tempo, e por isso os livrei da morte, porque nunca me pareceo bem o demasiado medo de alguns, q̃ se os chamão para curar hum hectico, ou tisico em Novembro, dizem que não he tempo, que esperem até vir Março: perguntaria eu a esse tal, que se se lhe queimassem as suas casas de noite, se avia de esperar que viesse o dia para acudir ao incendio: eu dei já aço nos Caniculares a certa senhoa, que tinha huma febre ardente, procedida de huma grande opilação, e se a mandàra esperar até que o tempo esfriasse, morreria primeiro.

OBsERVAÇAM XLI.

De huma dor iliaca, que durou quatro dias com vomitos estercorosos, suores frios, ventre muito duro, & inchado; & estando a doente sem esperanças de vida, lhe fiz beber tres onças de azougue, & no mesmo instante ficou boa, com grande credito da Arte, & da minha pessoa.

1. JUnto à Igreja de saõ Miguel de Alfama mora huma mulher, chamada Francisca Dias, a qual em 19. de Março de 1665. estando na sobredita Igreja para se confessar, começou a sentir humas dores no ventre, as quaes se foraõ augmentando de forte, que esteve resoluta a irse para casa; mas o pio affecto, & ardente desejo que tinha de confessarse, & commungar naquelle dia, por ser do senhor saõ Joseph, lhe embargàraõ a sahida, & por esta causa se deixou estar mais tempo do que podia, & com esta grande demora crescèraõ as dores com tal excesso, que foi necessario levarem-na para casa em braços; & como ( segundo o adagio (1.) commum) tantos saõ os homens, quantos saõ os pareceres, cada huma das pessoas que alli estava, fez particular juizo da doença: diziaõ huns que era dor de colica; outros diziaõ que era flato; affirmavaõ outros que era accidente uterino: & como a gente ordinaria naõ costuma chamar Medico nos primeiros dias das doenças, contentáraõse com os remedios caseiros, & faceis de fazer, & assim lhe metèraõ os pès em hum banho quentissimo de vinho fervido com huma maõ cheya de alfazema, & alecrim, & depois de meya hora de banho lhe puzeraõ sobre as solas dos pès dous ladrilhos quentissimos borrifados com agua ardente; & vendo que as dores naõ aplacavaõ com estes pediluvios, que costumaõ ser maravilhosos para tirar semelhantes dores, lhe fomentáraõ o ventre com banha de flor miturada com oleo de macella; fizeraólhe beber tres onças de agua de flor de laranja: mas vendo as mezinheiras que com estes remedios naõ sentiaõ alivio, appellàrão (como he costume) para hum beiro; ordenou este varias ajudas; humas de caldo de gallinha bem açafroado, com tres onças de lambedor violado, & huma gema de ovo; outras de cozimento de cabeça de carneiro, alfavaca, ortelãa, & ortigas mortas, ajuntando a cada cinco onças deste cozimento quatro onças de assucar mascavado, & huma onça de diaprunis; outras de tro onças de oleo de amendoas doces misturado quatro de manteiga de vaccas.

2. Tudo isto se executou, mas sem proveito; porque a desgraçada enferma de hora em hora sentia mayores dores; vomitos, & agonias. Neste aperto; & grande desconfiança da vida se resolvèraõ a chamar Medico, naõ tanto com esperança de que a curasse, quanto para que fosse testimunha da sua morte, & desse huma certidaõ da doença de que morrèra, para a enterrarem; (como he costume nesta Corte) chamáraõme entaõ, & a 24. de Março de 1665. lhe fiz a primeira meira visita: & como para curar com acerto seja necessario conhecer primeiro a doença, a causa della, & os remedios, que se devem applicar; foi preciso examinar bem em que parte tinha a dor; & foime respondido que junto do embigo, & intestinos delgados; & que no mesmo lugar tinha hum grande tumor com notavel distensaõ do hypogastrio, & que juntamente sentia huma total suppressaõ dos excrementos fecaes, com muitos flatos, & rugidos por todo o ventre, & finalmẽte sentia palpitações do coraçaõ, extremidades do corpo muito frias, & vomitos fedorentos. (2.) Por estes sinaes conheci que a enfermidade desta mulher era huma dor, a que os Authores chamaõ paixaõ iliaca, por outro nome Volvulo, ou miserere mei, causada, ou de obstrucçaõ das vias, ou de inflammaçaõ dos intestinos, ou de eficaçaõ, & dureza das fezes, ou de mudança de sitio dos intestinos, (como fuccede nos quebrados,) ou erro do movimento peristaltico tico dos mesmos intestinos, porque impedindose por qualquer causa destas a sahida, ou descida dos flatos, dos excrementos, ou dos humores, necessariamente pela demora se irrita o archou a faculdade expulsiva dos intestinos, & faz deitar pela boca, o que avia de sahir por baixo. (3.) E vendo eu que as dores, àlem de serem vehementissimas, eraõ acompanhadas com muita febre, julguei que naõ procediaõ de flatos, nem de mudança dos intestinos, (porque naõ era quebrada) mas de inflammaçaõ dos intestinos, ou de dureza das fezes: & para me certificar melhor se este juizo era verdadeiro, quiz ver as ourinas, porque, da que (como diz Galeno,) (4.) se saõ boas, nem por isso asseguraõ ao doente do perigo desta enfermidade ; comtudo se saõ roins, acrescentaõ o cuidado, porque mostraõ, que sobre a grande offensa dos intestinos, está o genero venoso tambem enfermo: como pois visse que as ourinas estavão muito vermelhas, entendi que os intestinos, & entranhas estavaõ inflammados, & excandescentes, & por isso nos primeiros dous dias a mandei sangrar seis vezes nos braços, a saber pela madrugada, antes do meyo dia, & junto da noite; para com este apressado soccorro impedir que os humores naõ corressem, ou se despenhassem sobre a parte inflammada: & para mollificar as fezes, & laxar as vias, lhe mandei lançar ajudas muito emollientes, & attemperantes, preparadas de partes iguaes de azeite rosado, & lambedor de violas; mas como naõ evacuasse com elas cousa alguma, lhe ordenei que tomasse cada dia dous grandes caldos de frangaõ cozido com malvas, & ortigas mortas, ajuntando a cada caldo quatro onças de oleo de amendoas doces tirado sem fogo; porque naõ tem a Medicina remedio melhor abrande, & laxe as vias: mas como estes remedios (sem embargo de serem excelentes) aproveitassem, appellei para meter a doente (duas vezes no dia) em hum banho muito emolliente de agua morna, que primeiro fosse cozida com dorateis de amendoas doces bem pizadas, folhas de malvas vas, ortigas mortas, & raizes de malvaisco: & como estes banhos (sendo hum dos principaes remedios em que eu punha a esperança da saude) nenhum alivio causassem, entendi que toda a doença procedia do intestino Ilion estar torcido, ou do movimento peristaltico se fazer errado; & que se isto era assim (como eu o imaginava,) o unico remedio avia de ser endireitar, & destorcer o dito intestino, porque só deste modo poderia escapar da morte; pela qual razaõ manifestei aos circunstantes o evidente perigo, em que a doente estava (5.) dizendolhes que eu tinha por melhor fazer algum remedio, ainda que fosse duvidoso, que deixar morrer a enferma ao desemparo; (6.) mayormente, quando he conselho de Galeno, (7.) que nos perigos extremos se devem applicar remedios extremos. Naõ desagradou esta minha resolução a todos os circunstantes; aos quaes disse, que eu naõ achava remedio mais eficaz para endireitar o intestino torcido, & curar huma doença taõ perigosa, & formidavel, como era o azougue, porque só elle com o seu grande peso poderia fazer o effeito desejado, & livrar a enferma da morte. Isto assim presupposto, & invocado o nome de Deos, mandei que erguida, & posta em pè a doente, bebesse tres onças de azougue vivos & foi o successo taõ maravilhoso, que logo se destorceo o intestino, & evacuou copiosamente, sahindo primeiro que tudo o azougue, & no mesmo dia livrou do perigo, & teve saude, com dos circunstantes, & credito da Arte.

3. E porque sey naõ haõ de faltar homens, que digaõ foi temerara ousadia dar a beber tres onças de azougue a huma mulher, que estava espirando por causa de hum volvulo, me dou por obrigado a acudir por minha honra, & pela verdade, dizendo que tan fóra esteve de ser erro, ou atrevimento dar o azougue em hum volvulo taõ apertado, que antes seria erro, & peccado sem desculpa, naõ recorrer ao remedios mais efficazes, ainda que sejaõ violentos, &, com tanto que sejaõ capazes de salvar a vida do doente, & como o Volvulo da sobredita mulher naõ tivesse obedecido aos muitos, & bons remedios, que se tinhaõ feito, nem ouvesse já para onde appellar, por isso, posto de parte o rustico temor do que podiaõ dizer os fiscaes das acções alheyas, dei o azougue com felicissimo successo.

4. E para que os doentes, que daqui por diante tiverem semelhante enfermidade, naõ tenhaõ medo de tomar o dito azougue, & saibaõ que se póde tomar seguramente, nomearei aqui as pessoas, a que livrei da sepultura com elle. Foi o primeiro Francisca Dias, da qual falo nesta Observaçaõ. Foi o segundo Manoel Alvarez, sirgueiro de agulha, aprendiz de Joaõ de ina, morador na rua Nova. Foi o terceiro Cathea Gomes, mulher de hum oleiro de azulejos, moradora aos Poyaes de saõ Bento. E porque no caso desta terceira enferma ouvesse algumas circunstancias de mayor perigo, & que fizeraõ a cura mais affamada, me seja permitido referillas para utilidade da Republica, & credito da Arte.

5. Tinha esta mulher huma hernia antiga, & naõ sey porque causa lhe descèraõ hum dia as tripas até o joelho, & no mesmo dia a assaltou huma dor Iliaca, ou Volvulo vehementissimo, por cuja causa começou a ter ancias mortaes, & vomitos estercorosos. Para acudir a este caso se chamáraõ alguns Medicos bem opinados, os quaes conhecendo o perigo da doença se atemorizáraõ de maneira, que nem quizeraõ ver, nem pôr as mãos na miseravel enferma: te aperto (como muitas vezes fazem muitos) me chamáraõ; & considerando eu que naõ podia curar o Volvulo, que a dita mulher padecia, sem que os intestinos se tornassem a repor em seu lugar, intentei primeiro que tudo recolhellos; porèm estava a hernia tainchada, dura, & retezada, que se naõ pode rec& deste modo era impossivel dar o azougue para destorcer, & indireitar o intestino, & consequentemente naõ avia esperanças de escapar da morte. grande perigo mandei por sobre a hernia hu vivo, esperando que com o calor natural daquelle vivente cobrasse a hernia quentura, se dissipassem os flatos, & se desfizesse a inchaçaõ, & deste modo se pudesse recolher: & naõ me sahio baldada a diligencia; porque no termo de huma hora depois de applicado o caõ, aqueceo aparte, & se abrandou de tal sorte a dureza, que com pouca molestia se recolhèraõ os intestinos. Mandei entaõ ligar a quebradura com a sua funda, & que erguessem, & puzessem a mulher em pè, & lhe dei a beber tres onças de azougue, & no mesmo instante se indireitou o intestino, paráraõ os vomitos, & ficou boa.

6. Vejaõ agora os Medicos, que lerem, ou tiverem noticia destas tres curas de Volvulos taõ felicemente succedidos com o azougue, que conta haõ de dar a Deos, dos doentes, que daqui por diante tiverem esta enfermidade, & por temerem as murmurações, naõ lhes acudirem com o azougue, vendo-os em perigo de vida.

7. Tres cousas de muita importancia quero advertir aos Medicos modernos. A primeira he, que se algum Volvulo for taõ rebelde, que se naõ cure com as tres onças de azougue, qu neste caso se podem dar seis, & naõ faltão Authores de boa nota, que mandão dar dous arrateis: porque só o grande peso indireita o intestino torcido; o que algumas vezes naõ succede, quando a quantidade he pouca, & por falta do peso não passa, & encalha em alguma dobrez do intestino; donde se segue que se ao dito azougue, retido dentro, se ajuntar alguma porçaõ de humor acido-salino (como he factivel) se transforme em solimão venenoso, & corrosivo, porque de semelhantes saes juntos com o azougue se faz o solimaõ: & naõ succedera esta desgraça, se a quantidade do azougue for grande, porque o seu mesmo peso o farà passar, & sahirà logo do corpo com vitoria da natureza, & gloria da Arte.

8. A segunda cousa muito importante, & que he necessario saberse, he, que supposto digo q̃ o azougue dado a beber, he o mais eficaz remedio que há para os Volvulos desesperados, que nem por isso se deve dar a todos sem distinçaõ, nem à carga cerrada: porque se o Volvulo proceder de inflammaçaõ dos intestinos, (o que conheceremos pela grande febre, grandes dores, sede grande, grande quentura no ventre, & em todo o corpo ) não convirá o azougue; mas conviraõ sangrias repetidas nos braços, meadas ensopadas em leite, & applicadas ao ventre, banhos de agua morna cozida com quatro arrateis de amendoas bem pizadas, & tisanas. Tambem naõ convirà o azougue aos Volvulos, que procederem de materia fria, ou de flatos grossos embebidos nos intestinos porque a estes ( como diz Hippocrates) (7.) convem darlhes vinho puro, & generoso, para que se cozam, & dissipem as taes cruezas, & flatos; & deitarlhes ajudas de vinho bom, ourina de menino, em que cozeraõ primeiro esterco de cabra, cominhos, funcho, bisnaga, com hum escropulo de Castoreo.

9. Tambem não convem dar o azougue nos Volvulos, que procederem de dureza do esterco, sem que primeiro se mollifiquem com algumas ajudas de umo de ortigas mortas, & igual quantidade de oleo violado. E se estas não bastarem, deitaremos outras feitas de dezaseis onças de oleo violado misturado com quatro onças de vinho branco, fervendo tudo até se gastar o vinho.

I0. Das seguintes ajudas tenho mayor conceito para Volvulos que procedem de dureza, & resicaçaõ dos excrementos, & se fazem do modo seguinte. Tomai de raizes de malvaisco machucadas huma onça, de folhas de violas, malvas ortigas mortas, alsavaca de cobra, endros, coroa de Rey, & macella; de cada cousa destas huma maõ cheya, tudo se coza em huma canada de agua com hum frangão, de forte que se faça calda para tres ajudas, & a cada seis onças deste cozimento ajuntei de canafistula huma onça, de Benedicta laxativa meya onça, de óleo de amendoas doces, de macella, & de endros, de cada hum huma onça, & com huma gema de ovo, & duas oitavas de salgema gema se deitem estas ajudas mornas, & o bom effeito dellas acredita a sua grande virtude.

11. Meter aos doentes, que tem Volvulo por causa de dureza das fezes, em hum banho de seis almudes de agua morna, misturada, & bem batida com meyo almude de azeite, he remedio muito louvado, affim para mollificar o ventre duro, como para abrandar a dor, com tal advertencia, que depois de sahir do banho se fomente toda a barriga com bosta de boy fresca, misturada com a gordura que deitarem de si quatro redenhos de carneiro derretidos.

12. Os caldos de gallinha bem gorda, cozida com boa quantidade de folhas de malvas, & ortigas mortas, a que ajuntém quatro escropulos de cremores de tartaro, ou duas oitavas dos meus trociscos de Fioravanto, obraõ effeitos milagrosos nos casos de durezas das fezes, ou dores de ventre.

13. A terceira cousa, q̃ he muito importante saberse, he, que se o Volvulo proceder por causa de algũa quebradura, em que os intestinos descerem atè o escroto, que neste caso mandemos virar o homem com a cabeça para baixo, & com os pès para cima, & deste modo reduzamos o intestino a seu lugar, & enfaixando-o muito bem, lhe daremos entaõ o azougue.

14. Da maravilhosa virtude que tem o azougue vivo dado a beber para curar a dor iliaca, & indireitar os intestinos torcidos, matar lombrigas, & facilitar os partos apertados, escrevèraõ Joaõ schenkio, (8.) Felix Platero, (9.) Henrique ab Heers, (10. ) Brasavolo, (11.) Andre Mathiolo, (12.) Joaõ Hartmano, (13.) Fabricio Hildano, (14 ) Baptista Zapata, (15.) Joaõ Helmonte, (16.) Nicolao de Blegni, (17.) Bernardo Conor, (18.) & infinitos outros que naõ refiro, por naõ cansar aos Leitores.

15. Vanelmonte (19.) louva muito nos Volvulos as balas de chumbo, & diz que nunca vira morrer desta doença, aos que usaraõ dellas, com tal condiçaõ que as tome estando em pè, ou andando passeando, ainda que seja ajudado por outrem.

OBsERVAÇAM XLII.

De huma febre cau∫ada de enchimento do e∫tomago; para remedio da qual ∫e deraõ vinte ∫angrias, & por isso degenerou a febre em maligna de tam veneno∫a qualidade, que o doente chegou a e∫tar ungido, & certamente morreria, ∫e eu lhe naô acudira dandolhe o meu Bezoartico, com cuja virtude solutiva, & cardiaca foi lentamente purgando os humores damno∫os, & rebatendo a qualidade veneno∫a, & por este caminho o livrei da da morte e∫tando qua∫i metido na ∫epultura.

1. – Naõ averá Medico tam falto deciência, que ignore o muito que Galeno, (i.) & todos os Doutores (2.) reprovaô as ∫angrias nas febres, & doenças, que procedem decrueza, ou enchimento e∫tomago: comtudo naõ ∫ei com que cegeueira, ou fado infelice desprezaõ alguns homens os preceitos dos Oraculos da Medicina, mandando ∫angrar em todas as febres, ∫em diferença, nem distinção das cau∫as dellas, nem dos temperamentos, ou forças dos doentes; & o que mais he, que nem queixando∫e eles que ∫entem o e∫tomago pe∫ado; que tem vontades de vomitar; que lhes amarga a boca; & que tem grande faítio; naõ; naõ ba∫taõ todos e∫tes finaes, & reclamos, para conhecerem que os taes doentes nece∫∫itaõ de ∫er logo purgados; mas cega, & incon∫ideradamente mandaõ logo ∫angrar, ∫em embargo que a experiencia 1hes mostra cada dia, que os que ∫e ∫angraõ tendo os e∫tomagos cheyos, ou morrem na contenda, ou livraõ por milagre. Devem pois os Medicos principiantes advertir, que naõ commettaõ hum erro taõ ab∫urdo, como he ∫angrar a alguém e∫tando com o estomago cheyo, ou com de∫ejos de vomitar, ou tendo grandes amargores de boca; porque os que em ∫emelhantes termos ∫angrarem aos doentes ∫em os purgar primeiro quando os naõ matem, os exporáõ a grandes perigos. Em confir- confirmação de∫ta verdade pudera repetir muitos exemplos a∫∫im dos ∫eculos pa∫∫ados, como dos ∫eculos preientes; mas he e∫eufado bufear exemplos de fora, quando nos ∫obejaõ os que temos decaía; & por naõ ∫er importuno, nem infinito em repetir exemplos, ba∫te por todos o ∫eguinte; pelo qual mo∫trarei com toda a evidencia, quam errados vaõaquelles Médicos, & em que precipicios de∫penhaõ aos doentes, que tendo os e∫tomagos cheyos de cruezas, ou humor, os ∫angraõ, ∫em os purgar primeiro.

2: O Reverendo Padre Frey Antonio de Tancos, Religio∫o Carmelita Calçado, teve em 14. de Ago∫to de I665. huma febre grandi∫∫ima acompanhada de varios ∫ymptomas, que demo∫travaõ ∫er procedida de enchimento de e∫tomago, porque padecia amargores de boca, dores na parte dianteira da cabeça, de∫ejos de vomitar, & fastio taõ horrendo, que nem podia comer, nem ouvir falar ni∫∫o; & o que fazia mayor prova que a febre procedia de carga do e∫tomago era ter o dito Frade mu∫ico, costumado a andar em fe∫tas, & banquetes, & dado a vida ∫edentaria, & regalona. Ba∫tantes indícios eraõ e∫tes, para que o na primeira vi∫ita conhece∫∫e que no e∫tomago e∫tava a causa da febre, & que por e∫ta razaõ convinha darlhe logo hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, ou huma onça de agua Angelica, ou dous e∫cropulos de vit(ilegível)iolo branco, ou huma infu∫aõ de duas oitavas de folhas de fene com cinco onças de a∫∫ucar ro∫ado de Alexandria; ou, o que era mais ∫uave, duas oitavas dos meus trocifeos de Fioravanto, polvorizados, & misturados com hum pouco de caldo dc galinha; porque aliviado o e∫tomago da grande carga que tinha, ∫e tiraria a febre, como muitas vezes ∫uccede, & eu o tenho vi∫to; & por con∫equencia ∫e e∫cu∫ariaõ as ∫angrias; ou ba∫tariaõ poucas, & naõ chegaria o doente a tanto perigo.

3. Porèm como o doente e∫colhe∫∫e para ∫e curar a hum Medico, que ∫angraria aos defuntos depois de enterrados, quiz e∫te a torto, & a direito, (∫em atender

258 Obfervaçôcs Medicas Doutrlnacs.

der a outra razaõ mais que porque achou febre) tirar ∫angue, (em que a doença não pecava,) & por nenhum modo quiz dar lhe hum vomitorio, ou alguma das ∫obreditas purgas, para de∫pejar do e∫tomago os humores, em que ∫e radicava a enfermidade; porque ∫e per∫uadio o tal Medico que os de∫ejos de vomitar, os amargores da boca, o grande fa∫tio, as ancias, & as mais queixas que o doente padecia, procediaõ de enchimento das veas; & fundado ne∫ta fal∫a conjectura, julgou que as ∫angrias ∫e deviaõ antepor aos vomitorios, & purgas alviducas, & por isso mandou ∫an-grar vinte vezes ao de∫graçado enfermo; mas taõ infelizmente, que quanto mais ∫angue lhe tirava, tanto em mayores ancias, & mais ardentes febres o metia: multiplicavaõ∫e os vomitos, cre∫eiaõ as frialdades dos extremos, perturbavaõ∫e os ∫entidos, embaraçava∫e a língua, ourinava ∫em ∫etir∫e; & ∫obre todas e∫tas mi∫erias, erão tam grandes, & taõ repetidos os ∫oluços, que moviaõ compaixaõ nos corações mais penha∫co∫os. ∫os.

4. Ne∫te aperto, (e∫tando já o doente ungido, & o Medico de∫confiado da sua vida) me chamou o Padre Doutor Frey Gregório de Je∫us, que era entaõ Prior do Coavento, & dandome larga informaçaõ das queixas q o doente padecia; (porque ele já naõ e∫tava capaz de me informar) entendi que a febre, & todos os ∫ymptomas referidos procediaõ dc enchimento do e∫tomago, naõ ∫ô porque o doente o confe∫∫ava, em quanto e∫teve em ∫eu acordo; mas porque os ∫obreditos finaes o te∫timunhavaõ a∫∫im: & perguntando eu ao Reverendo Prior, & mais Relgio∫os, ∫e o doente e∫tava purgado, me re∫pondéraõ que naõ, porque o Medico entendèra que as queixas do doente naõ, tinhaõ a ∫ua origem no e∫tomago, mas nas veas, & que por e∫∫a cau∫a julgàra por mais convenientes as ∫angrar, que a purga. Confe∫∫o que naõ pude achar de∫culpa a e∫te Medico, pois via que a doença ∫e augmentava ao compa∫∫o que as ∫angrias ∫e repetiaõ, & devia lembrar∫e que Galeno (3. ) acon∫elha que os remédios ∫e devem ∫eguir, ou ∫urpender, conforme o proveito, ou damno que fazem; & ∫endo i∫to a∫∫im, parecia cegueira do entendimento abraçar tanto as sangrias, & abominar comtal exce∫∫o purgas. Porèm como as veas estivessem sem vicio, por isso multi- (ilegível, mancha) pl as ∫angrias, & retrahidas por ellas as cruezas do (ilegível, mancha. Letras a menos) omago, cahio em huma enfermidade mortal. Neste ca∫o fiquei muito duvido∫o ∫obre a re∫uçaõ do que avia de obrar; porque para purgallo, (que era o que convinha) era já tarde, & naõ avia forças; para fangrallo mais, era acre∫centar erro a erro, pois as muitas ∫angrias lhe tinhaõ feito tanto damno lançarlhe ∫angui∫ugas, (àlem de que eraõ pequeno remédio para tão grande mal) não e∫tavaõ indicadas da doença, pois a cau∫a della e∫tava no e∫tomago, & já pecava mais em qualidade de veneno∫a o (ilegível, 3 letras) ta, do que em podridão manife∫ta dos humores ; ne∫ta angu∫tia naõ re∫tava outra e∫perança mais que rebater & fixar a má qualidade da febre com algum remedio bezbarriço, que lentamente ∫o∫∫e tambem pargando algum humor, em que a tal veneno∫a qualidade ∫e ateava; & como e∫tas duas virtudes juntas ∫e achem ∫o no meu Cordeal Bezoartico, puz nelle toda a e∫perança temporal, fiado nas muitas, & mui prodigio∫as curas, que com o tal Bezoartico tinha feito, & a∫∫im lho receitei na forma ∫eguinte,

5. Tomei de pevides de cidra azeda huma oitava de raízes se e∫corcioneira huma onça, tudo machucado mandei ∫e coze∫∫e em huma panela de barro com huma canada de agua commua, até ficar em três qua (ilegível) tilhos, & que quando a panela panela se tirasse do fogo (ilegível) assem dentro nella quatro oitavas de folhas deitae∫∫em dentro nella quatro oitavas de folhas de (ilegível) de Lapata, & ∫eis onças de a∫∫ucar rosado de Alexandria, & se deixasse estar de infusão quatro horas, no fim das quaes ordemei se coasse a dita agua com forte expressõa, & nella se deitassem três oitavas do meu Bezoartico que eu faço em minha ca∫a, & o vendo feito aos boticários João Gomes silveira, morador (ilegível) Chiado, & a Fr. Manoel de Jesus Maria boticario de saõ Domingos, & a Joaõ Baptista Leitaõ, morador a saõ Paulo; & deste Cordeal bem vascolejado, & revolvido, fiz dar ao doente meyo quartilho de seis em seis horas, & visivelmente foi aliviando das grandes ancias que tinha, & purgando com tal brandura, & suavidade, que no discurso de vinte, & quatro horas fez sete cursos, & continuando com o dito cordeal duas vezes cada dia, foi aliviando com taõ conhecido proveito, & tanta diminuiçaõ nos symptomas malignos, que começou a fallar, & conhecer todas as pessoas que lhe assistiaõ, respondendo com grande acerto, & advertencia ao que lhe perguntavão.

6. E para revelir, & chamar para baixo os vapores malignos, que lhe offendiaõ o coraçaõ, & a cabeça, lhe mandei por nas solas dos pès dous pombos abertos, & escalados pelas costas com todo o calor natural, & dentro de tres horas tomàraõ os ditos pombos hum fedor tão insoportavel, que os circunstantes o naõ podiaõ sofrer; & porque reconheci com elles evidente melhoria, lhos mandei repetir de tres em tres horas com a mesma boa fortuna. E porque o doente tinha grande fastio, ordenei lhe missturassem em cada hum dos caldos oito, ou nove gottas de oleo de enxofre, ou aquellas que fossem necessarias para que o caldo ficasse agradavelmente azedo: não só porque este oleo incita muito o appetite do comer, & rebate a podridaõ dos humores; mas porque corrobora muito o estomago, & reprime a qualidade venenosa, como dizem graves Authores. E porque naõ ficasse por fazer cousa alguma, que pudesse aproveitar ao doente, mandei que duas vezes ao dia lhe fomentassem a teta esquerda, os sovacos, & os testiculos com hum lenimento feito de duas oitavas de oleo de Mathiolo, seis oitavas de banha de flor, & meya onça de oleo de violado: & foraõ todos estes remedios taõ bem succedidos, que por meyo delles livrou o doente da morte com grande credito da Arte, & gosto meu; & viveo depois desta cura quarenta annos, como poderaõ certificar muitos Religiosos do mesmo Convento que hoje sam vivos, & se lembraraõ deste successo.

7. Da admiravel virtude, que tem os pombos escalados postos nas solas dos pès, para affastar coraçaõ os vapores malignos, diminuir as dores de cabeça, & moderar os delirios, escrevèraõ muitos Authores. O primeiro he Romberto Dodoneu, o qual fallando dos pombos diz as seguintes palavras: Hum pombo vivo escalado pelas costas, & logo com o mesmo sangue, & a toda a pressa atado nas solas dos pès, naõ só impede que os vapores malignos subaõ à cabeça, mas chama, & attrabe para baixo os que jà tem subido a ella, & deste modo vence grandissimas dores de cabeça, & aplaca os delirios, como as experiencias o mostraraõ. O segundo Author, que tambem louva muito aos pombos para remedio dos symptomas mortaes, que costumão sobrevir às febres malignas, he Agostinho de Laurentijs, como se deixa conhecer pelas suas palavras, que saõ as seguintes: Os pombos velhos escalados, & postos nas plantas dos pès aproveitaõ grandemente aos doentes, que tem symptomas mortaes, que avexaõ o coraçaõ, & a cabeça; por quanto os ditos pombos com a sua grande quentura chamaraõ para si os humores depravados, & venenosos, que acometem o coraçaõ, & ficando elle desafogado livra do perigo.

8. O terceiro Author, que tambem acredita muito os pombos nas doenças malignas, he Joaõ Ferreira da Rosa, dizendo as palavras seguintes: Entre os remedios revulsorios, naõ he de menos utilidade o uso dos pombos abertos, & postos nas plantas dos pès com todo o seu calor natural, conservando-os tres horas, & repetindo-os & o que delles experimento he, que raras vezes se applicaõ, sem conhecer com elles muito alivio; & entendo ~q os taes pombos recebem em si muito vicio da doença, porque se tem experimentado naõ os quererem comer os cães, nem os gatos, & exhalarem de si intoleravel fedor: sendo ~q em tres horas que estaõ postos nos pès, naõ parece tempo bastante para que se levantasse nelles aquella podridaõ, senaõ recebèraõ em si os vapores pestilelentes dos humores podres, pelos quaes se dispoem em breves horas para a corrupçaõ. O quarto Author, que louva os pombos nos pès para remedio das doenças malignas, he Ricardo Morton, o qual diz as seguintes palavras: Appliquemse nas plantas dos pès dous pombos escalados daquelle infante, & se repitao outros de tres em tres horas. E pouco mais acima diz o mesmo Author: O vigor no calor dos pombos mortos daquelle infante persuade a todos os Medicos, que para attrahir o veneno se devem antepôr a todos os animaes. O quinto Author que louva os pombos para rebater os vapores malignos, he schrodero, dizendo: Hum pombo vivo partido pelo meyo, & atado nas solas dos pès enquanto está quente, he remedio convenientissimo para aplacar os frenesís, & dores de cabeça. Eu attribuo os mesmos louvores aos pombos ; porque no sobredito Religioso, & em muitos doentes outros vi que fizeraõ effeitos, que parecèraõ milagrosos: & tenho para mim que se os pombos se puzessem vivos com as barrigas depenadas, fariaõ muito melhores obras, que quando se aplicaõ mortos; porque tanto que esfriaõ, naõ aproveitaõ, porque já naõ attrahem, nem chamaõ para si o veneno.

9. Da virtude admiravel que tem o oleo de Vitriolo, & de enxofre para rebater a podridão dos humores, extinguir o ardor da febre, tirar o fastio, impedir os vomitos, confortar o estomago, & matar as lombrigas, escrevèraõ gravissimos Authores, hum dos quaes foi schrodero; diz elle, que o oleo de Vitriolo, & de enxofre tem as mesmas virtudes, & que saõ utilissimos contra a peste, & contra a astma, & para mil queixas outras.

10. Zacuto Lusitano diz, que o oleo de enxofre aproveita para os enjoamentos do estomago, & fraquezas delle, porque o conforta muito, adelgaça os humores viscosos, & grossos, que estaõ infiltrados nas tunicas do mesmo estomago; he proveitoso nos soluços, & colicas frias, abre as obstrucções do figado, & do baço, emenda a podridaõ das febres, ardentes, & a magnilidade pestilencial. Joaõ Beguino fallando sobre os oleos de Vitriolo, & de enxofre diz o seguinte: Pode dar se o oleo de Vitriolo, ou o do enxofre misturado com aguas appropriadas, ou com xaropes adequados para as doenças, de seis gottas até oito, assim nas doenças quentes, como nas frias. Minderero fallando sobre as virtudes destes oleos diz o seguinte: Naõ ha podridaõ de humores, que naõ obedeça à virtude destes oleos, nem humores tao depravados, & corruptos, que se naõ rendaõ à efficacia deste medicamento, & com toda a confiança poderei dizer, que se me prohibissem o uso destes oleos, me naõ atreveria a curar as febres malignas, & pestilentes.

11. Pela parte de fora serve qualquer destes oleos para fazer os dentes alvos esfregando-os com elles; serve para curar as feridas que procederam de gallico; serve para as verrugas das gengivas; serve para as fistulas do sesso; tem virtude quase infallivel para curar os panaricios, com tal condição, que o dedo doente se ha de meter muitas, & muitas vezes dentro em qualquer dos ditos oleos taõ quentes, que o dedo os naõ possa sofrer. A mesma virtude tem h~ulimaõ azedo assado, se nelle muito quente meterem o panaricio, como observei felicissimamente em certa senhora, ha quem visitei estando em h~ua quinta, & porque naõ tive alli qualquer dos sobreditos oleos, lhe fiz meter o dedo no limaõ assado quasi fervendo, & repetindo esse remedio muitas vezes, sarou no mesmo dia com admiraçaõ dos circunstantes. O dito oleo de Vitriolo he admiravel remedio para naõ tornar a sahir o sesso, com tal condiçaõ, que se misture com huma pouca de agua de tanchagem, & se chapeje o sesso muitas vezes com o tal licor. Os remedios que uso muitas vezes, por serem quasi infalliveis, saõ os dois seguintes. O primeiro he recolher o sesso com hum pedaço da camisa de qualquer defunto; ha algumas crianças baltou fazerse isto duas vezes, & nunca tornou a sahir. O segundo he lavar o sesso com agua cozida com cosas balaustias, murta, maçans de acipreste, & polvorizar a parte com os pòs dos escaravelhos; tambem me consta que os sumos da pelle de huma cobra, tomados por h~u funil, naõ só fazem recolher o sesso, mas tambem a madre, quãdo saem fora do seu lugar. Finalmente para curar as almorreimas inchadas, ou dolorosas, naõ se achara em toda a Arte remedio mais certo, & seguro, do que o oleo de Vitriolo, misturado com agua cozida com folhas de congorça, ou marcavala.

OBsERVAÇAM XLIII.

De hum escravo, a quem seu senhor castigou por justas razões, e porque o dito escravo naõ podia vingarse delle, se quiz matar, tomando para isso veneno, por cuja cansa teve grandes ancias de coraçaõ, suores frios, pulsos intercadentes, e lingua taõ inchada, que naõ lhe cabia na boca: neste apertado conflicto fui chamado, e achei ao dito escravo cercado com tantas agonias, que nem me pode fallar, nem dizer que veneno tomàra: lembráraõme entaõ os mais efficazes dous antidotos, que tem a Medicina para rebater qualquer sorte de veneno: o primeiro foi o oleo da semente dos nabos feito por expressaõ, do qual lhe fiz beber tres onças misturado com hum pouco de caldo de gallinha: o segundo foi o meu Cordeal Bezoartico, do qual lhe deu com cardo santo, pimpinella, e veronica, ou abrotanum fœminæ; e foi o effeito destes dous remedios taõ efficaz, que com elles escapou da morte.

1. DO mesmo modo que os pescadores andaõ perpetuamente machinando traças, inventando artificios, fabricando redes, e preparando anzoes para pescar os peixes: naõ de outra sorte o demonio (pescador das almas descuidadas) a todo o tempo, e em cada instante arma os seus laços, estende as suas redes, dispoem as cadeas, e offerece a isca para engodar, e prender os corações dos que vivem pouco acautelados, para dar com elles no inferno.

2. Desta verdade observei hum exemplo em o escravo de Pedro Luis; morador na rua do Caldeira: commetteo este escravo certo maleficio, por cuja causa mereceo que seu senhor lhe desse hum grande castigo; e como naõ pudesse vingarse delle, se enfureceo, e affanhou de maneira, que a fim de fazer damno, e perda a seu senhor, se quiz matar; e para o fazer tomou hum veneno tam presentaneo, que em braves horas chegou às portas da morte, e o assaltàraõ tam mortiferos symptomas, como saõ os que deixo referidos. Recorreo o senhor ao meu conselho: confesso ingenuamente que me vi irresoluto sobre a escolha do remedio, com que lhe avia de acudir; porque como os venenos saõ muitos, e de differentes naturezas, era necessario conhecer que qualidade tinha o que avia tomado, para lhe applicar o seu contrario; porque se o veneno fosse vegetavel, pedia hum remedio; se fosse mineral, pedia outro; e se fosse animal, outro: e como eu naõ tivesse certeza de que condiçaõ era o que tinha tomado, fiquei duvidoso qual alexipharmaco avia de preferir; porque a Cicuta pede hum antidoto; o Aconito pede outro; o Napello outro; o Ranunculo outro; a Nux metella outro; outro pede a Rubeta; outro pede o sapo; differente a Vibora; outro o cerebro do gato; outor as Cantaridas. outro o Rosalgar; a agua forte outro; outro o solimaõ; outro o Litargirio; outro o gesso. Para que pois me naõ enganasse em negocio de tanta importancia, puz grande cuidado em conhecer os sinaes distintivos de cada hum, para lhe applicar o seu contrario: porque se o veneno fosse Cicuta, teria o doente vertigens, turbações na vista, soluços, frialdade de extremos, perturbação no juizo, e adormecimento de todo o corpo; no qual caso seriaõ convenientes vomitorios de duas onças de vinho emetico, ou de tres onças de agua benedicta vigorada, usando depois disso de algumas ajudas feitas de remedios quentes; dando tambem a beber meya oitava de theriaga magna desatadas em duas onças de vinho generoso, ou caldos de gallinha cozida com pimenta, e folhas de ortelãa, e de loureiro, ou misrurados com pòs de raiz de genciana, ou de cardamomo.

3. se o veneno foffe Aconito, se conheceria, porque teria o doente picadas, e dores no estomago, tremores, convulsoẽs, suores, desmayos, inchaçaõ do corpo, e se faria todo livido, e denegrido; e neste caso devia soccorrello com vomitorios, em que misturassem pòs de raiz de aristoloquia longa, ou de genciana; ou poderia darlhe coalho de cabrito desfeito em vinagre, ou caldos bem gordos, ou boa quantidade de leite, ou triaga magna, ou o meu Bezoartico das febres malignas.

4. se o veneno fosse Napello, que entre os vegetaveis he o mais refinado, se conheceria, porque os beiços, e a lingua se aviaõ de inflammar, e inchar, e o corpo se faria todo roxo, e titubariamlhe as pernas. O seu remedio serião vomitorios, leite, manteiga de vaccas, pòs de esmeraldas, e de ambar, terra lemnia desfeita em vinho.

5. se o veneno fosse Ranunculo, se conheceria, porque o doente se faria maniaco, e alheado do juizo; teria os musculos da boca torcidos, e convulsos de tal modo, que pareceria que estava rindo; fariãoselhe chagas na lingua; e neste caso se devia acudir logo com vomitorios, e depois delles com leite, e agua-mel, e juntamente com banhos feitos de cozimento de amendoas doces, tripas de carneiro, rabos de carneiro com a sua lãa, fomentando todo o corpo, depois de sahir do banho, com unguento resumptivo, e oleo de minhocas magistral, porque deste modo se curarião as convulsoẽs presentes, e se acautelariaõ as futuras.

6. se o veneno fosse Nux metella, o conheceriamos, porque sobreviria ao doente somno, e adormecimento naõ só em todo o corpo, mas no juizo; e para isto seriaõ unico remedio os vomitorios de agua, e azeite, ajuntadolhe pòs de castoreo, e de bagas de loureiro.

7. se o veneno fosse Fungo, ou Boleto, se conheceria, porque como he muito esponjoso, incha de maneira, que aperta o estomago, e a garganta tam repentinamente, que naõ deixa respirar ao doente, e consequentemente o suffoca; e a estes symptomas se ajuntão dores de estomago, e ventre com muitos agastamentos do coraçaõ. A este tal veneno se deve acudir logo com vomitorios de oitro onças de cozimento de semente de rabãos, e endros, ajuntandolhe duas onças de oximel simplez com hum escropulo de pò de agarico, purgando depois disso com quatro onças de cozimento de hyssopo, orgevaõ, e poejos, em que deitassem de infusaõ oitava e meya de agarico trociscado, e coandose por pãno bem tapado, se ajuntassem tres onças de xarope aureo. Nem he menos efficaz remedio o vinho de Malvasia, ou qualquer outro generoso, com tal condiçaõ que em cinco onças delle misturem huma oitava de triaga magna, ou de sal de losna.

8. se o veneno fosse sapo, ou huma rãa chamada Rella, se conheceria, porque logo se seguiria huma salivaçaõ, ou ptyalismo continuo com inchaçaõ de beiços, e garganta, e sobreviriaõ ao doente, ou gonorrhea, ou tericia, ou delirio, ou bafo fedorento, ou vertigem com tremor, ou syncope; no qual caso o primeiro remedio seriaõ os vomitorios, dando depois delles triaga magna desfeita em vinho generoso, ou coalho de lebre; esfregando o corpo todo com oleo de Mathiolo. Tambem se póde usar das mesmas mezinhas para extirpar o veneno da aranha.

9. se o veneno fosse mordedura de vibora, o conheriamos, porque se prostrariaõ as forças repente, e se resfriaria o corpo todo, e se cubriria de suor frio. O remedio mais seguro, efficaz, e presentaneo deste veneno he o sal volatil das viboras, dando seis grãos delle em vinho brancos, repetindo o tal remedio de seis em seis horas, porque se ouver tardança em acudir com elle, morrerà o doente infallivelmente no espaço de quarenta horas; porque se coalharà todo o sangue, e consequentemente se suspenderà a circulaçaõ delle, donde infallivelmente se seguirá logo a morte.

10. se o veneno fosse miolos de gato, o conheceremos, porque causará loucura, e tontice. O seu remedio será o diamosco doce, e o cheiro continuo de almiscar.

11. se o veneno fosse de Cantaridas, o conheceremos, porque o doente sentirà continuos desejos de ourinar, com dores, e ardores no cano, e sahirà a ourina muito ensangoentada, e quiçà sahirà sangue puro em lugar de ourina. A cura deste achaque se sarà, dando a beber grande quantidade de leite de mulher, ou de vacca, ou qualquer outro; e em falta de todos se podem dar seis onças de oleo de amendoas doces feito sem fogo. Nem seriaõ menos efficazes as mucilagens das sementes de malvaisco, e de marmelo tiradas em agua rosada. Tambem aproveitariaõ muito as amendoadas de pevides de melaõ, e pepino, e abobora feitas em agua de beldroegas, ou de alface, e adoçadas com lambedor violado magistral, ou de papoulas; usando juntamente de ajudas de leite misturado com a agua que deitarem de si tres claras de ovo bem batidas; untando o pentem com oleo violado, e metendo ao doente em banho de agua doce cozida com malvas, violas, semente de dormideiras, e folhas de alface.

12. se o veneno fosse Rosalgar, o conheceremos, porque o doente terà grandissimas ancias do coraçaõ, dores excessivas nos intestinos, desmayos, ardores de garganta, sede inextinguivel, tosse, vomitos, cursos de sangue, e convulsaõ. Neste caso se deve acudir com remedios pingues, e oleosos, porque estes tem grandissima efficacia de rebater a acrimonia do veneno. Entre todos tem a primazia o leite de vaccas, e o oleo de amendoas doces dados em grande quantidade; em falta do leite, e do oleo servem os cremores das tisanas adoçados com boa porçaõ de xarope magistral de violas: e quando a força do veneno tenha descido do estomago para os intestinos, deitaremos repetidas de mucilagens de pevides de marmelo, sementes de malvas, e raizes de malvaisco, ou de oleo violado, e de gólsaõ, misturados com igual porçaõ de leite de vaccas.

13. se o veneno fosse agua forte, conhecellohemos, porque no mesmo instante que se beber, se apertarà a gargante de tal modo, como se fosse com huma corda; mas se acontecer que naõ suffoque logo, acudiremos ao enfermo com grande quantidade de oleo de amendoas doces tirado sem fogo, ou com grande copia de leite de vaccas, ou de cabras, mugindo daquelle instante, misturandolhe duas oitavas das minhas pilulas antifebriles, que saõ grandes absorbentes dos seus corrosivos, e austeros de agua forte: as quaes pilulas preparo por minhas mãos, e as dou aos pobres de graça; e as vendo aos ricos, que as mandaõ buscar a minha casa, por saberem que alguns boticarios pouco escrupulosos naõ só falsificaõ as ditas pilulas, mas tambem o meu Cordeal, e os meus trociscos de Fioravanto; e o peyor he, que vendem os taes remedios falsificados com o nome de que saõ os meus; mas destes enganos se dará conta na hora da morte, e se conhecerà quam pesada cousa he tirar a fama, e o credito aos bons remedios, e ao author delles: mas este vicio taõ antigo em o mundo, que já saõ Optato Melevitico (I.) se queixava delle. Balduino Ronseu (2.) estima por grande antidoto de agua forte o lambedor que se faz das mucilagens de pevides de marmelo, sementes de malvaisco, e de alquitira tirada em agua rosada, e adoçado com igual quantidade de lambedor violado, fazendo tambem gargarismos de leite misturados com este lambedor.

14. se o veneno fosse solimaõ, o conheceremos, porque que se toma, incha a lingua, e se sente na boca hum sabor de ferro, que he final proprio de todo o veneno metallico, ou arsenical: começarà a cuspir, e babar muito: a garganta se apertarà: sentirà dores, e corrosoens no ventre, e a respiraçaõ se apertarà. A todas estas effensas se deve acudir logo com vomitorios de quatro onças de manteiga, e outras quatro de azeite commum; e depois de ter bem vomitado, fartaremos ao doente de leite de vacca, ou de cabra, dandolhe finalmente a beber hũa oitava de cristal bem preparado com quatro onças de oleo de semente de nabo feito por expressaõ, ou em falta delle, o oleo de amendoas doces; porque o cristal tem maravilhosa propriedade de embeber em si todo o enxofre arsenical, e venenosos, q̃ o sominaõ tem; e por consequẽcia desfeita a uniaõ, e desatado o vinculo de taõ cruel veneno, torna o azougue a ser corrente, e assim póde sahir do corpo, sem lhe fazer mal: e porque depois veneno vomitado, e de rebatida a sua acrimonia pòde ficar alguma anxiedade no coraçaõ, aconselho que de quatro em quatro horas se dè ao doentes hum copo do meu Cordeal Bezoartico, que se reitarà na fórma seguinte. Em tres quartilhos de agua commua se cozaõ em panela de barro duas onças escorcioneira, e nesta agua coada, e espremida soltem tres oitavas do meu Bezoartico, e duas onças de arrobe de bagas de sabugueiro, q̃ para domar o veneno q̃ se tomou pela boca, e para vencer as febres pestilentes, e malignas, tem hũa virtude quasi milagrosa.

15. E se acontecer que o sal venenoso do solimaõ se naõ rebata com taõ grandes antidotos , como saõ os refetidos, recorreráõ a minha casa, onde tenho hum remedio, que excede a todos na virtude. Em quanto se applicarem os remedios necessarios, beberà o doente agua cozida com pimpinella, que he maravilhosa para refrear o veneno deleterio do solimaõ, como experimentei em certo homem, a quem sua manceba o deo para o matar; mas frustrouselhe o máo intento; porque dandolhe a beber a agua sobredita com huma oitava de cristal bem preparado escapou da morte.

16. se o veneno for Litargirio, o conheceremos, porque o doente terà suppressaõ de ourina, adstricçaõ de ventre, difficuldade na respiraçaõ, peso no estomago, e rugidos estrondosos de ventre: neste caso será o remedio vomitar, dando logo ao doente dez onças de agua de flor de laranja morna, poque he grande remedio para os venenos metallicos; deitando depois disso repetidas ajudas de hydromel; usando (em lugar de comer) de figos passados, mel, oleo fresco de amendoas doces tirado sem fogo; fomentando ultimamente o ventre, e o peito com partes iguaes de azeite, e manteiga.

17. Finalemente se o veneno fosse gesso, (que sendo muito, he capaz de matar) o conheceremos, porque o doente terà muita tosse, seccura de lingua, soluços com febre, delirio, e syncope: seria o seu remedio huma oitava de esterco de ratos, ou huma oitava de triaga magna.

18. seria cousa enfadonha referir aqui quantos generos de veneno ha, e os sinaes por onde se conhecem, e que remedios se lhes appliquem; basta dizer que da austeridade da garganta, e lingua, da inchaçaõ dos beiços, da salivaçaõ, salsugem, e humidade que sahia pela boca, vim em conhecimento que o veneno, que o escravo tinha tomado, era solimaõ, e por isso lhe dei, primeiro que tudo, hum vomitorio de dez onças de agua de flor de laranja, e logo quatro onças de oleo da semente dos nabos, e huma oitava de cristal bem preprarado, misturado tudo com outra oitava do meu Bezoartico Cordeal: e para destruir qualquer corrosividade, que o solimaõ poderia ter feito no estomago, ou nos intestinos, lhe dei a beber grande quantidade de leite de vaccas, deitandolhe repetidas ajudas delle; fazendolhe beber varias vezes no dia agua cozida com pimpinella; porque naõ he dizivel a grande virtude que o leite, e pimpinella tem contra qualquer genero de veneno corrosivo; com tal condiçaõ, que se dé a beber de quatro em quatro horas hum bom quartilho. Assim o observei com feliz successo no sobredito escravo, e em huma mulher, a quem seu marido quiz matar injustamente dandolhe veneno; e foi Deos servido que com o oleo da semente dos nabos, e com o meu Bezoartico, e cristal bem preparado os livrei da morte.

19. Quatro cousas muito importantes quero advertir aos Medicos modernos. A primeira, que em toda a suspeita de veneno, ou de algum remedio taõ prejudicial que faça effeitos de veneno, se provoque logo vomito com oito onças de agua de flor de laranja morna; ou em falta della, com seis onças de azeite commum tambem morno. (3.) A segunda cousa he, que em qualquer genero de veneno naõ deixem dormir aos doentes, e quando durmaõ, seja por pouco tempo; porque com o somno se communica o veneno mais depressa ao coraçaõ, do que no tempo da vigia. A terceira cousa he, que naõ se sangrem os avenenados; porque as sangrias fazem penetrar o veneno para as entranhas interiores muito mais cedo do que se imagina. A quarta cousa he, que acudamos com muito mayor pressa àquelles, a quem se deo veneno pela boca, do que aos que se applicou por fóra, principalmente se forem pessoas de temperamento quente, ou tiverem pulsos fortes; porque a estes se communica o veneno com impeto mais arrebatado, do que aos temperados, e fracos de faculdade. Assim o aconselha Valesio; (4.) e desta sua razaõ se deixa tambem ver, que se os venenos applicados por fóra podem matar, e communicar a sua malicia ao coraçaõ, e partes interiores; tambem os remedios cordeaes, e os confortativos applicados por fóra, poderáõ communicar as suas virtudes dentro, como já disse na minha Polyanthea nova tratado 2. cap. 110. fol. 680. num. II.

OBsERVAÇAM XLIV.

De certa mulher que àlem de ser adultera, quiz matar a criança, que clandestinamente tinha gèrado em suas entranhas.

Vi a huma mulher taõ abrazada no amor lascivo de certo homem, que pondo de

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parte a vergonha, & desprezando a mui preciosa joya da honra, & boa fama (1.) chegou a ter com elle illicitos contratos, de que se seguio sentirse prenhada; & porque o crescimento, & grossura do ventre naõ descubrisse o seu delito, quiz mover, & deitar de si a criança, fazendo grandes diligencias para isso: & como o demonio costuma escarnecer daquelles, a quem soube enganar, fez conhecer a esta desalmada mulher o crime que tinha commettido, amedrontandoa com a continua lembrança do grande risco em que estava a sua vida, se seu marido chegasse a ter noticia de tam desmarcado atrevimento. Confusa, & desesperada com o temor da morte, que tinha merecido, consultou a huma velha embusteira, perguntandolhe o que faria para mover: aconselhoulhe, que para conseguir o que desejava, naõ avia remedio mais efficaz que beber hum copo de agua forte: no mesmo instante, em que ouvio este infernal conselho, mandou comprar a dita agua, & bebeo logo hum copo della; mas naõ tanto a seu salvo, que dentro de dous instantes a naõ assaltassem dores cruelissimas de estomago, ancias de coraçaõ, & taõ grandes apertos, & suffocações na garganta, como se lha apertassem com huma corda. Neste perigo fui chamado, & chegando à vista da enferma, a achei agonizando; & perguntandolhe que queixa tinha, ou porque causa encorrèra taõ repentinamente em taõ acerrimas dores, & symptomas taõ mortaes, me referio (banhada em lagrimas) a sua barbaridade, & temerario arrojamento, pedindome pelo amor de Deos quizesse applicarlhe todos os remedios, que pudessem valerlhe em taõ arriscado perigo; porque se eu a livrasse das mãos da morte, me ficaria eternamente obrigada, pois em hum caso, em que lhe naõ hia menos que a vida temporal, & a eterna, lhe era valedor. A esta petiçaõ respondi, que se ela se contentasse que eu lhe desse remedio para naõ morrer da agua forte, que de boa vontade lho daria; mas se ella queria remedio para mover, que isso naõ faria eu, ainda que me desse o mundo inteiro. Aceitou o remedio

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que a livrasse do perigo da agua forte, & para isso lhe dei logo a beber seis onças de oleo de amendoas doces tirado sem fogo; porque tem este oleo de duas propriedades essencialmente necessarias, & proveitosas para semelhantes casos: a primeira he rebater com a sua oleosidade toda a acrimonia, & malicia corrosiva da agua forte: a segunda he expellir por vomito a materia acre, venefica, & deleteria, que a dita agua tem para que naõ rompa os intestinos.

2. Tomado que foi este remedio, se seguio logo hum copioso vomito, & por beneficio delle deitou do estomago toda a agua forte, que dentro estava; depois para abrandar a intemperança calurosa, & adurente q ficou nas entranhas, lhe dei a beber seis onças de agua de malvas misturadas com huma onça de mucilagens de pevides de marmelo tiradas em agua rosada; a que mandei ajuntar dous escropulos de margaritas preparadas, repetindo de cinco em cinco horas o tal remedio; applicando tambem muitas vezes no dia lambedor de mucilagens de marmelo, de malvas, & alquitira, misturado com igual quantidade de lambedor de violas magistral: & porque a malicia da agua forte se tinha jà communicado aos intestinos, o que conheci pelas grandes picadas que sentia por todo o ventre, lhe mandei deitar repetidas ajudas de leite de vaccas, outras de oleo de semente de nabos, outras de mucilagens de pevides de marmelo, & de raizes de malvaisco, com as quaes se retundiraõ os espiritos acrimoniosos da agua forte; dandolhe a beber, de tres em tres horas, hum copo de agua cozida com duas onças de raizes de escorcioneira machucada, a que juntava hum escropulo de aljofar preparado, & meya oitava do meu Bezoartico verdadeiro. Naõ he dizivel a promptidaõ, & grande efficacia, com que estes remedios obràraõ; porque tomadas estas ajudas, & os outros remedios acima apontados, teve tanta melhoria, que reviveo na doente a esperança da vida, de que jà naõ fazia caso; & a seu tempo pario hum filho, a quem tyrannicamente quiz dar a morte, depois

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de o aver trazido cinco meses nas entranhas.

3. Desta Observaçaõ aprendaõ, & conheçaõ as mulheres, que com Deos naõ se zomba; ( 2.) porque como nenhuma cousa se lhe póde esconder, & em tudo seja Juiz rectissimo, naõ consente (sem grande castigo) que as innocentissimas crianças se matem, & affoguem, & maliciosamente se mal payraõ; mas antes para mayor confusaõ, & afronta de semelhantes delinquentes permite muitas vezes que os maleficios execrandos se manifestem; para que quem peccou em secreto, se castigue em publico.

OBsERVAÇAM XLV.

OBsERVAÇAM XLV.

De hum mercador, a quem repentinamente assaltou huma dor de colica taõ intoleravel, que estando na fé sacramental para commungar, o naõ pode fazer; & sendo eu chamado, conheci dos grandissimos ardores; & continuos desejos de ourinar, & vomitar, das picadas da bexiga, & do adormecimento da perna direita, que a tal dor era nephritica; para cujo remedio appliquei hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, & tres ajudas feitas de cozimento de rim de vacca, misturando em cada huma, huma onça de terebinthina de beta lavada em agua de malvas, atè se fazer muito branca, com huma gema de ovo crua; metendo depois disto ao doente em hum banho de agua, q̃ primeiro fosse cozida com hum arratel de amendoas doces bem pizadas; & foraõ estes remedios taõ maravilhosamente succedidos, que dentro de quatro horas deitou muitas pedras redondas do tamanho de grãos de pimenta, & no mesmo dia se tiràraõ as dores, & ficou saõ.

I. Asim como no tempo da Primavera vemos nos campos tanta variedade de ervas, flores, & boninas, das quaes humas differem das outras pela diversidade das cores; outras pelo cheiro; & fragrancia; outras pelo feitio, outras pela altura, & corpulencia : nos bosques observamos tanta differença de arvores, jà os robustos carvalhos, jà as sombrias fayas, jà os nodosos zimbros, jà os levantados, & flexiveis choupos, jà os sempre verdes pinheiros, jà os agudos ciprestes, & outras diferentes arvores; hũas taõ pequenas, & rasteiras que tocaõ em o chaõ; outras taõ altas, & sublimes que se escondem entre as nuvens; humas se estimaõ pelas raizes, outras pela casca, outras pelas folhas, outras pelas flores, & outras pelos frutos: mas se em taõ vistosa, & deleitavel amenidade dos olhos, & risonha verdura dos prados descarrega sobre ellas o machado, ou a fouce cortadora, & se queimaõ no fogo, jà naõ tem differença alguma; mas todas, grandes, & pequenas, agradaveis, & despreziveis, cheirosas, & fedorentas, levantadas, & rasteíras acabaõ na mesma fortuna, & igualdade.

2. Naõ de outra sorte os homens semelhantes às flores, & às arvores, em quanto tem forças, & lograõ saude, differem entre si na fortaleza, & saõ desiguaes no valor, na constancia, & no respeito; mas tanto que alguma doença os aperta, ou a morte os assalta, logo todos, valentes, & covardes, robustos, & fracos, altivos, & humildes, illustres, & mecanicos, ficaõ iguaes em tudo, porque para a morte, & para a doença nenhuma diferença ha entre a purpura, & o sayal, nem entre a coroa, & a enxada, nem entre o rico, & o pobre, nem entre o senhor, & o escravo, nem entre o Rey, & o vassalo; & este mesmo effeito, que a morte faz igualando o soberano com o humilde, fazem as doenças entre os robustos, & os fracos, como mostrarei no seguinte caso.

3. Hum mercador de Lisboa, chamado Antonio simões Lopo, sendo de idade de cincoenta annos, & hum dos mais robustos homens do seu tempo, na madrugada de vinte & tres de Julho de 1664. se levantou da cama para se ir confessar, & estando jà na mesa sacramental, o assaltou huma dor de barriga taõ excessivamente sivamente grande, que naõ pode commungar, & recolhendose para sua casa, o apertàraõ as dores de maneira, que como se estivesse doudo, ou furioso se vinha despindo, & descalsando pelas ruas. Neste lastimoso aperto fui chamado, & achei ao doente taõ fraco, temeroso, & prostrado de animo, que naõ só me deixou admirado, mas obrigado a lhe perguntasse aonde estava o seu esforço de Hercules, a sua fortaleza de samsaõ, & a sua valentia de Gedeaõ. Ao que respondeo, que naõ me admirasse de o ver taõ rendido, & desalentado, pois sabia que as doenças, & as dores tinhaõ os mesmos poderes que a morte; & assim como esta naõ rsepeita pessoas, nem dignidades, tambem aquellas naõ perdoaõ aos valentes, nem aos fracos; antes medem igualmente a todos; & por isso naõ devia admirarme de o ver sem nenhum alento à vista do muito que padecia.

4. Considerando pois o pulso, o achei sem febre; & postoque se queixava de dores, que a seu parecer eraõ de colica; comtudo pezando eu muito attentamente os sinaes de taõ terriveis dores, conheci que mais eraõ nephriticas, que de colica ordinaria: por que postoque pela muita connexaõ, que o rim direito tem com o intestino Colon, & o esquerdo com o Cego, & ambos com o estomago, se confundaõ muito a dor de colica, & a nephritica, porque em ambas se achaõ os mesmos symptomas, como saõ vontades de vomitar, adstricçaõ de ventre, ardores de ourina, desejos continuos de ourinar; nem por isso duvidei que as dores presentes eraõ verdadeiramente nephriticas, primeiramente, porque o enfermo era queixoso de pedra: segundariamente; porque a dor começàra dos lombos, & viera caminhando para o ventre: terceiramente; porque persistia fixa no mesmo lugar; quarta; porque o decubito sobre a parte queixosa era mais intoleravel: o que tudo succede pelo contrario na dor puramente de colica.

5. Huma duvida faltava só para averiguar, se estas dores nephriticas procediaõ de lympha mais acre ou mais crassa, ou se de areas, ou pedras.

6. A esta pergunta nem os praticos mais experimentados daraõ reposta com certeza; pois a juizo de graves Authores, (1.) os sinaes da colica nephritica, & da que só he pura colica, saõ mui parecidos, & semelhantes: comtudo poderei afirmar que mais facilmente se curaõ as dores, que procedem da lympha mais acre, ou mais crassa, que as que procedem de pedras, ou areas.

7. Entendi pois com Valesio, (2.) que naõ errava (fosse a causa qual fosse) começando a cura por huma ajuda feita de cozimento de malvas, violas, ameixas, ortigas mortas, & farelos lavados, com duas onças de oleo violado, & outras duas de lambedor de violas, & meya onça de diaprunis. Com este remedio obrou copiosamente, mas sem alivio; por isso me pareceo preparar outra ajuda, que em semelhantes casos costuma obrar por modo de milagre. Mandei fazer em talhadinhas hum rim de vacca, & que o cozessem em huma panela de barro com huma maõ cheya de malvas, outra de ornigas mortas, outra de alfavaca de cobra, & em cinco onças deste cozimento mandei desatar huma onça de terebinchina de beta lavada em tantas aguas de malvas, atè que se faça taõ branca como neve; & com huma gema de ovo, & duas onças de lambedor de violas se deite esta ajuda morna; & com ella sentio tanto alivio, que me resolvi a repetilla muitas vezes, na esperança de que só ellas bastassem para acabar de vencer a enfermidade: mas vendo que os desejos de vomitar, & os mais symptomas perseveravão, me resolvi a darlhe com toda a confiança tres onças de agua benedicta vigorada, que costuma obrar prodigiosamente nestas dores, como tenho experimentado infinitas vezes no discurso de muitos annos; & sem embargo que o enfermo evacuou copiosamente por ambas as vias, nem por isso as dores cedèraõ da sua crueldade; & desta grande resistencia vim a entender que procediaõ de pedra, porque era de crer que se procedessem só da lympha grossa sa, ou acre, já estariaõ extinctas com a virtude, & efficacia dos vomitorios, & mais remedios, que se tinhaõ applicado: resolvime pois a laxar as vias por onde aviaõ de sahir as pedras, & para este fim lhe mandei preparar o seguinte banho. Tomai de amendoas doces piladas, & muito bem pizadas, hum arratel, de alfavaca de cobra dous molhos, tudo se coza com dous almudes de agua, até que receba em si a virtude das sobreditas cousas; & deitandose a tal agua em hũa tina, ou bacia grande, mandei misturar com ella tanta quantidade de agua fria, quanta fosse necessaria para que toda ficasse mais que morna, & no tal banho mandei meter ao enfermo por espaço de tres quartos de hora; com o qual remedio se lhe abriraõ de sorte as veas emulgentes, & se suavizàraõ as dores espasmodicas, ou convulsivas, que apertavaõ as vias, que facilmente lançou grande quantidade de pedras, das quaes humas eraõ mayores que grãos de pimenta, outras eraõ como cabeças de alfinetes; & no mesmo dia se achou o dito homem restituido à sua perfeita saude.

8. Quatro cousas quero advertir aos que forem tentados de colicas nephriticas, ou costumados a gerar pedras, ou areas, para naõ as tornarem a criar. A primeira he, que naõ comão presunto, nem queijo, nem manteiga em sua vida, porque todas estas cousas saõ o pay, & a mãy desta enfermidade, como me consta de varias observações, que fiz em muitas pessoas, que sendo perseguidas de pedras, & areas, não as tiverão, depois que evitárão estas iguarias.

9. A segunda cousa he, que não durmaõ de costas, nem em cama de muitos colchões, nem com jubões, ou coletes de lãa, nem de linho, ainda que seja nas noites mais frias do inverno, porque só por esta causa se enchèraõ de pedras alguns homens que nunca as criàraõ em sua vida.

10. A terceira cousa he, que quando tomarem algum banho, ou semicupio estando no actual accidente, para alargar as veas ureteras, ou as emulgentes, & facilitar a sahida da pedra, se fará o tal banho de cozimento daquellas ervas, que tiverem virtude, & propriedade de abrir as vias, & provocar as ourinas, como saõ rabãos, pimpinella, alfavaca de cobra, amendoas doces, malvaisco, linhaça gallega, & boa quantidade de azeite; & que a agua do tal banho seja mais quente do que costuma ser a dos que se applicão para curar as febres lentas, ou para os maniacos, & hypocondriacos, porque para estes devem os banhos ser de agua tibia; mas para deitar as pedras, & laxar as vias, devem os banhos constar de agua mais quente, como tenho observado naõ só neste doente; mas em Lucas Rodriguez, fundidor de finos, em Domingas Ferreira Lopa, mulher de Francisco Curvo, contratador de ferro, no Capitaõ Francisco de Albuquerque, & em outros que deixo de referir, por escusar enfado aos Leitores.

11. A quarta cousa he, que se algum dia o doente tiver taõ grandes dores, ou ardores de ourina, que sirvaõ de impedimento para ourinar, se dem logo ao doente tres grãos de laudano opiado feitos em huma pilula; porque succede muitas vezes que mitigada a dor pela virtude narcotica do laudano, ourinão, & deitaõ as pedras.

12. E porque estou vendo, que aos Medicos novatos ha de parecer erro aconselhar eu, que dem laudano opiado aos que tiverem dores de pedra, ou de areas taõ excessivas, que as naõ possaõ deitar, por quanto o laudano reprime, & fecha, quando neste caso convem abrir, & laxar; respondo que bem sei, que o laudano não tem virtude para fazer sahir a pedra ; mas que o mando dar, porque como a dor por sua vehemencia estimula a bexiga, & o seu sphincter, & elles irritados, & escandalizados se encolhem, convellem, & apertaõ, por isso não pòde sahir a pedra; mas tirada a dor por virtude do laudano, cessaõ os encolhimentos, & convulsões da bexiga, & consecutivaménte fica lugar para a pedra sahir, principalmente se a ajudarem com algũ remedio especifico, como he hum que eu tenho, & com que livrei a muitos da morte, & o poderàõ examinar os curiosos na minha Polyanthea nova, no trat. 2. cap. 81. fol. 509. do num. 36. atè 42.

13. A quinta cousa que quero advertir aos que padecem achaque de rins, ou bexiga, ou gotta, he que para se preservarem de taõ terriveis males, tomem, ao menos duas vezes no anno, hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, porque se a tomarem, & forem moderados em comer, & beber, & naõ beberem vinho, tenhaõ por certo que se livraráõ de semelhante tormento: assim o asseguraõ graves Authores, & sobre todos Mangeto, (3.) o qual fallando da virtude que tem os vomitorios de agua benedicta, tomada duas vezes no anno, para os gottosos, & o mesmo será para a pedra, & achaques da bexiga, diz as seguintes palavras: Aquelles a quem naõ for mui difficultoso o vomitar, se nas primaveras, & outonos, antes de lhes dar o accidente da gotta, usam da agua benedicia, rarissimas vezes, ou nunca seraõ assaltados do dito mal, & deste modo se podem preservar seguramente, como sejaõ bem regrados.

OBsERVAÇAM XLVI.

De hum enfermo, que tendo grandes dores no ventre, entendeo que era huma colica, que costumava ter muitas vezes, porèm vendo que naõ lhe aproveitavaõ os remedios, que em semelhantes dores lhe tinhaõ valido, me fez chamar, applicandolhe eu os mais efficazes remedios da Arte, sem colher fruto delles, conheci que as taes dores eraõ I&&tericas, chamadas por outro nome Pi&&tonicas; como para ellas naõ aja remedio mais efficaz (depois de algumas sangrias, da tintura das rosas) que o leite de burra, lho fiz tomar noventa dias successivos; com o qual remedio, digno de todo louvor, sarou radicalmente.

I. Acertar sempre, & nunca errar, he felicidade muy alheya da capacidade, & entendimento humano: & sendo isto assim, como já o disse Galeno, (I.) nenhuma razão tem os que condemnaõ aos Medicos, porque naõ livraõ da morte a todos os doentes, ou porque se enganaõ algumas vezes no conhecimento das doenças; pois ha alguas, que sendo entre si mui differentes, tem sinaes taõ semelhantes que não he facil distinguillas. Que Medico averà, que vendo a hum homem com grandes dores no ventre, com desejos continuos de vomitar, & cursar, & costumado a padecer dores de colica, naõ entenda que o tal homem tem as mesmas dores, & que como taes se devem curar? Porèm a experiencia mostra cada dia que os juizos dos homens saõ muitas vezes errados, & que os sinaes das doenças nem sempre saõ taõ infalliveis, que ajamos de estar por elles, como se fossem pontos de fe; porque conheci a muitos, que tendo dores, que representavaõ ser de colica, mostrou a experiencia que naõ eraõ, pois se naõ tiravão com os remedios; com que se costumaõ tirar; donde constou que as taes dores procediaõ de outra causa, & pediaõ outro remedio, como pelo seguinte caso farci manifesto.

2. simaõ Dias, official de liteiras, & morador no Rocio, teve em dezoito de Fevereiro de 1681. humas dores de ventre taõ acerrimas, que pareciaõ lhe atravessavaõ as entranhas com hum punhal; & como o dito homem tinha padecido algumas vezes dores de colica, & na presente occasiaõ lhe naõ faltassem aquelles mesmos symptomas, que as costumaõ acompanhar, entendeo que com os mesmos remedios se devia curar, & por isso usou logo de meter os pès em hum banho de agua taõ quente, que mal podia sofrella; porèm como lhe naõ aproveitasse tanto como muitas vezes tinha experimentado, usou de huma cabeça de alhos assada, atada sobre o embigo; & porque não teve alivio com ella, mandou fregir humas folhas de erva santa verde em banha de flor, & com aquelle oleo quente fomentou toda a barriga; nas de balde; recorreo para o oleo de macella fervido com huma pelle

Observaçaõ XLVI

de cobra, de que algumas vezes tinha usado com presentanea utilidade; finalmente appellou para hua ajuda de seis onças de ourina de menino, da qual sempre conheceo grande proveito. Mas como não conseguisse alivio, se atemorizou muito, porque tinha ouvido dizer que se as taes dores de colica perfeveraraõ muitos dias, se traspunhaõ as materias, que estavaõ no ventre, para as partes nervosas da espinal medulla, & degenerevaõ em parlesias espurias, que faõ difficultosissimas de curar: & como assentou que isso era verdade, desejou achar a hum. Hippocrates, ou a hum Esculapio para que o curasse; mas como isto era impossivel, se valeo de mim, porque o tinha jà curado algumas vezes como prosperos successos, & chegando eu à vista do enfermo, o achei muito afflicto, & proferindo lastimosas magoas causadas do grande tormento, que padecia; animey-o quando pude, & para que cobrasse valor, lhe apertei a mão direita, dizendolhe que não desfalecesse, porque da minha parte poria grande empenho para que a dor se vencesse brevemente; nem desconfiasse que avia de ter fraude, porque era robusto, & que nada era impossivel aos que tinhaõ natureza forte; (2.) Nature fortis mayormente quando elle sabia que eu tinha já curado doenças mais perigoas que a sua, àlem de que ainda eu lhe naõ tinha applicado os remedios mais efficazes da Medicina; por tanto, que eu naõ podia levar em paciencia vello taõ desmayado, quando elle devia entender que nem me faltava industria, nem diligencia para indagar os remedios mais especificos com q vencer hua doença. que tomei a meu cargo Delibeireime pois a começar a cura, dandolhe a seguinte purga, que para este caso he quafi milagrosa Mandei que em quatro onças de amendoada feira de pevides de melaõ, & de amendoas doces, fe desfizessem três onças de bom mannà, & três de oleo do amendoas doces tirados fem fogo, & que tomasse este remedio porque nelle afiançava a sua faude, como eu tinha observado muitas vezes em semelhantes casos. Porèm quando cuidei cantar a vitoria, fe exasperou a dor de tal maneira, q lhe temi a ultima ruina. Nesste aperto me lembrou que algumas vezes metinhaõ aproveitado muito as ajudas de caldo de gallo velho cozido com huma onça de semente de carthamo machucado, a que ajuntei huma onça de terebinthina de beta desatada de tres onças de oleo de amendoas doces, huma gema de ovo, & seis oitavas de diaphenicaõ: mas pondo em execuçaõ o tal remedio, naõ correspondeo o effeito ao desejo, porque continuàraõ as dores do mesmo modo: appellei logo (como para huma ancora sagrada) para os banhos de agua doce cozida com dous arrateis de amedoas bem pizadas; & nem assim conheceo melhoria: perguntei entaõ ao doente se era sujeito a ventosidades, ou costumado a ter roncos, ou rugidos no ventre, porque era mui factivel que tam teimosas dores procedessem de alguns flatos, ou aura maligna reprezada na cavidade dos intestinos. A esta pergunta respondeo que muitas vezes avia sentido os taes rugidos. Daqui tomei confiança para deitarlhe sobre o embigo huma ventosa de boca larga, & com muito fogo; porque confessa Galeno (3.) que nas dores flatuosas obra o tal remedio por modo de encantamento; com tal condiçaõ, que o enfermo naõ tenha febre, nem affecto inflammatorio, & esteja ao menos mediocremente evacuado. Mas (oh esperanças humanas como sois enganosas, & caducas !) cresceraõ as dores com a ventossa, quando eu esperava se desvanecessem totalmente com ella. Naõ foi pequena a desconfiança que tive, vendo malogrados os remedios, com que tinha curado a muitos de semelhantes queixas; mas porque naõ era justo desamparar ao affligido enfermo, cheguei aos remedios exteriores mais efficazes, como saõ o redenho de carneiro morto daquelle instante; o leite de cabras quente, em que ensopei humas vezes huma meada de linho, outras vezes hum paõ tirado do forno, usando outras vezes das folhas do meimendro levemente cozidas em leite, & pizadas com igual quantidade de unguento populeaõ, & unto; finalmente appellei para huma bexiga de vacca cheya de leite cozido com macella, coroa de Rey, alforvas, linhaça gallega, a que ajuntei duas colheres de mel: mas como nem este remedio, sendo quasi milagroso, posto repetidas vezes sobre a dor, aproveitasse cousa alguma, entendi que as taes dores naõ eraõ colicas, nem estavaõ no intestino Colon, nem na cavidade dos outros intestinos, porque se o fossem, ou estivessem nelles, com qualquer dos sobreditos remedios se averia tirado; mas entendi que estavaõ no peritoneo, ou nas membranas, que contem o estomago, & partes do ventre; o que conheci, porque as taes dores eraõ mais vehementes, & continuas, & nem se tiravaõ com os remedios interiormente applicados, nem com as formentações exteriormente postas, nem se abrandavaõ com as ajudas purgativas, nem com as anodynas, nem com as carminantes, nem com os estupefacientes, ou narcoticas, (4.) nem com outros medicamentos, com que as colicas ordinarias se costumaõ tirar. E se me perguntarem porque razaõ estas dores saõ tam rebeldes, que zombaõ dos remedios, que curaõ as colicas; direi que as taes dores pela mayor parte costumaõ sobrevir às febres diuturnas, & a outras enfermidades biliosas, nas quaes a natureza por modo de crises depoem os humores maos do do fel, ou do mesenterio, ou das veas para o ventre; & como os taes humores naõ achem passagem franca, & caminho desempedido para sahirem do corpo, arroja-os a natureza para as tunicas, & membranas da espinal medulla, & ahi fazm dores (como diz Borrichio) (5.) mais crueis & sensitivas que as de colica ordinaria, & tanto duraõ algumas vezes, atè que degeneraõ em parlesias espurias.

3. Como pois eu lhe applicasse quantos remedios se podiaõ fazer sem conseguir alivio; entendi que a dor era colica notha, ou espuria, de materia biliosa, acre, & caustica, embebida na substancia das membranas, nervos, ou tunicas, dos quaes lugares naõ podia tirarse com purgas, nem com sangrias, nem com ajudas, ventosas, cauterios, emplastros, nem com cisura de ferro, nem brandura de oleos; mas somente com o uso do leite de burras tomado em jejum noventa dias continuos, começando de seis onças, & augmentando de dia em dia a quantidade, até chegar a quartilho & meyo; porque naõ se póde dizer, nem encarecer quantas utilidades tenho visto desre remedio, assim para tirar semelhates colicas ietericas, como para curar rheumatismos, hydropesias tympaniticas, gottas artheticas, parlasias espurias, febres heeticas, comichões importunas, & para mil achaques outros procedidos de intemperança quente, & secca; com tal condiçaõ que o dito leite se ha de continuar tres meses em jejum, & em quantidade de hum quartilho, ou quartilho & meyo.

4. Deilhe pois o leite noventa dias pela manhãa em jejum, ordenando que não comesse, nem bebesse cousa alguma até passarem quatro horas, porque de outra sorte se corrompe, & causa damno em lugar de proveito: mandeilhe tambem que todas as noites tomasse huma ajuda de leite de burra, ou em falta delle, de cabras; porque de telhas abaixo, naõ ha remedio q tanto aproveite nesta casta de dores, como he o leite.

5. Finalmente lhe aconselhei que naõ tivesse ira, nem tristeza: ira naõ; porque move a colera: tristeza naõ; porque mortifica o calor natural, impede os cozimentos, & dissolve os espiritos. Observada finalmente esta regra com toda a exacçaõ, consegio o sobredito enfermo a perfeitissima saude que desejava.

6. Quiz escrever estas cousas m serviço dos Medicos principiantes, porque se algum dia lhes chegarem às mãos semelhantes doenças, possão usar do leite com toda a confiança, porque (fora de vaidade) posso assegurar que vi muitos enfermos dos sobreditos achaques que tomàraõ suores, caldas, banhos de mosto, & de bagaço, purgas, & apozemas, xaropes, & pilulas, & peyoràraõ de forte, que entendi aviaõ errado o caminho da cura, pois applicaraõ remedios quentes, & seccos, avendo de ser frios, & humidos, como he o leite. Nem me sahio errado o discurso; porque com elle restitui a saude ao Licenciado Joseph Pereira, morador na Confeitaria; ao Padre Joseph das Neves, Cappellaõ de sua Magestade; ao Capitaõ Joaõ Ramalho, morador à Boa Vista na entrada da rua da silva ; a Domingos Affonso, mercador de taboado, & morador na rua da Ametade; a Antonia de Pontes, mulher de Manoel da silva, morador á Boa Vista na rua de salvador Correa; a Manoel do Tojal, morador ao Hospital das Chagas; a Francisco da Costa, piloto da carreira da India, morador no adro do saõ Miguel de Alfama; a Luis Teixeira, criado do Eminentissimo senhor Cardeal de sousa; & a outras muitas pessoas, que deixo de referir, porque entendo que para confirmaçaõ da verdade sobejaõ estas testimunhas, as quaes se forem perguntadas, diraõ que com o leite de burra faràraõ huns de crueis rheumatismos; outros de colicas biliosas, outros de parlesias espurias; outros de hydropesias tympaniticas; & outros de varias enfermidades, que deixo de apontar por naõ ser enfadoso aos Leitores.

OBsERVAÇAM XLVII

De huma suppressaõ de meses muito antiga, por cuja causa sa certa mulher padeceo dores acerrimas em todo o ventre, costas, cabeça, & braços; ao que se ajuntou hum cruelissimo fastio: mas todas estas queixas se vencèraõ cèraõ, adelgaçandolhe os humores, purgando os, abrindolhe brindolhe as oppilações, & irritando o preguiçoso movimento vimento do sangue.

1. COnheci a huma mulher moça, que tendo do vinte annos de idade, lhe naõ baixava o sangue mensal, & por esta causa naõ tinha saude, mas perpetuamente se queixava humas vezes de acerrimas rimas dores de cabeça; outras vezes de picadas insofriveis friveis no ventre; outras vezes de insoportaveis tormentos mentos nas costas, de excessivo fastio, & de mil symptomas tomas outros, a que estaõ sujeitas, as que naõ pagaõ pontualmente o tributo lunar de cada mes: assim o diz Hippocrates, (I.) & assim o vejo cada dia.

2. sendo pois eu chamado para curar a esta enferma ma, considerei que a total suppressaõ do sangue mensal sal de nenhuma outra cousa podia succederr, senaõ por grossura dos humores, ou por aperto dos caminhos, ou por algum tumor, ou mà disposiçaõ do figado, ou do baço, ou do mesenterio; & como para fazer a cura ra com acerto, he necessario conhecer primeiro de qual impedimento destes procedia a sobredita suppressaõ pressaõ, para applicar os remedios competentes a ella; mandei que tirado o travesseiro, se deitasse de costas, & encolhesse medianamente as pernas, para que ficando cando o corpo bambo pudesse apalpar com as minhas mãos o estomago, a regiaõ do ventre, & os hypocondrios drios, para assim conhecer se alguma parte destas estava va dolorosa, dura, inflammada, ou scirrhosa, porque sem perfeito conhecimento da causa naõ só seriaõ inuteis teis os remedios, mas poderiaõ ser damnosos; & assim sim fazendo as minhas mãos o officio dos olhos, palpei pei naõ só os hypocondrios direito, & esquerdo, mas toda a regiaõ do ventre, a qual achei taõ dura, & retezada zada, que seria ignorancia duvidar que aquella era a occasiaõ, & a total origem das queixas que padecia, & da falta de sangue mensal, que experimentava, & que a cura se avia de começar tirando primeiro a dureza reza, & para isso a mandei sangrar quatro vezes nos pès, dandolhe depois disso, seis dias successivos, os seguintes xaropes, para adelgaçar, & incindir os humores mores, & fazellos capazes para obedecerem à virtude de da purga, & dos mais remedios necessarios. Tomem mem de uvas passadas sem grainha huma onça, de folhas lhas de douradinha, de avenca, & de fumaria, de cada da cousa destas hum punhado, com doze folhas de erva cidreira, & quatro cabeças de ouregãos se coza tudo em panela de barro com tres quartilhos de agua commua, & a cada cinco onças deste cozimento coado mandei ajuntar huma onça de lambedor de avenca ca, & outra de oximel simpez. Tomados os ditos xaropes ropes, purguei a doente com huma onça de xarope Rey, & duas oitavas dos meus trociscos de Fioravanto to subtilissimamente polvorizados, misturando tudo com tres onças de caldo de frangaõ.

3. Purgada que foi dita enferma, lhe receitei as seguintes quatro apozemas, que tomou dous dias successivos cessivos pelas manhãas em jejum, & às noites quatro horas antes de cear. Tomai de cascas de raizes de funcho cho, de salsa das hortas, de espargo, & de soldanella, de cada cousa destas huma onça, de, entrecasca de tamargueira margueira seis oitavas, de folhas de acenca, & de douradinha radinha, de cada cousa destas huma maõ cheya, de folhas lhas de erva cidreira, & de artemija, de cada cousa destas tas huma duzia, tudo se coza em panela de barro conforme forme os preceitos da Arte, com quatro quartilhos de agua da fonte, & neste cozimento mandei deitar de infusaõ seis onças de conserva Persica, meya onça de folhas de sene de Lapata, meya oitava de erva doce ce, & coandose tudo, mandei desatar neste cozimento to cinco oitavas de trociscos de Fioravanto feitos em pò subtilissimo, & desta bebida bem vascolejada mandei dei tomar cinco onças em jejum, & outras cinco ao sol posto. Acabado de tomar este remedio, lhe dei quinze dias successivos as pilulas seguintes.

4. Tomem de galbano, opoponaco, sagapeno, myrrha, & ammoniaco, de cada goma destas tres oitavas tavas, tudo se faça em bocadinhos, & se deite de infusaõ saõ em vinagre branco por tempo de tres dias, & no fim delles se ponhaõ as ditas gomas a ferver com fogo moderado, para que as taes gomas se soltem, & adelgacem gacem, & entaõ se coem por panno de linho; ponhaõse se logo sobre fogo brando duas onças de terebinthina na de beta, & entaõ brandamente, atè que chegue a ponto de quebrar, & como assim estiver, se tire o vaso da terebinthina do lume, & lhe misturem hũa onça de mel, & se và tudo mexendo, atè que se va esfriando, & então lhe misturem as sobreditas gomas com huma onça de pò de azevre succotrino, doze oitavas de crocus cus martis aperitivo alcoholizadissimo, cinco oitavas de pò subtilissimo de folhas de sene, & huma oitava de pò de erva doce, & de todas estas cousas bem misturadas das, & unidas se formem pilulas, das quaes lhe dei oitava tava, & meya por cada vez; porque naõ só tem grande de virtude para provocar as conjunções mensaes, mas para desfazer todas as durezas, & caroços do corpo em qualquer parte que estejaõ; com tal condiçaõ, que se appliquem depois do corpo bem purgado, & se continuem tinuem vinte & cinco dias. Ao imperio de taõ grandes pilulas obedeceo a dureza taõ promptamente, que cuidei podia cantar a vitoria; mas naõ succedeo como eu esperava, porque quando cuidei que tivesse hum copioso fluxo de sangue mensal, vieraõ somente algumas gumas mostras delle.

5. Desta falta vim a suspeitar que avia ainda aguma ma obstrucção, ou dureza em parte tão remota, & profunda, que os medicamentos, por mais admiraveis veis, & efficazes que eraõ, não puderão chegar a ella, & por esta razão me pareceo necessario ajudar a natureza reza exteriormente com a seguinte fomentaçaõ, que he efficacissima para desfazer durezas, & adelgaçar as phlegmas, & humores lymphaticos, que por grossos sos se naõ circulão, ou porque se não circulão, se engrossaõ grossaõ, & reprezão, & fazem naõ só faltas de meses, mas tumores, caroços, & alporcas.

6. Tomai de flores de enxofre duas oitavas, de oleo de nozes quartilho & meyo, metei estas duas cousas sas em huma garrafa de vidro, & enterrai a tal garrafa fa atè o meyo em area, que estarà em huma tigela de fogo, & pondoa sobre lume brando, a deixareis estar tar em digestaõ, atè que o oleo se faça vermelho, & coandose o dito oleo por panno bem tapado, deitareis dentro nelle huma onça de raiz de losna, outra de engos gos, & outra de raiz de norça, com meya onça de folhas lhas de agriões, feito tudo primeiro em talhadinhas delgadas; & então tornai a ferver o dito oleo atè que receba a virtude das ervas, & coandose se guarde como mo remedio maravilhoso para fomentar o ventre largos gos meses.

7. Não foi pequeno o fruto que consegui com esta fomentaçaõ muitos meses continhada, porque quando do chegou o tempo de vir o sangue mensal, baixou copiosamente piosamente, postoque tão delgado, & descorado, que entendi ficava ainda alguma obstrucção, ou dureza nas partes mais centraes, & veas capillares do mesenterio terio, & para abrir estas, lhe fiz tomar o seguinte remedio medio, de que sempre fiz grande estimação.

8. Tomem de vinho branco muito bom tres quartilhos tilhos, de crocus martis feito sem fogo, nem menstruo truo corrosivo, mas bem subtilizado, tres onças, de canela finissima machucada duas oitavas, de assucar branco quatro onças, tudo semeta dentro em huma redoma de vidro por vinte e quatro horas, & passadas das ellas, dei cada dia à sobredita enferma duas onças & meya desa infusaõ clarissima, estando em jejum, & outras tantas dei à noite, duas horas antes de cear, ordenando denando aos enfermeiros que repetissem este remedio dio por vinte dias; porque como a tal obstrucçaõ procede de humores grossos, & melancolicos, era necessario cessario continuar muito tempo com a dita medicina, para vencer o mal, porque de outra sorte ficaria a enferma ferma com a doença, o Medico sem credito, & a Arte te com afronta. Deilhe pois esta infusaõ com tão feliz successo, que antes de vinte dias lhe baixou o sangue em grande quantidade, & e com boa cor, & daquelle dia por diante logrou perfeitissima saude.

9. Poucas são as mulheres faltas de conjunção, a quem não aproveitassem muito os remedios sobreditos tos: mas assim como a mesma terra não produz todas as cousas, porque huma he boa para vinhas, outra para olivaes, & outra para sementeiras, (2.) da mesma ma sorte nem o mesmo remedio (postoque seja excellentissimo) lentissimo) costuma aproveitar igualmente a todos. Pelo que advirtão os senhores Medicos modernos, que se algum dia lhes succeder que applicando as medicinas dicinas sobreditas não baixar o sangue mensal, entendão dão que isto succede, ou porque o tal sangue erradamente mas, ou para os narizes, ou para a boca, & neste caso deve ve o Medico empenharse muito, para q o dito sangue torne a buscar o seu caminho natural; ou porque o corpo està tão fraco, & exhausto de substancia, que não póde dar o sangue, de que necessita para sua conservação servação, & neste caso se não deve applicar remedio algum; ou porque finalmente o sangue mensal està como mo massa asma falto de fermento irritativo, que o excite cite, & mova para sahir fóra; & isto se conhece, poruqe a mulher sentirà dores de costas, de ventre, & de cabeça ça, a que se ajuntaraõ fastio, vomitos, & enjoamentos, & então se ha de pertender que aquella preguiça, ou esquecimento quecimento narcotico do sangue se tire, dando para isso so algum estimulo, que o irrite, & o faça fahir, & postoque toque para este intento aconselhem os Doutores muitos tos remedios, eu ensinarei tres, de que tenho visto effeitos feitos tão maravilhosos, que me naõ deixarão jà mais envergonhado.

10. O primeiro he feito de seis onças de caldo de grãos pardos, em que mando soltar meya oitava de pò de raiz de parreira brava, chamada raiz de butua, continuando estes caldos doze dias.

11. O segundo remedio se prepara de nove folhas lhas de erva montãa, molhadas em hum polme de farinha rinha de trigo, à maneira de quem freje peixe, & fervidas vidas em azeita de gergelim, se passaõ por mel de enxame xame novo, & se tomão nove dias em jejum.

12. O terceiro se faz do modo seguinte. Tomem de sangue de pombos secco à sombra huma onça, de semente de ningela outra onça, de cascas das raizes de rubia tinctorum meya onça, de bagas de loureiro tres oitavas; todas estas cousas se façaõ em pò subtil, & com o que for necessario de xarope de artemija se formem mem pilulas, das quaes se póde dar huma oitava cada da vez, continuando com este remedio nove dias successivos cessivos; advertindo duas cousas: a primeira, que para qual quer destes remedios fazer os prodigios que costuma tuma, se deve applicar depois do corpo bem evacuado do: a segunda, que se a mulher o não puder tomar em fórma de pilulas, se póde desfazer em duas onças de vinho branco muito delgado, porque tambem dando-o do-o assim, obrarà maravilhosamente.

13. No mesmo tempo, em que estou escrevendo esta Observaçaõ, tenho entre mãos a huma mulher tão difficultosa na purgação dos meses, que naõ obedece dece aos remedios, por mais efficazes que sejõ.

14. Neste aperto lhe dei o lambedor seguinte, o qual lhe aproveitou de maneira, que me obriga o escrupulo crupulo da consciencia a escrevello aqui para utilidade de publica, & se faz do modo seguinte.

15. Tomem de canela muto fina duas oitavas, de cravo da India huma oitava, de erva doce oitava & meya, de zedoaria, & de semente de bisnaga, de cada da cousa destas hũa oitava, de bagas de louro, & folhas de erva montãa, de cada cousa destas duas oitavas, tudo do se faça em pò grosso, & em huma redoma de vidro com hum quartilho de agua ardente finissima se renha de infusaõ tres dias, no fim dos quaes se coe, & com assucar se faça hum lambedor, & se aromatize com meya oitava de almiscar; & do tal remedio lhe dei por nove dias huma onça em jejum; & não só lhe fez baixar a conjunçaõ em grande abundancia; mas nunca ca mais padeceo accidentes da madre, que antecedentemente temente a perseguiaõ.

16. Quem a tres onças de oleo de bagas de loureiro reiro ajuntar outro tanto oleo de espicanardi, & ferver ver nelles hum punhado de folhas de gallacrista, & outro de artemija, póde presumir que tem hum dos mayores lenimentos, que inventou a Medicina para fazer vir a conjunção mensal, com tanto que se fomente te o ventre muitos dias com elle, depois do corpo estas tar bem evacuado.

17. O sal volatil oleoso de silvio, deitado em quantidade de quinze pingas, em meyo quartilho de caldo de frangaõ cozido com hum molhinho de pimpinella pinella, costuma aproveitar (nas faltas da conjunçaõ) mais do que se póde encarecer, continuandose doze, ou quinze dias.

OBsERVAÇAM XLVIII.

De huma donzella natural de Torres Nove, que padeceo hum anno tosse continua, febre lenta, fastio grande, difficuldade de cursar; & depois que os Medicos seus notaraes a deixaraõ por incuravel, veya esta Cidade, fiada em que eu lhe applicaia alguns remedios particulares, com que a livrasse da morte; & naõ lhe sabio baldada a esperança; porque com huma conserva especifica, & outras medicinas secretas a restituo [14 à vida em 28. de Abril de 1672.

1. Cada dia me buscaõ alguns doentes, que vivem no campo, & em outros lugares muito affastados desta corte, para que os cure de enfermidades, que nas suas terras não tiverão remedio outras vezes observo que muitos enfermos, que assistem nesta cidade, & tal vez na minha vizinhança, naõ fazem caso dos meus conselhos; porèm desta variedade de conceitos que fazem os que muito confiaõ em mim, & dos que nada de mim confiaõ, me naõ admiro, porque a presença do medico para com os naturaes, diminue muito a fama; (r.) & a ausencia delle para com os estranhos acrecenta muito a estimaçaõ seja pois, ou não seja esta a razão porque huns tem em mim muita crença, & outros nenhuma, eu o naõ quero examinar; quero so inquirir as causas, & remedios das doenças para o bom acerto da cura dellas.

2. Digo pois que certa donzella desde a idade de menina teve o figado muito quente, & o cerebro muito humido, & por esta causa padecia tosses frequentissimas, & destillações continuas, porque na vizinhança do figado muito quente so enfraquece o calor Observaçaõ XLVIII 293 no estomago de modo que naõ pode fabricar perfeito chylo, & deste primeiro cozimento viciado resulta huma sanguificaçaõ taõ depravada, & cheya de superfluidades excrementeias, que tem todos os membros do corpo este damno: por isso no estomago, & hypocondrios se geraõ muitos flatos, & no cerebro se conserva muita phlegma, & serosidades, que se cahem nos dentes, fazem hemodia, se cahem na garganta, fazem rouquidaõ; se cahem no peito, fazem tosse; se cahem na tunica, que veste interiormente as costelas do peito, fazem pleuriz; se cahem nas partes nervosas de todo o corpo, fazem gotta arthetica; se cahem nos nervos dos joelhos, fazem genugra; se cahem nos nervos das mãos, fazem chiragra se cahem nos intestinos, fazem camaras; & se finalmente cahem, & se espalhão pela superficie de todo o corpo, fazem rheumatismos, ou dores rheumaticas e ainda que a sobredita enferma tinha muita abundancia de soros, & phlegmas, que dispoem muito a natureza para facilitar a camara, nem por isso andava facil nella, antes era taõ dureira de ventre, que essa quiçà fosse a causa dos males, que padecia. e se algum curioso me perguntar a causa desta grande dureza responderei dizendo que por huma de duas causas se indurece a camara; a principal, & mais ordinaria he pelo grande calor do figado, & entranhas, que resecando as humidades das fezes, as faz durissimas, & difficultosas de se deitarem fóra. A segunda he; porque a phlegma he algumas vezes tanta, & taõ doce que rebate, & afroxa de tal forte a acrimonia da colera, que he a espora, que serve de irritar os intestinos, para que deitem fóra os excrementos estercorofos, & naõ sentindo os intestinos irritaçaõ alguma, se esquecem de fazer o seu officio, & por esta causa cursaõ com grande difficuldade.

3. Querendo pois esta donzella curarse na sua patria, foraõ chamados os medicos mais experimentados que avia nella, & nos seus contornos, & fazendo. Observações medicas doutrinaes. do conselho entre si, concordaraõ uniformemente que nenhum remedio lhe avia de ser mais proveitoso para vencer a sebre, domar a tosse; facilitar o ventre & apagar o incendio, que sangrar, purgar, apozemar, & applicar refrigerantes & pondose por obra estas resolucões, sucederaõ infelicimente, porque a doença se aumentou com grande excesso, varios seraõ os juizos, que os medicos dizerão, o quando viraõ effeitos tão contrarios do que esperavão: culpavaõ huns aos ares, & terreno em que a doente estava; condemnavão outros o muito mimo, & excessivas vontades, & indultos, com que seus pays a criaraõ, deixandolhe fazer quanto queria, & comer tudo o de que gostava lançavão outros a culpa aos medicamentos, que avia tomado, dizendo que por serem velhos, naõ sortiraõ effeito: outros atribuiraõ a tosse aos muitos lambedores, & doces, de que tinha asado; por quanto as tosses seccas (como era a desta doente) quasi sempre procedem dos soros colericos, on lymphaacre, a qual se infurece com os doces, como a experiencia mostra, & os doutores modernos (2.) o ensinaõ, & por esta causa os reprovaõ: outros finalmente affirmavão que era decreto absoluto de Deos, que não queria lhe aproveitassem as diligencias dos homens.

4. Neste tempo quando se tratava mais dos remedios d ‘ alma, que dos do corpo, chegou noticia a Jorge Leal, tio da enferma, do grande perigo, em que estava a sobrinha, & como o amor naõ sabe ter medida, (3.) & vence grãdes imposssiveis, naõ sossegou, sem que mandasse vir a dita enferma para esta cidade, levado da esperança de que eu a poderia curar, por ter ouvido dizer que eu preparava por minhas mãos alguns remedios de virtudes singulares, para usar delles nos casos, em que os remedios communs, & ordinarios naõ aproveiraõ. (4.)

5. Chegada que foi a dita enfema a esta cidade, fui logo chamado, & pelas perguntas que lhe fiz soube que se applicava a muitos exercicios de ler, escrever, cozer, bordar, & cantar, sem reparar que fosse logo

Observaçaõ XL VILL

logo depois de comer: & como nenhuma cousa perverte tanto o calor natural do estomago, e entranhas, como o tropel de cuidados, com os quaes divertidos o calor, & espiritos das officinas, necessariamente se haõ de depravar os cozimentos do estomago, & resultar muitas cruezas com grande perda da saude; por isso mandei que puzesse de parte o exercicio das sobreditas applicações, & tomasse em dous dias alternados tres onças de agua benedicta vigorada, porque nenhum remedio obra effeitos taõ maravilhosos nas tosses ferinas, & importunas, como saõ os vomitorios, principalmente quando as tosses tiverem a causa nas cruezas do estomago. (3.) com este remedio diminuhio muito a tosse, & a febre, mas porque perseveravaõ alguns vestigios della, & o grande fastio, com renitencia, & dureza na camara, lhe dei em seis dias alternados as pilulas de Pachio, que eu preparo por minhas mãos, porque não fio de outrem que as faça com a perfeiçaõ que se requere para obrarem a prodigios que costumaõ fazer nas tosses, nos estillicidios, nas dores de cabeça, nas fraquezas do estomago, nos caroços, & durezas dos peitos, & em mil outras enfermidades.

6. Destas pilulas lhe fiz tomar cinco escropulos por cada vez, & reconheceo com ellas huma quasi milagrosa melhoria, & para a confirmar nella, lhe ordenei trouxesse sempre na boca huma talhada da seguinte conserva, que he excellentissima para tosses rebeldes, & estillicidios impetuosos, ainda que sejaõ salgados, ou corrosivos, & se prepara do modo seguinte.

7. Tomem hum arratel de folhas de rosas vermelhas a que muitos chamão rosas de Jericó, cujos pès saõ muito curtos, as folhas saõ poucas, & cubertas de certa lanugem branda como veludo; & metendose as ditas rosas em hum gral de pedra, lhes misturem dous arrateis de assucar da ilha da madeira, & tudo junto se pize tanto tempo, atè que fique hua massa taõ unida, & semelhante, que naõ se divisem folhas, & entaõ

Observações Medicas Doutrinaes.

metaõ esta massa em huma tigela vidrada, & sobre fogo lento se coza, volteando sempre para que se naõ esturre, & como estiver cozida, se tire do lume, & se estenda sobre huma taboa limpa, & se deixe esfriar, & se façaõ della talhadinhas pequenas à maneira das de gergelim, & traga o doente huma na boca todos os dias, em quanto a tosse durar; porque naõ se pode encarecer o muito que estas talhadas aproveiraõ para curar as tosses rebeldes, & destillações da cabeça; com tal condiçaõ, que o doente use dellas depois de tomados os vomitorios de agua benedicta, & as pilulas de Pachio, como observei em esta donzella, que por beneficio destes remedios escapou da morte, & logrou perfeitissima saude; oito annos porèm passados, naõ sei porque causa, ou fado infelice tornou a ter a mesma tosse, acompanhada com os mesmos symptomas; & sendo eu outra vez chamado, lhe appliquei (depois dos vomitorios de agua benedicta) as pilulas de pachio, & as pastilhas sobreditas; mas como lhe aproveitassem menos que na primeira occasiaõ, lhe ordenei tomasse todas as noites (quando se recolhesse a dormir) cinco escropulos de diacodio desatado em quatro onças de agua cozida com cevada: o qual remedio (como dizem alguns authores) (6.) tem admiravel virtude para suspender as fluxões, & destillações da cabeça, conciliar somno, fortificar o estomago, & curar toda a forte de camaras, temperar as febres ardentes, moderar a sede, suspender os suores demasiados, que procedem de humores tam delgados, & mordazes, que quasi chegaõ a syncopizar, moderar as erysipelas do peito, diminuir os vagados causados de vapores quentes, & delgados que sobem do estomago, ou do figado: nas ophthalmias vehementes, & inflammações da garganta, & chagas causadas de humores morfazes he remedio mui decantado: finalmente he o diacodio prodigioso para todas as enfermidades, que procederem de humores delgados, acres & mordazes.

8. Também lhe aconselhei que tomasse todos os dias

Observação XLVIII

dias em jejum duas oitavas do seguinte electuário: Tomai de pô de raiz de malvaisco, & de alcaçuz, de cada cousa deitas huma onça, de flores de papoulas, & de raíz de lírio roxo, de cada cousa deitas duas oitavas de flores de enxofre e oitava & meya, de alquitira (feita também em pó muito fubtil) huma onça, tudo se misture, & se faça electuario com assucar.

9. Vendo porém que todos esses remédios aproveitaraõ menos do que se podia esperar deles , me lembrou ter lido em gravisilmos Authores, que naõ havia remédio mais prefentaneo para as destillações quentes que ofendem o peito, ou a garganta, & e causaõ tosses, ou rouquidões, do que são banhos de agua doce continuados sessenta, ou setenta dias, ou haja febre, ou não haja: assim ensina Galeno, (7.) o qual falando de modo com que haõ de emendar os desiguraes eitados no corpo, & da cabeça, diz as seguintes palavras: Nem commettais o erro, que alguns medicos fazem aplicando a toda a cabeça aparelho de tapfia UM sÍMBOLO EsQUIsITO motarda; por quanto se a cabeça padece por quentura lhe faraõ dando os tais remédios. O que convém de dar banhos muito repetidos de agua doce, para que com elles divirtamos os vapores quentes, que estão na cabeça, UM sÍMBOLO EsQUIsITO reduzamos a melhor estado o seu temperamento pervertido; porque todos os remedios, que aquentaõ, como são as águas sulfuradas, ou bituminofas, são inimicifimos da cabeça naturalmente quente.

10 A mesma doutrina segue Paulo Gineta, o qual falando da tosse, rouquidaõ, & destillaçaõ diz assim: Usareis de banhos, & banhareis a cabeça com emborcações copiosas de agua morna, & se com ela misturardes alguma parte de oleo rosado omphancino, ainda obrareis melhor. Alfario (8.) louva tambem muito os de agua tibia, porque temperaraõ a quentura do figado, dos rins, & de todo o corpo. E de a minha opiniaõ merecer alguma autoridade, aconselharia eu que confiadamente se dessem banhos de agua doce naõ só nas tosses, rouquidões, & e destillações procedidas de materia, ou intemperança quente do cerebro, ou de todo.

Observações Medicas Doutrinares.

todo o corpo; mas também nas tosses, & rouquidões procedidas da intemperança fria das sobreditas partes; com tanto que conste que o figado he destemperado por quentura. E se os Medicos não quiserem estar pelo meu conselho, rogo-lhes que ouçaõ a Galeno, o qual diz, que quando se juntarem muitos affectos, hum dos quaes he causa do outro, se ha de curar primeiro aquele, que he causa, ou que se pode temer mayor perigo. Avicenna diz o mesmo pelas seguintes palavras: Aonde se acharem muitas doenças juntas, começaremos a curar aquela, que tiver huma das tres seguintes propriedades: a primeira, quando huma das doenças se não puder curar, sem que a outra se cure: a segunda, quando alguma doença he causa de outra, como vemos, quando se ajuntaõ huma febre, & hua oppilaçaõ, curemos primeiro a oppilação, & ao depois febre: a terceira, quando huma das doenças tiver mayor perigo, como se se ajuntarem hua febre podre, & huma parlesia, acudiremos primeiro à febre sangrando, & temperando, & ao depois trataremos da parlesia. Quando porèm se acharem juntas alguma doença, & os seus symptomas, começaremos a curar primeiro a doença; mas se o symptoma for mayor que a mesma doença, acudiremos primeiro ao symptoma, como o fazemos na colica, que acudimos primeiro a mitigar a vhemencia das dores dando opio, & outros remedios narcoticos, naõ fazendo caso da causa: da mesina forte deixamos muitas vezes de sangrar; (sendo muito necessario) porque o doente tem grandes fraquezas de estomago, ou muitas camaras.

II Estribado pois na doutrina de taõ grandes Doutores, & entendendo que o excessivo calor de figado, & entranhas foraõ a causa de se levantarem vapores à cabeça, & que esta pela fraqueza, & disposiçaõ contraida das muitas oppilações, & cuidados recebèra facilmente os tais vapores, os quais com a mesma facilidade descèraõ para a aspera arteria, laringe & peito, & conciàraõ a rouquidaõ, & tosse; por isso entendi que temperado o calor do figado com os muitos banhos, se aviaõ de tirar todos os males delle procedidos. Nem esta conjectura me sahio errada; porque tomando oitenta banhos sarou radicalmente com grande credito da Arte, & admiração dos circunstantes, que muitas vezes a tinhão jà chorado morta. Infinitas rouqduidões, tosses, & destilações salgadas, procedidas do calor das entranhas, curei com banhos de agua doce em outras muitas pessoas, cujos nomes passo em silencio, por naõ ser enfadoso aos leitores.

OBsERVAÇAM XLIX.

I. AInda que concedo q o azougue, & todos os remedios, que delle se preparaõ, como saõ o mercurio precipitado lavado, o sublimado doce, (a quem alguns Chymicos chamaõ Calomelanos Turqueti, outros, Dragaõ mitigado,) o Turbith mineral, a panacea, o mercurio luteo diaforetico, o mercurio da vida, (a quem muitos chamaõ pós algoreticos,) as unturas, & as fumaças, possaõ radicalmente curar muitas, & mui difficultosas enfermidades por huma admiravel, & occulta virtude, que Deos lhe deo, nem por isso se ha de applicar a todos sem distinçaõ, ou, como alguns dizem, à carga cerrada; (I.) porque àlem das advertencias, que os Doutores fazem sobre o uso do azougue, tenho observado que os remedios, que delle se preparaõ, excitaõ muitas vezes symptomas terriveis, & furiosas tempestades nos corpos humanos; porque a huns faz babar com excesso, a outros faz cuspir com muita brãdura; a huns aballa sómente os dentes, a outros os faz cahir de todo; a huns faz os dentes negros, a outros azu- azulados; a huns faz chagas na lingua, & garganta, a outros abraza o figado com incendios; a huns afflige com seccuras, a outros quasi os suffoca com inundações de humidades; a muitos enfraquece de tal sorte, que nem hum cabello podem levantar do chaõ; & o que mais he, nem encolher, ou estender os nervos podem, ficando deste modo tremulos, paralyticos, convulsos, & tal vez tolhidos toda a vida. E porque os leitores naõ cuidem que as razões, que aqui aponto sobre os damnos, que o azougue causa saõ ficçoens mentirosas, ou encarecimentos livremente proferidos, me seja licito contar hum caso naõ muito commum, que observei, para que nelle como em claro espelho, ou na luz de hum ardente cirio, vejaõ todos que as qualidades do azougue, pela variedade dos seus effeitos, saõ taõ occultas, & imperceptiveis, que desde o principio do mundo atè o dia de hoje se naõ puderaõ conhecer todas cabalmente; pois vemos a alguns homens cheyos de boubas, que com elle faraõ perfeitamente por certa simpahia, & combinaçaõ que tem com elles: pelo contrario vemos a outros cheyos do mesmo mal, a quem naõ aproveita, antes os deixa em peyor estado por certa antipathia, & repugnancia que tem com as suas naturezas: experimentamos algumas vezes que derrete o que he duro, & outras vezes vemos que coalha o que he molle: observamos outras vezes que relaxa as partes duras, & aperta as relaxadas: vemos finalmente que o azougue applicado de perto faz grande bem a huns, fazendo grande mal a outros ainda de longe applicado.

2. Testimunhas sejaõ destas verdades as caveiras de alguns ourives, & douradores, nas quaes se tem achado muitas vezes algum azougue, que recebèraõ em si desde o tempo em que douràraõ algu~s vasos com elle. Tambem chamo por testimunhas as caveiras de algumas mulheres, que punhaõ no rosto unturas de solimaõ, & outros badulaques preparados com azougue: se as caveiras das taes pessoas puderaõ fallar, ellas diriaõ quantos tremores de mãos, & de cabe- cabeça, quantas vertigens, quantas negreguras de dentes, & quantas rugas no rosto padecèraõ só pelo azougue que se lhes meteo no cerebro, & embebeo nos póros da carne: (*) como pois o azougue seja taõ bandoleiro, inconstante, manhoso, & penetrativo, q ainda de longe faz tantos estragos, jà naõ se admiraraõ os que me ouvirem dizer que vi a sobredita mulher estupida, paralytica, febricitante, & myrrhada, sem que lhe aproveitasse remedio algum da Arte; o que tudo procedeo, porque nem o Cirurgiaõ, nem os Medicos souberaõ que a dita mulher tivera por officio dar unturas de azougue aos gallicados: & como para curar bem qualquer doença, seja necessario conhecer primeiro a causa della, & naõ seja menos preciso ter remedios efficazes para vencer a enfermidade; por isso naõ se devem criminar os Medicos de ignorantes, porque em oito meses trabalhàraõ de balde, & que de puro envergonhados desemparàraõ a doente porque assim como para ver as cousas, naõ basta ter olhos perspicazes, & agudos, se faltar a luz, & claridade do sol; importa tambem pouco que os Medicos trabalhem, & se cansem para curar as enfermidades, se lhes faltar o conhecimento das causas, de que procedem, & dos remedios, com que se curaõ.

3. Para ver a esta mulher, deixada, & desemparada de todos, fui chamado a dezaseis de Outubro de 1682. & como eu sabia que a dita mulher dava unturas avia muitos annos, entendi que os symptomas referidos procediaõ do azougue que tinha recebido em si, quando o applicava aos doentes, & que por esta causa estava cada vez mais tolhida, & enfraquecida de nervos: porque nem as sangrias, nem as purgas, nem as apozemas, nem as sanguisugas, nem as ventosas, nem outros mil remedios, que se lhe tinhaõ feito >fei-to> em taõ largo tempo, foraõ bastantes para extirpar a malicia do azougue recebido pelas palmas das mãos tantas vezes, quantas untou os corpos alheyos. Chegando pois à enferma, chamada Maria Pereira, moradora na entrada da rua da Oliveira, lhe disse que es- tives- tivesse de bom animo, porque esperava em Deos que antes de hum mes a avia de curar, com tanto que tomasse duas vezes no dia oito folhas de ouro misturadas nos caldos, pondo tambem cada dia algumas folhas delle sobre as juntas, sobre a cabeça, & sobre as partes mais offendidas; pois he inexplicavel a virtude de que o ouro tem para attraihir o azougue, & emendar os damnos, que tem feito, nem os possa fazer mais. Como pois puzese por obra os meus conselhos, & bebesse com grande gosto as folhas de ouro, começou logo a desvanecerse o adormecimento, & tolhimento dos nervos, que tinha desprezado a tantos, & taõ singulares remedios; & antes do tempo prometido, recuperàraõ todas as partes nervosas as forças, & movimento, que tinhaõ perdido pela malicia do azougue, & ficou a doente boa com grande credito do meu nome. Nem podia deixar de succeder taõ felizmente; porque o azougue he taõ obediente escravo do ouro, & taõ amante seu, que à sua vista corre a buscallo, deixando os lugares, em que muito tempo em estado escondido. Esta verdade confirmei com a Observaçaõ presente, porque vi que o ouro, antes de passarem vinte horas da sua applicaçaõ, se fez roxo, & de cor achumbada pela grande quantidade de azougue, que attrahio a si. E para que alguem naõ imaginasse que este successo foi casual, observei que quanto mais tempo se continuou o uso do ouro, tanto menos se manchava, & denegria, & tanto mais facilmente se moviaõ os membros.

4. Desta Observaçaõ se deixa conhecer mais claro que a luz do sol, que o ouro, assim para attrahir o azougue em qualquer parte esteja, como para quebrantar, & entrear a sua nociva qualidade, he o mayor de todos os antidotos. E se o doente for taõ pobre que naõ possa tomar as folhas de ouro tanto tempo, quanto he necessario para recuperar a saude, ( porque na continuaçaõ dos remedios consiste muitas vezes o bom effeito delles. como diz seneca,) (2.) usaremos em seu lugar do oleo de enxofre campanado, dei - tan- tando dez, ou doze gottas delle em cada caldo, & na agua que beber, porque com toda a verdade posso affirmar que na Arte Medica se naõ achará remedio (depois do ouro) que tanto amanse, fixe, & modere a ferocidade do azougue, como he o dito oleo; porque assim como he impossivel caçar sem caens, pescar sem redes, apanhar passaros sem visco, & comprar alguma cousa sem dinheiro: do mesmo modo he cansar de balde, querer domar as qualidades do azougue sem ouro, sem oleo de enxofre, & sem o succo da pimpinella, que na opiniaõ de schenkio (3.) tambem he grande antidoto contra os males, que o azougue causa. E supposto que o dito oleo tenha admiraveis virtudes para diversas enfermidades, como saõ confortar o estomago, adelgaçar os humores grossos, prohibir a podridaõ delles, rebater as qualidades venenosas, matar as lombrigas, mitigar a sede, apagar os ardores das febres, provocar os meses, impedir os vomitos, excitar a fome, curar as faltas da respiraçaõ nascidas da grossura dos humores, & tenha outras mil virtudes; comtudo a que prevalece a todas, he a de rebater, & fixar a malicia do azougue, & soccorrer aos que tomando unturas por fòra, ou mercurio por dentro, naõ babàraõ, nem cuspiraõ, porque todos estes ficaõ muito offendidos dos nervos, como observei em esta mulher; & só se remedeam como o uso do ouro, & oleo de enxofre.

5. semelhante effeito observei do ouro nas dores de cabeça, que padeceo Francisco Rodriguez, o qual, porque tinha por officio purificar o ouro com solimaõ, & azougue, se lhe meteo pelo discurso dos annos alguma porçaõ delle na cabeça, por cuja causa de dia, & de noite estava affligido com acerrimas dores nella, & naõ podendo aliviarse com infinitos remedios, que se lhe fizeraõ, me consultou; & entendendo eu que a causa das taes dores era o azougue, que na cabeça tinha, lhe ensinei que rapando-a à navalha, a cubrisse com hum casquete de couro, & que na boca, & ventas do nariz trouxesse sempre humas me- mechas do mesmo; & dentro de poucos dias se fez o ouro roxo pelo azougue que em si recebeo; & conheceo grande alivio na dor. e para que constasse a todos, que a mudança da cor no ouro era procedida do azougue, que elle attrahira, mandei pôr o dito casquete sobre o fogo, & tanto que aqueceo, desappareceo logo o azougue, ficando o ouro taõ fermoso, & resplandecente como era dantes: & repetindo muitas vezes este remedio, se tirou de todo a dor com grande credito de meu nome. Advirto aos curiosos, que o casquete de ouro naõ serve sòmente para tirar da cabeça o azougue, que por qualquer occasiaõ aja entrado nella; mas tambem obra grandes maravilhas nas dores, ou queixas da cabeça procedidas de qualquer outra causa, como o observei na mulher de Manoel Vas Coimbra, que avendo muitos annos vivia penalizada com semelhantes dores, lhe aconselhei que rapada a cabeça, trouxesse sobre ella hum casquete, ou soli Deo de ouro; & melhorou consideravelmente com elle; de que podem ser testimunhas seu marido, seus filhos, & toda a sua familia.

OBsERVAÇAM L

De huma grande dor, & inchaçaõ, que certa mulher padeceo na perna direita, donde se naõ pode tirar em largos tempos, rendeo aos muitos remedios que lhe fizeraõ; & só obedeco aos pós da raiz da butua misturados com vinho branco, & applicados como emplastro sobre o lugar offendido.

Com muita razaõ disse seneca: (r.) Vira occultas, & ignorada, sejaõ manifestas, & sabidas. Quem avia de dizer ha muito poucos annos, que hum tumor edematoso, muito dolorifico, & causador de febre procedia de huma ventosidade, ou aura venenosa escondida em huma perna? Quem ousaria a affirmar nos annos passados que a raiz da butua ( chamada vulgarmente parreira brava) feita em pò, misturada com vinho branco, & applicada sobre qualquer parte inchada, ou dolorosa tirava a dor, & a inchaçaõ, melhor que outro algum remedio humano? Quem no tempo passado tal cousa dissesse, o teriaõ por mentiroso; porèm no tempo de hoje consta mais claro que a luz do sol, que muitas inchações, & dores nem procedem de inflammaçaõ, nem de fluxaõ, nem de contusaõ; mas de flatos, de vapores, ou de auras acerrimas embebidas em alguma parte do corpo, na qual pela maliciosa qualidade afflige de dia, & de noite aos doentes com dores taõ intoleraveis, que nem podem explicar, nem me daraõ credito, se eu as quizer dizer: mas naõ faltaraõ testimunhas de vista muito fidedignas, que comigo certifiquem que nestes nossos tempos viraõ muitas inchações, & dores, que zombaraõ de toda a sorte de remedios, já quentes, já frios, jà anodynos, & narcoticos; & so obedeceraõ, por modo de milagre, aos pòs da raiz da butua, já tomados pela boca, jà applicados como emplastro sobre as partes queixosas. E para que esta verdade seja mais authentica, & se tire a occasiaõ de se duvidar della, referirei o seguinte caso, pelo qual constarà aos Medicos principiantes que muitos medicamentos, & doenças estiveraõ atégora escondidos, & com a curiosa indagaçaõ, & experiencia dos Medicos modernos estaõ hoje taõ claros, & manifestos, que será maldade dizerse delles, que saõ fingimentos chimericos, ou sonhos fabulosos; & porque naõ aja a mais leve suspeita desta verdade, peço aos Leitores ouçaõ com attençaõ o seguinte caso.

A vinte & dous de Agosto de 1689. fui chamado para curar a mulher de Pedro Gonçalves , mestre de fabricar naos, & morador à Bica de Duarte Bello: começou esta mulher a sentir huma febre com dores, & inchaçaõ na perna direita, & como a tal dor, inchaçaõ, & febre se fossem augmentando cada dia, foi preciso sangralla no braço da parte queixosa, porque estava longe do tempo da conjunçaõ mensal; & sem embargo que foi sangrada muitas vezes, nem por isso as sobreditas queixas diminuiraõ cousa alguma: daqui inferi que semelhantes symptomas naõ procediaõ tanto de sangue, quanto de outros humores, que chamados pela dor corriaõ para a parte enferma; & levado deste discurso julguei que para curar a sobredita mulher eraõ necessarias purgas, apozemas, pilulas, & fomentações. Mas pondo em execuçaõ todos estes remedios naõ conseguio alivio; antes peyorou tanto, que foi preciso chamar alguns Cirurgiôes, & Medicos mais antigos, & experimentados, para que com o conselho de muitos (2.) se conseguisse a saude desejada. Juntos que foraõ os de melhor fama, votàraõ uniformemente que se continuassem as sangrias, purgas, apozemas, & fomentações; porèm como tudo se executasse sem conseguir alivio, se appellou para outros Medicos, (3.) os quaes lhe assistiraõ largos tempos, mas com successo taõ infausto, que quantos mais remedios lhe applicavaõ, tanto as queixas mais cresciaõ em taõ grande aperto, quando devia recorrer ao auxilio Divino mais, que ao soccorrro humano, fui novamente chamado, & vendo que nenhuma cousa, de quantas eraõ necessarias para curar a doença, faltava tudo por fazer, & que os Medicos tinhaõ applicado tudo o que a Arte manda sem melhoria, me dei por obrigado a investigar algum segredo de mais relevante: puzlhe pois sobre a parte enferma o seguinte cataplasma, de que tenho grandissimo conceito, & experiencia.

3. Tomem quatro onças de leite de cabras fresco, misturesse sobre fogo lento com doze onças de bosta de boy fresca, duas oitavas de açafraõ em pò, & quatro gemas de ovos cruas, as quaes se ajuntaraõ, quando a massa estiver com pouca quentura, por se naõ coalharem, & estendendose esta massa sobre hum panno, se applique; mas como naõ aliviasse cousa alguma com hum remedio taõ experimentado, appellei para as fomentaçoens da agua da Rainha de Hungria, que costuma aproveitar muito em semelhantes casos; & vendo que tambem ellas naõ faziaõ o que eu desejava, mandei frigir hũa as folhas verdes de erva santa em oleo de minhocas, ordenando que com elle fomentasse a perna dolorosa, duas vezes cada dia. Tudo se executou, como eu o mandei, mas com successo mui infasto, porque a dor naõ diminuhio cousa alguma da sua cueldade. Confesso ingenuamente que temi, & tremi vendo que avia de lutar com huma hydra tam feroz, & indomavel; mas movido de compaixaõ pelos lamentaveis, & repetidos clamores, em que a doente estava, me naõ escusei de entrar na batallia, & por esta razaõ lhe appliquei o seguinte remedio, que tem feito grande bem a muitos, naõ só em casos semelhantes, mas tambem em dores de gotta, & ictericas.

4. Tomai da terra, que se acha nos formigueiros das formigas, tres onças de oleo rosado, & a fogo lento se aquente, & fora do fogo se lhe ajunte huma gema de ovo crua, de sorte que se possao fazer hũas papas, & se appliquem. Mas (oh caducas esperanças dos homens !) quando entendi certamente que as dores & tumor por beneficio deste grande remedio aviaõ de tirarse, & desvanecerse, como se fossem fumo por meyo de huma chaminè, crescerão de sorte, que perdi totalmente a esperança de curalla; porque me lembrou o dito de Valhes, (4.) o qual diz que as dores dos joelhos, das pernas, & das curvas andão annexas aos moribundos.

5. Neste tempo vendose a pobre mulher atormentada, & affligida com tantas tempestades de dores, pedia que ao menos a aliviasse hum pouco dellas. Pareceome então pela renitencia dos symptomas, & pelo nada que lhe tinhaõ aproveitado tantos, & taõ qualificados remedios, que a doença procedia de ventosidades, as quaes saõ capazes de fazer muitos, & mui differentes achaques conforme as partes aonde se crião, ou se embebem; se se criaõ, ou embebem na pelle, fazem palpitações, ou jectigações na parte, como as vemos fazer nas palpebras dos olhos; se se criaõ, ou metem nos nervos, ou musculos, fazem torpor, adormecimento, & talvez parlesia; & se correm, ou tomaõ todo o corpo, fazem apoplexia; finalmente se se metem, ou criaõ em qualquer parte, & se dilataõ muito tempo nella, a inchaõ, adormecem, & lhe causaõ dores, que perseveraõ em quanto lhe naõ applicão algum remedio discussivo de flatos; & como eu me lembrei dos muitos que se tinhaõ applicado infrutuosamente, entendi que a dor da perna da sobredita enferma procedia de flatos, & levado desta conjectura, fundada na authoridade de Galeno, (5. ) & Hippocrates,appliquei sobre a parte queixosa o seguinte lenimento, que para resolver faltos, & dores procdidas delles excede a tudo.

6. Tomai de raiz de parreira brava, (chamada vulgarmente raiz de butua) feita em pò subtilissimo, huma onça, misturada com tanto vinho branco, quanto bastar para fazer humas papinhas; estas se ponhaõ quentes sobre a parte doente; porque me consta que esta raiz obra effeitos tão maravilhosos em desfazer flatos, & inchações, que me atrevo a dizer restituhio muitas vezes a saude, & o movimento àquellas pessoas, que por causa de dor, ou inchação estavão tolhidas; & o que mais he, aproveitou àquelles, a quem nem caldas, nem banhos de mosto, nem suores de estufa aproveitàraõ. assim o observei nesta doente, que depois de baldadas mil diligencias da Arte, sarou perfeitamente com o uso da sobredita raiz. O mesmo admiravel proveito observei em hum fidalgo, chamado Fernaõ Rodriguez de Brito; teve elle huma grande dor em hum hombro, com grande inchaçaõ, & so com esta raiz applicada com o vinho sarou presentaneamente.

7. Francisco de Araujo, que tem certa occupaçaõ no Concelho da Fazenda, vio hum milagroso effeito desta raiz em huma criada sua, a quem inchou huma perna com taõ desmedida grandeza, & dor taõ grande, que temi se mortificasse, & só com lhe applicar humas papinhas do subtilissimo pò desta raiz, misturado com vinho, sarou em tres dias.

8. Este segredo, & outros muitos, que nestas Observações revelo em serviço do bem commum, peço que se não desprezem, porque o desagradecimento, que este mào mundo dá aos Medicos candidos, & bem intencionados, he muitas vezes causa de sepultarem comsigo alguns remedios, que seria convenientissimo o saberemse. E se alguns homens, seguindo o conselho de Christo, naõ querem esconder o talento, que Deos lhes deo, & por essa razão publicão o que sabem, logo se arma contra elles a enveja, & os desacredita de tal sorte, que não escapão aos golpes da maledicencia. Mas que mar ha, que não tenha scyllas, & Carybdes? Que Ulysses, que não veja syrenas? Que região, que não crie Centauros? Que verdade, que não tenha inimigos? Nem neste tempo faltão olhos, a quem a neve branca parece tinta negra: mas sempre foi costume das aranhas fabricar amargoso veneno das mesmas flores, de que as abelhas fabricaõ doce mel.

9. Desta Observação consta que neste tempo sabemos alguns remedios maravilhosos, que os antigos não conhecèrão, nem sonharão; (6.) pelos quaes beneficios devemos render a Deos muitas graças, pois se dignou de descubrir nos muitos remedios, com que a Medicina está mais abundante, & enriquecida: (7.) que Hippocrates, & outros Corypheos da Medicina ignorassem muitas cousas no seu tempo: porque Deos não reparte com os homens todas as cousas em hum só dia; mas communica os seus favores, & beneficios em differentes seculos: nem a hum só homem dà tudo; mas a cada hum distribue seu dom particular, quando elle quer, & como quer.

OBsERVAÇAM LI.

De huma mulher muito velha, que àlem de huma ardentíssima febre, tinha em ambos os lados dores vehementíssimas procedidas de sangue taõ corrosivo, & caustico, que todas as partes em que faltou o dito sangue, quando o barbeiro abriu a veya ficàraõ empoladas; & cheyas de bolhas táõ grandes, como se fossem escaldadas com agua fervendo.

1. TAõ raro, & taõ novo he o caso,que pertendo contar, que entendo será muí proveitos a noticia dele não só aos professores dá Medicina, mas a todos os curiosos.

2. A treze de septembro de 1680. fui chamado para curar a Jeronima do Espirito santo moradora na rua d'Atalaya: padecia ella huma grande dor, & pontada em ambos os lados, acompanhada com febre, tosse, escarros de sangue, vermelhidaõ no rosto, dificuldade de respiração,& outros symptomas taõ proprios, & inseparaveis do Pleuriz, & Peripneumonia, que se o mesmo Hippocrates, & Galeno fossem chamados, para curar a dita mulher dúvidariaõ muito qual das duas doenças era aqueella padecia; porque ambas procedem de inflammaçaõ interior; em ambas naõ podem os doentes estar deitados de hum, ou de outro lado, ou de ambos; em ambas se acha tosse, & febre continua, ambas vem acompanhadas com respiração dificulto-a; ambas finalmente concordaõ nas caufas, finaes, & remedios, & só diferem no lugar: porque se a inflammação estiver na subtancia do bofe, ou nas túnicas,que o vestem, fará huma Peripneumonia; mas se estiver na pleura, ou nos musculos internos, fará hum pleuriz legitimo, a que chamamos Exquisito ; & fe a inflammaçaõ estiver nos musculos externos, chamados intercostaes, fará hũ pleuriz bastardo a chamamos Notho: & asim posto que estas duas doenças tenhaõ as mesmas causas, & quasi os mefmos sinaes, & se curem com os mesmos dios; comtudo importa muito à vida do doente, & ao credito do Medico distinguir huma da outra, assim para as saber curar, como para fazer prognostico do mayor, ou menor perigo dellas, porque he taõ grande a semelhança que ambas tem entre si, que muitas vezes enganou aos Medicos mais acautelados, como em certa occasiaõ succedeo a Galeno, (1.) o qual cuidando que tinha huma dor de pedra creada nos rins, ou encalhada nas ureteras, veyo a desenganarse que era dor de cólica: & naõ fó este grande Pay da Medicina se enganou; mas muitos Medicos da primeira grandeza entendèraõ que huma dor de colica era de pedra, & que outra sendo de pedra era de cólica.

3. Nem he para admirar que o grande Metre se enganase com huma dor escondida dentro do corpo, quando nos enganamos cada dia atè com as cousas, que vemos com os olhos. Hum remo inteiro, & direito metido dentro na agua, nos parece torto, & quebrado: huma torre quadrada, vista de longe, nos parece redonda: o sol (sendo mayor que o mundo todo) nos parece mais pequeno que a roda de hum carro: logo se os fentidos fe enganão tanto com o que vem por fóra, naõ fe deve avaliar por encarecimento o dizer eu fe Hippocrates,& Galeno fossem chamados para curar a sobretida enferma, se viriaõ embaraçados no conhecimento da enfermidade. Naõ obstante porèm a grande semelhança, que o pleuriz, & peripneumonia tem entre fi, confiderei que o pleuriz difere de peripneumonia porque nesta naõ podem os enfermos sossegar de nenhum dos lados, nem respirar, fenaõ estando assentados, & com o corpo erguido; porque como neste tempo esteja o bofe opprimido com a inflammação, apertase mais se o doente se deita sobre qualquer das suas pencas; mas no pleuriz podem sossegar, & deitarse sobre algum dos lados, nem necessitão de respirar com o corpo erguido. Na peripneumo-nia he a respiraçaõ mais apressada; por como o coração tem nesse tempo mayor quentura pela visinhan-ça do bofe inflammado, necessita de refrigerio mais prompto, & continuo. He tambem mais dificultosa la respiração na peripneumonia, que no pleuriz, porque como o bofe com a inflammação esteja inchado, naõ se move tão livremente, nem pôde refrescar, & abanar o coraçaõ com tanta pressa, & facilidade.

4. Na peripneumonia sentem mayor quentura no peito, do que no pleuriz, pela visinhança do coração, & pelos muitos vapores do sangue, que sobem à cabeça, se imprime nas faces huma cor mui vermelha.

Na peripneumonia se prostrão as forças com excesso, ou porque esta doença pela mayor parte he de qualidade malignissima; ou porque o fervor do sangue dissipa os espiritos vitaes com a mesma brevidade, com que huma torcida muito grossa consome o azeite em pouco tempo. sejame permittido o aver tocado estas coufas em favor dos Medicos principiantes, & faltos de experiencia. Como pois eu conhecesse da vermelhidão das faces, da respiraçaõ dificultosa, da febre intensa, da impossibilidade de estar deitada, que a dita enferma padecia peripneumonia, ou inflammação do bofe, na qual muitas vezes pecca o sangue na quantidade, & qualidade, mandei sangralla muitas vezes: & supposto que a idade de setenta annos me persuadião que a sangrasse com moderaçaõ; comtudo como a tal inflammação he algumas vezes taõ apressada que tira a vida em tres, ou quatro dias, julguei que deviasangralla com preça, & com mão larga, sem fazer caso de conservar as forças para o futuro; porque de que servia o poupallas, se pela celeridade, & agudeza da doença, antes que faltassem as forças, faltaria a vida? Este conselho peço aos Medicos que o observem como preceito inviolavel: quando conhecerem que a doença ha de ser dilatada, poupem muito as forças, para que possaõ durar atè o fim da batalha; porèm quando virem que a enfermidade corre tão arrebatadamente para a sepultura, que pòde matar em dous, ou tres dias, como succede nas apoplexias, nos garrotilhos, nas peripneumonias & nas supressos altas da ourina, sangrem cinco, ou seis vezes no primeiro dia, porque de outra sorte morrer o enfermo infallivelmente. Para confirmaçaõ desta: verdade ouçaõ o seguinte caso, que he raro, & quiças nunca visto, nem ouvido.

Occultavão as veas da sobredita mulher hum sangue taõ ardente, & tão caustico; q: tanto que o fangrador deo a picada, lhe saltou no rosto & mãos huma espadana delle, & a todas as partes, em que o sangue cahio, empolou de sorte, como se fossem escaldadas com agua forte, ou com azeite fervendo.

Da qualidade pois deste sangue ardentissimo, & do summo alivio que a enferma recebeo com a primeira sangria, me atrevia sangralla quatro vezes no primeiro dia, tres no segundo , & duas no terceiro continuando assim, tratei de refrescar, & rebater o fervor do sangue, que abrazava o bofe, & o corpo todo, dandolhe a beber cada tres horas hum grande copo da seguinte agua especifica. A seis quartilhos de agua da fonte (deitada em panela de barro) mandei ajuntar tanta quantidade de oleo de enxofre feito por campana de vidro, quanta fosse necessaria para que a dita agua ficasse agradavelmente azeda, & entaõ ordenei se juntasse a esta agua huma maõ cheya de flores de papoulas vermelhas, & huma onça de raiz de bardana; & que tudo fe puzesse a cozer sobre fogo brando, para que a dita agua recebesse em si a tintura, ou virtude das sobreditas cousas; & coandose tudo, lhe mandei ajuntar hum pouco de assucar, para que a dita bebida ficasse agradavel, & capaz de beberse, porque tem maravilhosa virtude para refrigerar as entranhas calurosas, ou inflammadas com alguma peripneumonia; mandando que cada noite lhe dessem huma ptisana, a que ajuntasem huma onça de lambedor de papoulas vermelhas com quinze grãos de nitro diaforetico, & meya oitava de aljosar preparado; porque tem estas ptisanas grande propriedade de rebater o fervor dos humores, dissolver a crassidaõ, & adoçar o azedume: pois os remedios, que hão de curar a peripneumonia, devem ter todas estas virtudes; porque como atal doença procede de sangue fervente, crasso, & acre, que está pegado dentro dos vasos mais intimos do bofe, & que naõ póde circularse, & por isso causa inflammaçaõ, & respiraçaõ difficultosa, he necessario, remedio que tempere o fervor; desfaça, & volatize, a crassidão, & rebata o azedume, porque de outra sorte ficaraõ irremediaveis todas as enfermidades, que procederem do accido errante, que por estar exaltado coalha o sangue, & impede a sua circulaçaõ, como succede na peripneumonia, no pleuriz, nas alporcas nas apoplexias, & em outras muitas doenças.

Usou pois destas pitsanas duas vezes na noite; mas como não conseguisse tanto alivio, quanto se podia esperar, duvidei se feria acertado darlhe algum medicamento purgativo: porque o Collegio Medico se divide em varios pareceres. Dizem huns que he crime da primeira grandeza purgar nas peripneumonias; porque as doenças do peito só por escarro se curaõ bem; & a descarga por cursos he muito formidavel.

(2.) Dizem outros que toda a esperança da saude consiste nos vomitorios de agua benedita , com tal condição que se appliquem no primeiro insulto da doença; (3.) usando depois disso dos expetorantes. Outros, louvão as purgas alviducas, (4.) com tal condiçaõ que sejaõ brandas; & benignas, como saõ as que se fazem de tres onças de bom mannà solto em caldo de frangão, ou em seis onças de amendoada; ou a infusão de ruibarbo, & agarico, com tres onças de xarope violado de nove infuoss. Outros procedem mais acautelados, dizendo que nem em todas as peripneumonias se ha de purgar, nem em todas se ha de reprovar a purga.

6. Em tanta variedade de opinioens escolhi por mais acertado o uso das sangrias repetidas , & das tisanas, em que misturei sempre os remedios absorbentes, & volatilizantes, para que o sangue, que pelo azedume estava asmo, grosso, & como encharcado nas veas do bofe, tirado o tal azedume por virtude dos absorbentes, ficasse doce, & fluxivel para continuar a circulaçaõ, & fazer a respiração mais facil; & para este fim usei dos remedios, que abundão de sal volatil, como saõ os pós do sangue de bode preparado, os pós do genital do veado colhido em Agosto, o espirito de osso de veado volatil, o pò dos mellipedes, o almiscar; valendome tambem no mesmo tempo, dos grandes absorbentes antacidos, como saõ os aljofares preparados, & os coraes, os olhos dos caranguejos; & o que excede a todos estes, as minhas pilulas antacidas, miturando tres oitavas de qualquer destes absorbentes em tres quartilhos de agua cozida com huma onça de casca de raiz de bardana, ou em falta della com hum punhado de flores de papoulas, compuz a seguinte bebida, que he excellentissima.

7. Tomem de agua de cardo santo, & de papoulas, de cada huma destas meya canada, misturemse, & emeste licor fervido levemente em huma panela nova, se deitem de infusaõ tres onças de esterco fresco de cavallo, para que as ditas aguas recebaõ em si a tintura do esterco, & como a tomarem, se coe por papel mataborraõ, ou panno bem tapado, ajuntando a este licor quatro onças de lambedor de papoulas, tres oitavas de espirito de corno de veado volatil, & de seis em seis horas dem ao doente quatro onças desta bebida. E porque a natureza era muito rebelde em cursar, lhe ordenei tomasse duas vezes no dia, a ajuda seguinte, que para mollificar as fezes tem maravilhosa, propriedade. Tomem de farelos de trigo ha mão cheya, lavemse em tantas aguas, atè que fiquem limpos da farinha, & então se fervão em hum quartilho de agua, & coandose com forte expressiaõ, quatro onças desta agua, duas onças de lambedor violado & quatro de assucar mascavado, & mornase se deite. Finalmente ordenei que, passadas quatro horas depois de huma leve cea, comesse duas noites successivas, hum pero camoez recheado com meya oitava de almiscar, hum escropulo de pò de flores de papoulas, assando-o a fogo muito brando, dandolhe emcima quatro onças de agua de cardo santo, ou de agua cozida com huma onça de cascas de raiz de bardana: & foraõ estes remedios taõ ditosamente succedidos, que a doente, que estava efpirando, livrou das mãos da morte, & viveo depois disso vinte annos por beneficio, & diligencias d'Arte.

8. Bem he verdade, que a dita enferma por causa das muitas sangrias que levou, ficou taõ opilada, & com tãtas dores na cabeça, que perdia paciencia; para acudir a esta queixa, lhe ordenei hs caldos de frangaõ recheados com raizes aperitivas; mas como estes naõ bastasem para vencer huma oppilaçaõ grande, lhe fiz tomar aço; sem embargo de estar taõ fraca, que naõ podia fazer exercicio; porêm naõ obstante isso lhe dei na cama trinta dias hum escropulo de crocus martis; desatado em hum quartilho de soro de leite, & com este remedio cobrou saude taõ perfeita, que viveo depois disto vinte annos. Isto quiz advertir a favor dos Medicos modernos, para que se algum dia lhe vierem, às mãos doentes, que tenhaõ muita necessidade de se desopilar se naõ atemorizem nem acovardem, vendo do que naõ podem andar, nem fazer exercicio com o aço, porque eu o tenho dado a muitos doentes na cama, & todos melhoraraõ, porque o aço era feito sem corrosivo, & por minhas mãos ; assim o observei nesta, mulher; na mulher de Lourenço Friarte, & em Maria de Azevedo, moradora no beco dos Assucres, & mil outras pessoas que naõ refiro por não ser enfadoso.

OBsERVAÇAM LII.

De huma febre terçãa exquisita, causada de enchimento de estomago, & curada quasi de repente com hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada.

1. As doenças, que procedem de enchimento do estomago, naõ podem ter melhor remedio, nem curarse com mais segurança, & brevidade que com a evacuaçaõ, & despejo do mesmo estomago: & assim como seria erro grande dar algũa purga, quando o enchimento for de sangue conteudo nas veas; seria tambem absurdo da mayor marca sangrar, quando o enchimento for de humores, ou cruezas conteudas no estomago. Isto dizem gravissimos Authores, (1.) para que os Medicos modernos saibaõ que as febres, que sobrevierem às pessoas, que comem muito, ou que estiverem em algum banquete, ou que sentirem grandes amargores de boca, ou estomago cheyo, & carregado, se naõ curem com sangrias, por mais que as febres sejaõ grandes, sem que primeiro tomem hũ vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada; ou de vinte grãos de pós de quintilio preparado por mãos de bom artifice; ou de huma onça de agua angelica da minha descripçaõ: & se o doente for muito medroso, ou quebrado de alguma verilha, & por qualquer destas causas não quizer tomar purgas vomitivas, tome huma purga, que obre só por curso. A melhor de todas, & que obra com muita suavidade, he a q̃ se faz de duas oitavas dos meus, trociscos de fioravanto, desatados em duas onças de caldo de gallinha, ou a que se faz de dezoito grãos do meu extracto Alcaest, formando delle tres pilulas.

2. Esta doutrina quizera eu intimar ao mundo todo, & que se escrevesse pelas portas das Cidades, & ruas mais publicas, para que se naõ cometesse o execrando crando erro de sangrar aos que se queixarem de inchimento do estomago, ou tiverem febre depois de se averem fartado, sem os purgar primeiro: porque tenho observado infinitas vezes que os doentes, a quem sangraraõ tendo adoecido de carga de comer, ou de excessos da luxuria, perdèraõ miseravelmente a vida; de que pudera apontar innumeraveis exemplos, se a modestia o permittira; mas por não infamar a huns de luxuriosos, a outros de glotões, & a outros de ignorantes, os passo em silencio bastame para descargo da minha consciencia, dar este, & fazer esta advertencia aos Medicos principiantes, para que daqui por diante naõ cometaõ semelhantes absurdos; & pelo contrario tenho visto felicissimos successos em todos os doentes, a quem os Medicos purgàraõ logo que adoecèraõ com carga, ou pejo de estomago, como confirmarei pelo seguinte successo.

3. Em quinze de Dezembro de 1690. certo homem, cujo nome não quero declarar por modestia, comeo quatro arrateis de lombo de porco, dous pães de vintem, hum arratel de linguiça, & huma canada de vinho novo; & como esta carga foi taõ excessiva, naõ pode a natureza com ella, & por isso se infureceo, & assanhou o archeo do estomago de tal sorte, que fermentando mal os alimentos; ou para melhor dizer, corrompendo-os, deo causa a varios, & diferentes symptomas, conforme as differentes partes a que offendeo, já causando grandissimo fastio, já excitando vomitos, já partindo a cabeça com dores, já ardendo, em Vesuvios de fogo, já levantando amargores de boca: & sendo eu chamado, conheci que o excesso do comer fora a causa de taõ lastimosa tragedia; & naõ obstante que o doente tinha grande febre, lhe dei logo vinte grãos de pò de quintilio desatado em tres onças de agua ordinaria; & foi taõ grande a quantidade de cruezas, de coleras, & plegmas que vomitou, & cursou, que no mesmo dia ficou livre da febre, & dos mais fymptomas, como se fosse obra de milagre; & naõ succederia assim, se olhando sómente para a febre, & naõ para a causa della, o sangrasse, porque se meteriaõ nas veas as cruezas, & corrupções, que estavaõ no estomago, & corromperiaõ o sangue, & fariaõ sem duvida que a febre, que até aquelle tempo era ordinaria, & capaz de se curar com huma bochecha de agua, degenerasse em maligna refinadissima, & desta se seguisse a morte, ficando o doente sem vida, a Arte com afronta, & o Medico com eterna deshonra, & perpetuos remorsos na consciencia.

4. Desta Obfervaçaõ taõ felizmente succedida consta quam errados vaõ, & quanto se affastaõ da doutrina de Galeno, & do verdadeiro methodo de curar aquelles Medicos, que sangraõ nas febres, em que ha pejo no estomago, ou grandes amargores na boca, quando nenhuma cousa deixou Galeno (2.) taõ prohibida, & encomendada aos Medicos, como que naõ sangrassem a alguem tendo cruezas, ou pejo no estomago: assim o disse o grande Mestre fallando das febres, que sobrevem aos enchimentos do estomago, pelas seguintes palavras: se no estomago estiver alguma crueza dos alimentos, ou nos intestinos estiverem alguns excrementos, dilatareis a ssangria tanto tempo, quanto vos parecer necessario para se cozerem as taes cruezas, & se deitarem fóra os excrementos. Avicenna (3.) fallando nos damnos, que fazem as sangrias aos que tem o estomago cheyo de comer, ou de humores diz o seguinte: E grandemente vos guardai de ssangrar nos enchimentos do estomago, & intestinos. E para que deste dia por diante nenhum Medico seja culpado diante de Deos, nem dos homens por aver commettido semelhante erro, peço muito que tenhaõ esta Observaçaõ na memoria, & a sigaõ pontualmente, porque com a experiencia de muitos annos tenho conhecido que a verdadeira regra de curar as febres, & mais doenças, que procederem de enchimento do estomago, consiste em alimpallo primeiro com purga, ou seja vomitiva, ou alviduca: & se ouver algum Medico taõ teimoso, & inflexivel, que despreze este meu conselho, & mande sangrar avendo enchimento no estomago, sem purgar primeiro, será reo de tantas mortes, & de tantas viuvas sem maridos, & filhos sem pays, quantos forem os doentes, a quem curar desta sorte.

5. Bem sey que assim como ouve homens no mundo, que para mostrar o seu engenho, & agudeza, se empenharaõ em louvar o que he máo, naõ faltaráõ tambem hoje homens, que se empenhem em reprovar o que he bom, & consequentemente que condemnem estes meus conselhos, dando para isso razões taõ agudas, que pareçaõ concludentes; mas a esses taes homens respondo que as agudezas do engenho se podem permittir em materias leves, como foi em Aristomaco, que gastou sessenta annos em especular os faltos das pulgas, & a natureza das moscas; em Angiò, que se empenhou em louvar o morbo gallico; em Phavorino, que fez capricho de louvar a torpeza, & fealdade de Thersite; em Homero, que se desvelou em escrever a batalha dos ratos com as rans; em Policrates, que poz grande cuidado em louvar a tyrannia do Busiride; em Luciano, que se fatigou para engrandecer a arte de chocarreiro; em sinesio, que trabalhou muito em louvar o ser calvo; em Erasmo, que fez particular estudo em louvar a tolice; & fatuidade. Estas agudezas saõ desculpaveis, porque saõ sem damno de alguem; mas agudezas, & feligranarias para reprovar a verdade, ou defender o voto mal fundado, naõ se devem admettir; antes o Medico, que pertende salvarse, he obrigado a estar pela razaõ, & experiencias; & como estas me tem ensinado que todas as febres, & doenças, em que o estomago estiver carregado, se curaõ felizmente com hum vomitorio, ou qualquer outra purga; por esta razaõ encomendo tanto ao senhores Medicos que naõ desprezem as minhas admoestações, se quizerem fazer curas, que pareçaõ milagrosas.

OBsERVAÇAM LIII.

De outra febre terçã a exquifita, que degenerou em continua maligna, porque queixandofe a doente do eftomago, foi o Medico taõ deffatento, que naõ quiz purgala, mas fó fangrou, & mais fangrou, & por efta caufa crefceo o perigo de tal modo, que fe lhe naõ acudir a com os pós de quintilio, & com o meu cordeal purgativo, avia de morrer; mas foi Deos fervido que por beneficio deftes dous taõ decantados remedios efcapaffe da morte.

I. Diz o Doutor Maximo da Medicina, (I.) & outros Authores graves que nas doenças perigoffifimas he melhor fazer algum remedio, ainda que feja duvidofo, que deixar morrer ao doente com certeza. Confelho he efte, que fempre fegui, & de que fempre fiz grande eftimaçaõ, porque guiado por elle tirei da garganta da morte a muitos doentes que eftavaõ fem efperança de vida, como obfervei em Catherina Pereira, moradora de rua dos Ourives do ouro. Para efta mulher fui chamado, eftando ungida, & deixada do Medico por incuravel, & a achei cercada com taõ grandes ancias, & com huma febre taõ cruel, que quafi eftava com o fhirro na garganta. Confeffo que me arrependi de ter fubido a efcada, fó por naõ ver taõ laftimoso efpectaculo; mas por naõ parecer deshumano, & por, de algum modo, confolar aos affiftentes, tomei o pulfo & perguntei quantos dias avia que eftava doente, que fymptomas padecia, & que remedios lhe tinhaõ feito. Foime refpondido que aquelle dia era o duodecimo da doença, defde cujo principio fe queixàra de grande enchimento do eftomago, de continuos defejos de vomitar, de dores na parte dianteira da cabeça, de faftio, de amargores da boca, & de febre intermittente, fem que lhe tiveffem applicado mais remedios que vinte fangrias, das quaes naõ colhera fruto algum; antes de dia em dia experimentàra mayor ruina. Não fe pòde crer quam grande furor, & raiva concebi, quando foube que o enchimento do eftomago fora a caufa da fobredita febre, a qual com facilidade fe podia curar com hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, ou com cinco, ou feis chicaras do meu cordeal purgativo, & que por incuria, ou medo indifcreto do Medico que affiftira, chegàra a doente a taõ lamentavel perigo; & commovido da compaixão, & ira me naõ pude conter fem exclamar, dizendo: Oh bom Deos ! eftes faõ os Medicos, que a boca cheya fe jactaõ de verdadeiros filhos de Galeno? eftes faõ os que querem fer tidos por oraculos? eftes os grandes Methodicos? eftes os Hippocraticos? quando das regras, & preceitos de taõ grandes oraculos, vivem taõ efquecidos, que mais parecem feus antagoniftas, que feus imitadores? pois em huma febre intermittente, cuja caufa material refido dentro do eftomago, tiraraõ (a olhos fechados) tanto fangue, que a fizeraõ continua, & mortal, naõ tendo ella perigo; mas que fucceffo bom fe avia de efperar de huma cura feita contra a razão, & e contra os preceitos de Galeno? (2.) o qual nenhuma coufa prohibio tanto, como as fangrias avendo enchimento no eftomago, ou amargores da boca, fem o defpejar primeiro com huma purga, ou vomitorio, & aquelles Medicos, que fizeram o contrario, & naõ derem ouvidos a eftes confelhos de Galeno, & meus, efperimentaraõ defraçados fucceffos, & e na hora da morte daram a Deos muito eftreita conta dos doentes, que fiaraõ delles as fuas vidas, & por fua culpa, as perderaõ. Como pelo contrario faraõ curas milagrofas os Medicos, que defpejarem logo o eftomago aos que adoecerem por caufa de enchimento delle, como eu o fiz em o cafo prefente, dando à fobredita enferma quinze grãos de pò de quintilio defatados em tres onças de agua commua; & evacuou por ambas as vias tam copiofamente, que dentro de poucas horas teve grandiffimo alivio, & em quatro dias farou com admiraçaõ de todos os circunftantes.

2. Nefte lugar quero advertir aos Medicos modernos, que naõ fangrem aos feus enfermos por qualquer leve caufa; mas fó quando os obrigar huma tal neceffidade, que naõ poffaõ falvarlhes as vidas de outra forte, porque ainda que os taes doentes, em quanto faõ moços, naõ fintaõ os damnos, que as muitas fangrias lhes fazem; comtudo paffados alguns annos, os choraõ amargamente; porque huns cahem em parlefias, outros em apoplexias, outros em convulfoes, outros em eftupores, & em fraquezas da vifta, outros em cruezas do eftomago, outros em oppilações, outros em hydropefias, outros padecem flatos, & ventofidades, outros se fazem hypocondriacos, outros hecticos, outros tificos, & outros finalmente cahem em muitas miferias, em que naõ cahiriaõ, fe a natureza não eftiveffe tam gaftada, & enfraquecida pelo demafiado fangue que lhe tiraraõ: porque affim como quem para comprar hu veftido, vender hoje hum excellentiffimo contador por ametade do q val; à manhã para dar num banquete, vender hua quinta por ametade de feu valor; outro dia para comprar huma armação de pannos de Raz, vender huma morada de cafas por ametade do que lhe cuftàraõ; efte homem ainda que por entaõ fica remediado, & com o feu gofto fatisfeito, paffados poucos annos fe acha pobre, & cahido em fummas miferias, as quaes naõ fentiria taõ cedo, fe tivera vendido as fuas coufas com mais confideraçaõ, & fó nas neceffidades mais urgentes.

3. Ifto mefmo que fuccede cada dia aos que fe fangraõ hoje vinte vezes por huma leve dor de garganta, que fe podia curar com hum gargarifmo de agua de tanchagem, & leite, ou com agua de chicoria, criftal mineral, & arrobe de amoras, à manhã fe tornaõ a fangrar doze vezes por huma efpinha carnal, que fe podia curar com fermento, açafrão, efcabiofa, gema de ovo, & oleo rofado; dalli a quatro dias fe tornaõ a fangrar quatorze vezes por huma impingem, que fe podia curar pondolhe muitos dias faliva em jejum, ou esfregando-a muitos dias com o fummo da raiz da abrotea, ou dos jafmins, ou com o oleo de papel, outro dia fe torna a fangrar dezafeis vezes por huma inflammaçaõ que deu nos olhos, que fe podera curar com repetidos pedeluvios, & com deitar muitas vezes dentro nos olhos humas gottas de agua de tanchagem mifturada com pò de pedra Ematitis bem preparada, ou pondo fobre os olhos fechados humas talhadinhas de carne de vacca frefca, ou o meu admiravel lenimento dos olhos, que fó fe achará em minha cafa, & o naõ quero ter em botica alguma para defte modo tirar a occafiaõ de que o falcifiquem, & vendaõ com o nome de meu.

4. Eftes defgraçados homens, que naõ fizeraõ outra cufa mais que tirar fangue, ainda que por entaõ fe achaõ aliviados, & com faude, em breviffimos annos fe achaõ fem forças, & choraõ inconfolavelmente veremfe cheyos de achaques, que talvez naõ teriaõ fe fe ouveffem fangrado menos vezes, & poupado o feu fangue, pois he elle o thezouro da vida, & o balfamo da natureza, & faude humana. Ifto quiz advertir para bem do proximo, & fatisfaçaõ da minha confciencia; porque faço grande efcrupulo de naõ dizer a todos o quanto importa fangrar pouco para viver muito.

5. Naõ digo que fe poupem as fangrias, avendo nefeffidade dellas: mas digo que fe naõ appliquem com qualquer leve caufa, nem em todas as doenças; do que já fe queixava Cornelio Celfo, (3.) & com muita razaõ; porque como diz Galeno, (4.) das muitas, & repetidas fangrias fe feguem doenças incuraveis, & a morte infallivel.

6. Eu conheço nefta Cidade a alguns homens, que eraõ muito robuftos, tinhaõ excellentes cores, vifta agudiffima, eftomago forte, & nervos muito firmes, & dentro de breves annos fe acharaõ faltos de todos eftes dotes da natureza; & perguntadolhes eu que caufa tiveraõ para que fendo ainda moços, cahiffem em taõ rara mudança, & fraqueza de todas as potencias, me foi refpondido que elles naõ podiaõ attribuir a outra caufa aquella metamorfofi, fe naõ a ferem fangrados mais de cem vezes no difcurfo de dous annos. (Oh erro execrando, & digno de fer chorado com lagrimas de fangre !) Mas ainda depois de vistos os eftragos, que as muitas fangrias fazem, ouve homem taõ affeiçoado a efte genero de remedio, que diffe naõ tinha bom conceito daquelles Medicos, que fangraõ pouco: mas efte tal homem amigo de que o efgotaffem muito, conheceo à fua cufta os damnos, que fazem as fangrias dadas a cada paffo; porque fe vio cego, & aleijado; mas fentio efta perda, quando já lhe naõ podia valer o arrependimento.

7. E que diraõ de mim nefte paffo os barbeiros, que naõ fe perdem de amores pelos Medicos, que mandaõ fangrar pouco. Digaõ o que differem: que eu direi naõ tenho vifto peffoa alguma, que foffe muitas vezes fangrada, que chegaffe a noventa, ou cem annos: porque como o fangue he o balfamo da vida; ou, para melhor dizer, he o azeite, em que fe conferva a luz da candea da vida; quanto mais azeite tiver a candea, tanto mais tempo durarà a luz della: & pelo contrario, quanto menos azeite tiver, tanto menos durarà a luz, & claridade.

OBsERVAÇAM LIV.

De huma ictericia muito rebelde, a qual curei com os pós de quintilio tomados dous dias successivos; e com quatro apozemas aperitivas alternadamente tomadas; e finalmente com hum segredo particular, que preparo em minha casa para dar aos pobras de graça, e vender aos ricos por seu justo preço.

1. POstoque a ictericia seja doença muito ordinaria, e conhecida de todos; comtudo entre os Doutores Galenicos, e Chymicos ha grandes controversias sobre averiguar a geraçaõ, e lugar affecto desta enfermiadade: dizem os Galenistas que procede do figado, ou da bexiga do fel, ou da malignidade da colera: do figado dizem que procede, por estar taõ inflammado, endurecido, ou debilitado, que não póde apartar a colera excrementicia do sangue, e indo a dita colera misturada com elle, necessariamente tinge a superficie do corpo, e fórma a cor amarela: da bexiga do fel dizem que procede, se o orificio, ou cano, que della vai para os intestinos, se encheo, ou obstruiu com algum humor grosso, pedra, inflammaçaõ, ou compressaõ das partes vizinhas; donde se segue que naõ podendo o humor colerico passar, se repreza no figado, e bexiga do fel, e se mistura com o sangue, e corre todo o corpo, deixando-o tingido, e affeado com taõ horrorosa pallidez: finalmente de malicia da colera dizem que procede a ictericia, se pela má qualidade, ou grande quantidade della naõ puder a natureza apartalla da companhia do sangue, e viciandolhe a cor, he occasiaõ da ictericia.

2. Pelo contrario os Doutores Chymicos seguem outra opiniaõ tam differente, que se enfurecem, e fazem zombaria dos Medicos, que attribuem a ictericia ao fel excrementicio, naõ separado do sangue, quando o fel naõ he excremento, mas he o thesouro, e balsamo do sangue, muito proveitoso à natureza para subtilizar, e a vivar o sangue em ordem a fazer melhor a sua circulaçaõ: donde como o fel naõ carregue, nem faça violencia à natureza, naõ póde fazer ictericia, porque se a fizera, amargaria o sangue, e a ourina; mas como a experiencia mostra que nem o sangue, nem a ourina amargaõ, como os curiosos o tem experimentado quando a provaõ: logo a cor amarella procede de differente causa, qual he do estomago, e intestinos; os quaes cozendo, e digerindo mal o mantimento, se produzem excrementos amarellos, verdes, e negros, os quaes, ou se lançaõ fóra por vomito, ou se metem para os intestinos com os excrementos, que do chylo redundaõ, e ahi tomaõ as veas mesaraicas a parte mais pura do chylo, ficando o restante nos mesmos intestinos à maneira de excremento liquido de diversa cor amarella, verde, ou negra; donde succede muitas vezes que o tal excremento verde, amarello, ou negro com a forte attracçaõ das veas mesaraicas se leva ao figado, e ahi mancha o sangye com a sua depravada tintura. Daqui procede que o esterco dos ictericos pela mayor parte he branco, ou cinzento como alva de caõ; porque aquelle excremento liquido, que tingia as fezes, foi deferido para outros lugares, quaes saõ o figado, e a superficie do corpo; mas quando o humor excrementicio se detem no corpo muito tempo, ou se manda para as partes a que naõ deve mandarse gera enfermidades. Por tanto a ictericia naõ he fel, nem colera, nem humor natural; mas he hum veneno excrementicio, que carrega e aggrava de tal sorte ao pyloro, que a faculdade digestiva, e a distributiva se perturbaõ, e alheaõ de seu officio.

3. Reside pois este veneno, e tem o seu assento, e morada desde o pyloro, atè o fim do intestino duodeno; e como o tal veneno possa ter diversas cores, produz diversas sortes de ictericia. Porèm ainda que cada opiniaõ destas seja boa, e provavel, eu me conformo mais com os que dizem que a ictericia procede do excremento viroso conteudo na primeira regiaõ; e assim o conheci visivelmente, porque sendo eu chamado para curar a Joaõ Barbuda, morador na rua do Baraõ, que avia dous annos padecia a tal enfermidade, e tendoselhe applicado infinitos remedios baldados, lhe dei vinte grãos de pò de quintilio desfeitos em tres onças de agua commua, e deitou por ambas as vias tanta quantidade de humor, que dentro de tras dias teve grande alivio; mas porque huma melhoria taõ bem começada naõ fosse enganosa, ou retrocedece, ordenei que em tres dias alternados tomasse meyo quartilho de caldo de grãos pardos, cozidos com meya onça de cascas de raizes de salça, em que mandei soltar duas oitavas de trociscos de Fioravanto verdadeiros, que se acharaõ em casa de Joaõ Baptista Leytaõ morador à Cruz de Cata-que-faràs, ou na minha casa, porque os que se vendem fóra destas partes saõ falsificados; ordeneilhe depois disso que tomasse as seguintes quatro apozemas, cujas virtudes para desopilar, e curar as ictericias saõ mayores que todos os louvores.

4. Tomai de cascas de raizes de rubia tinctorum tres oitavas, de raizes de salsa da horta, de lingua de vacca, de funcho, e de espargos, de cada cousa destas huma onça, de folhas de epatica, de morangãos, e de avenca, de cada cousa destas huma maõ cheya, de semente de carthamo machucada seis oitavas, tudo se coza em panela de barro com a agua que for necessaria, e quando tirardes a panela do lume, deitareis de infusaõ no dito cozimento cinco oitavas de folhas de sene de Lapata, e duas oitavas de bom ruibarbo machucado com hum escropulo de erva doce, e huma oitava de palha de Meça, e depois de passarem doze horas se coe este cozimento, e estando o doente em jejum, lhe dei todos os dias seis onças delle; e sem embargo que este remedio obrou maravilhosamente comtudo porque ainda ficavaõ algũs vestigios de ictericia, lhe receitei o seguinte lambedor, que àlem de ser remedio mui efficaz, e especifico para esta doença, tem a singularidade de ser a primeira vez que sahe ao theatro do mundo por meyo da estampa, porque eu o quero fazer publico em serviço do bem commum.

5. Tomai de passas sem grainha seis onças, de raizes de losna mochucadas huma onça, de folhas de morangãos huma maõ cheya, tudo se coza em huma panela de barro com cinco quartilhos de agua commua, atè ficarem tres, e entaõ ajuntai a este cozimento duas oitavas de largis (que he huma casca que vem da India, mui parecida com a de canela, e se vende nas tendas do Terreiro do Paço,) e depois que der huma boa fervura, se coe este cozimento, e com o assucar que for necessario se faça lambedor, do qual tome o doente todos os dias em jejum quatro colheres, e outras quatro à noite, duas horas e meya antes de cear, bebendolhe em cima meyo quartilho de agua cozida com folhas de morangãos; e continuando este remedio nove dias, teve saude perfeitissima. Tambem ordenei que em quanto a cura durasse, bebesse agua cozida com huma maõ cheya de folhas de morangãos, e em sua falta póde servir a erva epactica, ou agrimonia; e que todas as noites comesse hum esparragado de folhas de rabãos, ou de agriões, ou de espargos, e que a gallinha, ou carneiro que jantase cozessem grãos pardos, e raizes de salça das hortas. E se algum dia succeder que os pós de quintilio, as apozemas, e o lambedor, e os mais remedios sobreditos faltem com o seu admiravel effeito, (o que eu naõ espero) recorraõ a minha casa, e nella acharaõ hum grande segredo, do qual tenho usado muitas vezes com felicissimo successo. Naõ ensino aqui o modo, com que o tal remedio se prepara, porque o quero deixar a meus herdeiros; e por varias razões, que os curiosos poderàõ saber na Observaçaõ cincoenta e seis.

6. Pudera nomear aqui os muitos doentes ictericos, que curei com o meu segredo, tirando Francisco Malheiro, para quem fui chamado depois de o terem ungido, e porque me constou que o dito enfermo padecia huma grande ictericia avia tres annos, lhe prognostiquei a morte; e com mayor certeza, vendo que no discuso de taõ largo tempo, se lhe tinhaõ applicado pelos melhores Medicos desta Corte, os mais efficazes remedios da Arte, e daqui inferi que a bexiga do fel tinha dentro em si algumas pedras, porque (moralmente fallando ) era impossivel que taõ qualificados remedios lhe naõ aproveitassem, se a causa da ictericia fosse outra; e mostrou a experiencia que me naõ enganou o meu discurso, porque abrindose o corpo do defunto para o embalsamar, se acharaõ na bexiga biliaria tres pedras, humas das quaes era tamanha como huma grande tamara, e do mesmo feitio, e as duas eraõ como duas avelans grandes, mas quadradas como os dados de jugar; deste successo podem ser testimunhas o Doutor Joaõ Bernardes de Moraes, Jaques Henriques, e o Doutor Diogo Mendes de Leaõ, que viraõ as pedras, e as tem hoje guardadas Jaques Henriques para memoria deste caso.

7. Duas cousas advirtaõ os Medicos modernos; a primeira que naõ ha ictericia muito antiga, que deixe de ser mortal; a segunda que naõ se empenhem com os remedios muito valentoens, quando virem grande resistencia na ictericia, antes usem de remedios brandos, e benignos, porque estes fazem algumas vezes curas, que os remedios fortes naõ podem fazer.

OBsERVAÇAM LV

De huma tosse tao violenta, e continua, que fazia vomitar quanto o doente comia, por cuja causa naõ só perdeo o dormir; mas emagreceo, e enfraqueceo de tal modo, que naõ podia estar em pe, nem dar huma passada; e estando sem esperança de vida, me mandou chamar, e dandome conta do que padecia disse que todas as vezes, que vomitava, sentia grande alivio na tosse. Desta noticia vim a entender que Vanelmonte falou verdade quando disse que as tosses, e catarros procediaõ do estomago e fundado nesta opiniaõ, e nos felizes sucessos, q nas tosses tenho observado com os vomitorios, lhe fiz tomar tres onças de agua benedicta em dous dias sucessivos e a hiera de Pachio em seis dias interpolados; pondolhe finalmente sobre a comissura a coronal rapada a navalha, hua massa, ou suspensorio feito de caracois, fermento alambre, incenso, almecega, e hua gema de ovo muito dura, pizando tudo muito bem; e foi Deos servido que com estes remedios conseguisse a saude desejada.

Maria do salvador moradora na rua da Rigueira, pacedeo largos tempos huma tosse taõ continua e violenta, que a obrigava a vomitar quando comia e por esta causa, como tambem porque naõ dormia, emmagreceo, e se debilitou de tal modo, que naõ podia estar em pè, nem dar huma passada; vendose a pobre mulher neste miseravel estado e que os remedios, assim comuns, como aquelles, que os medicos de maior fama avaliaõ por segredos particulares, e especificos, lhe naõ aproveitavaõ perdeo o animo, e quasi desesperada me chamou; e entendendo eu que tosse taõ cruel naõ procedia de intemperança quente do figado, como he opiniaõ commua dos Medicos antigos, os ques se persuadem que o figado he o culpado em todas as doenças.

enças do corpo humano: porèm com licença da veneravel antiguidade, eu naõ culpo ao figado nesta tosse; o que só culpo he huma perpetua fluxaõ da cabeça originada do tartaro viscoso, que está pegado nas tunicas do estomago; donde assim como na destillaçaõ da agua ardente, quantas vezes se repete, tanto mais subtil, penetrante, e sorte se faz: da mesma sorte, da perpetua sabida, e descida dos vapores, ou (fallando chymicamente) da perpetua circulaçaõ delles se exalta de maneira o humor excrementicio na degaldeza, e acrimonia, que com huma, e outra irrita continuamente as partes inferiores, e ao peito, donde he necessario que se diga tosse sucessiva, para deitarem fóra de um inimigo, que as offende. Neste lugar me parece que estou ouvindo as risadas, e zombarias, com que alguns Medicos desprezaõ esta doutrina, como tirada da Filosofia Hermetica: mas saibam os taes zombadores, que os Doutores Hermeticos (1.) nem defendem as suas opiniões, nem as confirmaõ com argumentos delicados, nem com palavras campanudas, e relevantes; mas com obras, curando radicalmente as doenças mais difficultosas, a cujas raizes nem chegaõ, nem podem chegar os remedios de Galeno; porque saõ mais fracos, menos purificados, e de virtudes menos produraveis: o que naõ succede com os remedios chymicos, que por serem mais puros, e subtilizados penetraõ, e chegaõ com toda a sua virtude até onde está a doença, por mais distante, e profunda que esteja, como se deixa ver na presente enferma, a quem depois de lhe terem applicado muitos remedios sem effeito, aproveitou maravilhosamente hum remedio Chymico, o qual tinha naõ só virtude de purgar, mas particular efficacia de prohibir a continua fermentaçaõ do humor tartareo, viscoso, e pungente, que estava pegado nas tunicas do estomago, e era a causa da tosse, e dos vomitos, como claramente se conhecia, pois aliviava muito todas as vezes que vomitava, tratei pois de lançar fóra do estomago o dito humor, dando para isso dous dias sucessivos , tres onças onças de agua benedicta vigorada, porque como dizem graves Authores, (2.) nas tosses antigas, que naõ obedecem a outros remedios, nenhum medicamento as cura taõ presentaneamente como os vomitorios; assim o observei no presente caso, porque a doente conheceo com elles notavel melhoria, e porque a quiz segurar nella, lhe dei seis vezes ( em dias alternados) quatro escropulos da hiera de Pachio, que se for feita com toda a perfeiçaõ, faz maravilhosos proveitos nas tosses, e estilicidios importunos como o certificaõ alguns Varões insignes (3.) e eu o experimentei assim; porque foi taõ grande a quantidade de humor, que deitou por ambas as vias, que o naõ posso explicar; e desta descarga se seguio taõ notavel alivio, que naõ tussio, nem vomitou mais. E porque a cabeça, pela falta do somno, e pelos muitos vapores, que tinha recebido tambem era culpada, ao menos por sympathia, lhe appliquei (rapada primeiro à navalha) hum grande consortativo, suspensorio, e absorvente das muitas humidades, para que naõ cahissem mais no peito, e fomentassem nova tosse; e o mandei preparar na fórma seguinte. Pizem uma duzia de caracois com huma gema de ovo dura, e um pouco de fermento, e a esta massa bem pizada, unida e incorporada mandei ajuntar de pò de alambre, de incenso, de almacega, rosas, e sandalos, de cada cousa destas hum escropulo; e estando esta massa bem misturada se estenda em um panninho, e se applique sobre a commissura coronal, e se repita cada vinte e quatro horas. Finalmente mandei que todas as noites (quando se recolhesse a dormir) tomasse dous escropulos da seguinte massa, que ajuda muito o somno, engrossa por excellencia os estilicidios delgados, tempera efficazmente as tosses, e fluxões inportunas.

Tomai de azevre succotrino, e de alambre preparado, de cada cousa destas duas oitavas, de açafraõ de França huma oitava, de incenso macho duas oitavas, de laudano opiado hum escropulo; todas estas cousas se misturem com meya onça de cerebithina de de beta, posta em ponto sormense pilulas, de que se tomem os dous escropulos cada noite; e foi o effeito taõ prodigioso, que mais pareceo obra de milagre, que da Arte. Os q naõ quizeram usar das sobreditas pilulas, por entrar nellas o laudano opiado tomem oitava e meya, ou duas oitavas de diacodio ao deitar na cama, e observaraõ maravilhosos effeitos; porque este admiravel remedio cura por modo de milagre as tosses secas, que ordinariamente procedem de humores serosos, acres, e delgados; suspende todas as destillações, e fluxos de humor acre concilia somno modera as camaras de sangue, dà grande alivio nas dores de colica, modifica muito o calor das febres ardentes, abranda a sede, suspende os suores, quando saõ tantos, que tememos que os doentes caiaõ em algum syncope: convem muito aos que tem vagados causados de vapores delgados, acres e mordazes, que sobem do estomago, ou do coraçaõ, ou figado, a cabeça. Finalmente he o diacodio huma medicina soberana, para todas as doenças que procederem de humores subtis, acres, e mordazes: assim o dizem Fernelio, (4.), soriano, (5.) Donzeli, (6.) Zulfero, (7.) Montano, (8.) e eu o digo tambem assim porque tenho usado muitas vezes do tal remedio com felicissimos sucessos.

Mas porque nas terras pequenas se naõ achará o diacono, ensinarei (em lugar delle) dous grandes remedios; o primeiro se faz do modo seguinte. Tomai tres onças de raizes de malvaisco, machuquemse muito bem, e se deitem de infusaõ tres dias em duas canadas de agua quente, no fim do qual tempo se retirem as raizes da agua, e se pizem muito bem em hum gral de pedra, e aquella massa se coe por pineira de rala do mesmo modo, com que se passa o marmelo para fazer marmelada, e com esta massa se misture huma onça de po de alcaçus, tres oitavas de flores de enxofre, e tres de Beijoim, e tudo se incorpore com agua de alquetira bem grossa, e se formem pastilhas, que depois de bem seccas, se guardem para trazer todo o dia dia na boca, a alguns tocigosos dei huma oitava destas pastilhas feitas em pò, misturado com huma gema de ovo mole, e lhes aproveitou muito naõ sò nas tosses, e sarrações do peito; mas nas picadas, e ardores da ourina: o segundo remedio com que tenho curado muitas tosses de causa quente, e de limpha mordaz, e picante; se faz de mucilagem de marmelo ajuntandolhe tanta quantidade de goma de trigo, e manteiga crua, quanta for necessaria para fazer huma manteiginha, ou um looc, e desta tomara o doente meya onça cada dia ao deitar na cama, e outra meya onça na madrugada quando acordar.

E porque ja encontrei algumas tosses taõ rebeldes, que se naõ renderam com estes nem com outros remedios de iguaes virtudes; quero ensinar hum com que livrei a muitos tocigosos, que estavaõ reputados por incuraveis, o qual remedio se faz do modo seguinte. Tomai duas onças de cevada pillada, e sem ser atada em panno, se ponha a cozer em panela de barro com duas canadas de agua commua, ate que a dita agua se gaste quasi toda, e entaõ se escoe a que ficar, porque tem recebido toda a reuma, e flatulencia da cevada; e sobre adita cevada se tornem a deitar outras duas canadas de agua commua, e torne a cozer tanto tempo, até que a agua fique em quantidade de quartilho e meyo; tirem entaõ a panela do luino e guardem aquela agua, e em hum gral de pedra pizem muito bem a sobredita cevada, e passem a massa por uma pineira rala, do mesmo modo que se passa a massa do marmelo para fazer marmelada; tomareis entaõ ametade daquella agua, e nella fervereis hum punhado de farlo de trigo lavados primeiro em tres aguas para que fiquem bem limpos da farinha; e nesta tal agua, depois de coada, e livre dos farelos, se fará um caldo com ametade da massa da cevada, adoçandose o tal caldo com duas colheres de calda de assucar rosado, ou de lambedor de hera terrestre, e por tempo de hum mes tomara o doente dous cada dia, e pode estar certo, que se a tosse naõ for mortal por por decreto absoluto de Deos, conseguira a saude que deseja; porque com a frescura da cevada, brandura do seu cremor virtude absterciva dos farelos, e virtude especidica da hera terrestre, e do assucar rosado, se adoçará a acrimonia, e slsugem do humor que faz a tosse, e se temperará a quentura, e se facilitaraõ os escarros

5. Da virtude destes caldos, para tosses ferozes, e rebeldes podem ser testimunhas Dona Izabel Guilherme; que depois de padecer seis meses huma tosse taõ teimosa, que zombou de infinitos remedios, e chegou a deitar sangue, e estar ja mandada fora da Cidade a tomar outros ares, e desconfiada da vida, só com estes caldos sarou; o mesmo effeito maravilhoso, observou, com os ditos caldos, o padre Bras varela, Religîoso da Companhia de Jesus, estando já deixado dos Medicos por incuravel; com estes caldos curei a Luis Madeira, Ourives do ouro, deitava este homem huns escarros taõ grossos, purulentos, e pezados, que se hiaõ ao fundo da agua, e quando se entendeo que estava tizico lhe acudi com este remedio, e só com elle sarou radicalmente. Naõ alego mais testimunhas em abono deste maravilhosos remedio, porque para os bem intencionados, estes exemplos sobraõ, e para os mal affectos nenhumas asseverações bastaõ.

OBsERVAÇAM LVI.

De uma vertigem muito rebelde, que refletindo a miltre medios excellentes, se rendeo aos pós de quintilio, & a humas pilulas, que preparo por minhas mãos, & se acharaõ em minha casa.

La disse Cataõ (1.) que os trabalhos, que daõ muito pesar quando padecidos, daõ algumas vezes mui grande gosto quando lembrados: assim o tenho observado em varios apertos, em que me tenho visto com algumas doenças rebeldissimas, que depois de me custarem excessivos enfados, vim a conseguir gloriosos triunfos. seis meses avia que Manoel Vicente, oficial de Carpinteiro, & morador na Ferreira de Lisboa, padecia vágados tam repetidos, que raro era o dia, que naõ se visse soçobrado com cinco, & seis insultosos vertiginosos taõ grandes, & perduraveis, que em cada hum delles cuidava que perdia a vida; porque tinha ouvido dizer, que se as vertigens duravaõ muito tempo, degeneravaõ em gotta coral, ou em apoplexia, & desta em a morte: temeroso o pobre homem com tão ruins noticias, & obrigado do risco da enfermidade, fez eleiçaõ da minha pessoa para o curar. Confesso que entrei nesta batalha com poucas esperanças de vitoria, porque demais de que a doença tinha já raizes, o homem era velho, o temperamento adulto, a melancolia grande, & a desconfiança mayor; contudo por naõ faltar à obrigaçaõ da caridade, nem desanimar ao doente, comecei a fazer juizo sobre a causa das taes vertigens, & modo com que fazem; & achei que a causa eraõ humores viciosos, & cacochymicos, que residiaõ no estomago; o que conheci, porque todas as vezes, que tinha vertigem, sentia grandes enjoamentos, & desejos de vomitar, & se vomitava, conhecia muito alivio, & lhe durava o vagado menos tempo. Tambem o grande fastio, & os contínuos amagores de boca, que o doente padecia, eraõ indicios infalliveis que o estomago era a fonte, donde se levantavaõ, & subiaõ os vapores perversos, excrementícios, & estranhos, os quase querendo misturar com os espiritos animaes, que vivificaõ a cabeça, & fazem a vista, & naõ sendo possível uniremse os maos espiritos com os bons, daõse os bons por obrigados a tomar armas, para deitar fora de si a huns taõ damnosos companheiros, como saõ os taes vapores; & como esta contenda, & batalha se faz dentro da cabeça, & hum lugar redondo; se volta tudo em gyro; & anda à roda tudo; & deste modo se formaõ as vertigens, até que a aura maligna, & os vapores perversos foge, ou se desvanecem: como succede aos bebados, aos quaes os vapores do vinho, cru & mal cozido, que sobem à cabeça, lhe ofendem a imaginaçaõ, & pelos nervos opticos saõ levados ao humor cristallïno, & ahí, como os taes vapores naõ sejaõ da substancia dos espiritos animaes, naõ podem misturase com elles; antes porque saõ perseguidos dos espiritos animaes, fogem, & andaõ à roda pela redondeza da cabeça, & por isto todas as cousas exteriores parece que se movem, & andaõ à roda, porque os interiores se movem, & voltaõ em gyro. Isto te deixa ver mais claramente em hum espelho, porque se bolem com elle, ou o movem, tambem parece que se movem todas as cousas, que nelle se representaõ donde como as especies visiveis se representaõ no humor cristallino como em hum espelho, se o humor cristallino se mover para affugentar o vapor perverso, necessariamente se hão de mover tambem as cousas visiveis, que no tal humor cristalino se representaõ.

2. Feita esta consideração sobre a causa, & modo como se fazem as vertigens, entendi que faria hum grande bem ao enfermo se deitasse fora da fortaleza de Pallas a huma doença taõ cruel, que tinha feito allento, & perpetua morada na cabeça, como o fiz dando ao doente, tres dias sucessivos, tres onças de agua benedicta vigorada, para que affim se alimpasse bem o estomago dos humores tartareos, & perversos, que nelle estavaõ, & de que procedião semelhantes vapores, & vertigens. Feitas estas evacuações com grande felicidade, descansou o enfermo seis dias, & passados elles, para acabar de vencer huma doença taõ rebelde, receitei as seguintes pilulas, que saõ muito especificas, & suavemente purgantes.

3. Tomem de pilulas sine quibus, & aureas, de cada cousa destas huma onça, de pò de casca de raiz de helleboro negro dous escropulos, tudo se misture muito bem, & dous escropulos, tudo se misture muito bem, & se formem pilulas, das quaes daraõ ao doente quatro escropulos em dias alternados; & com este remedio conheceo grandissimo alivio : & para conseguir a perfeita faude que desejava, lhe fiz tomar o seguinte electuario, trinta dias sucessivos. Tomem de raiz de peonia macho, de cabeças de rosmaninho, & de raiz de costo, de cada cousa destas dez oitavas; de agarico trociscado cinco oitavas, de piretro, de alcaravia, de semente de endro, de assafetida, & de raiz de aristoquia redonda, de cada cousa destas duas oitavas & meya, de succo de cebola albarrãa, & de bom mel, de cada cousa destas huma libra, & duas onças; cozaõse estas cousas juntas numa tigela de fogo vidrada, com fogo brando, até que fiquem em boa consistencia, & entaõ se ajuntem os pòs sobreditos, & se faça electuario, ao qual ajuntem de pò subtilissimo de folhas de cardo santo meia onça; & desta massa dei ao doente, estando em jejum, tres oitavas cada dia por tempo de hum mes, & farou por todo de milagre.

4. Mas se algum dia succeder que as vertigens sejaõ taõ rebeldes, que naõ se rendaõ aos sobreditos remedios, saibaõ que eu tenho hum segredo taõ efficaz, que de muitos annos a esta parte que sou Medico, me naõ faltou com o seu admiravel effeito; com tal condição que o achaque naõ seja muito antigo, nem o doente velho. Naõ declaro aqui o modo de preparar o tal segredo, & de alguns outros por duas razões: a primeira, porque se cahir entrevado, ou me acontecer algum infortunio, ou contra tempo, quero ter esta amarra a que me apegue, & sustente: a segunda, porque he razaõ que o Autor saiba mais alguma cousa que os seus livros.

5. Nem se admirem os Leitores de em purgar tantas vezes a este enfermo, porque se attentamente considerarem a doutrina dos Mestres, facilmente conheceraõ que hum inimigo taõ rebelde, & que tinha offendido a cabeça tanto tempo, se naõ avia de render de outro modo: porque, como diz Jaquino, (2.) & outros Doutore: Por isso os Medicos do nosso tempo naõ fazem grandes curas, porque naõ usam os grandes remedios, nem os repetem muitas vezes. A mesma queixa faz Alexandre Massaria, (3.) quando diz: Verdadeiramente entendo q neste tempo se não cura a gotta coral, nem outras doenças grãdes, porque os Medicos naõ sabem chegar aos remedios mais efficazes, que tenhaõ proporção com a doença, como faziaõ os antigos. Por tanto se ha de advertir que naõ basta hũa só purga, quando a materia he grossa, ou viscosa, ou está em lugar distante; mas são necessarias muitas. Rondelecio (4.) Author gravissimo diz que os Medicos costumam ter medo do diagridio, das coloquintidas, & de outros remedios valentões sem os quais não se podem curar doenças rebeldes. Poterio (5.) deu quarenta dias hum cozinheiro purgativo a certo doente: porque diz elle que tem por cousa ridicula dar tres xaropes para preparar, tres apozemas para abrir, nove dias aço para desopilar; porque os remedios, como diz Galeno, (6.) naõ tem numero certo, & prefixo; mas devem applicarse as vezes que forem necessarias, ainda que em muitos dias naõ vejamos proveito delles.

6. Fiado pois na authoridade de tão grandes Doutores, & commovido das proprias experiencias (sem fazer caso do que poderia dizer a gente vulgar) naõ desisti de purgar o doente hũa, & muitas vezes, atè q conheci q a enfermidade estava totalmente vencida.

OBsERVAÇAM LVII.

De hum menino, que sobre estar excessivamente magro, tinha o ventre muito duro; & inchado; & padecia hũe fome taõ grande, & continua, que nenhum mantimento bastava, para satisfazer o seu desejo; o que tudo procedia das muitas; & grandes lombrigas, que lhe roubavaõ o q comia, & applicandolhe eu sobre o ventre; & cadeiras certo emplastro, & dandolhe a beber huma agua, deitou àlem de outros huma lombriga taõ grande; q tinha duas varas, & no mesmo dia ficou saõ.

1. Ao homem chamaõ os Filosofos Mundo pequeno, & com grande razaõ; pois no homem se acha tudo o que no mundo grande se divisa. Consta o mundo grande de quatro elementos, Terra, Agua, Ar, & Fogo; aos quaes correspondem os quatro humores, sangue, Colera, Flegma, & Melancolia: & da mesma forte que no mundo grande ha diversidade de planetas, de que procedem diversos influxos, no corpo humano; ha diferentes membros, de que procedem differentes acções. Ao sol, & à Lua correspondem, com grande semelhança, o coraçaõm, & a cabeça: & do proprio modo que o sol he o coraçaõ do mundo, se póde tambem dizer que o coraçaõ he o sol do homem: & assim como o sol com a sua presença, & quentura alegra, & dà vida, & esforço a tudo; porque a terra se alcatifica de flores, as ervas crescem à competencia, as arvores brotaõ fecundas, & se revestem de verde gala de esperança: pelo contrario ausentandose o sol, logo a terra entristece, as ervas se seccaõ, as flores murchaõ, as arvores se despem das folhas, & tudo o que a fecundidade da natureza avia produzido, se desmaya. Da mesma forte todo o corpo humano se anima, & repara com o perpetuo movimento, & calor vital do coraçaõ, pois este he a fonte da mesma vida,& estando este em seu vigor, se conservaõ tambem vigorosas todas as partes; mas estando enfraquecido se tornaõ todas languidas: & assim como se o sol suspendesse o seu movimento, o mundo acabaria logo; se o influxo do coraçaõ cessasse, logo a vida se perderia.

2. Tem o Mundo grande Mar, Rios, & Regatos, a quem correspondem as veas grandes, & pequenas, & as capilares: no mundo grande ha tempestades, & furacões de vento, a que correspondem os flatos, que sentimos andar vagando de huma parte para outra: ha no mundo grande eclipses, & nuvens, que naõ deixando ao sol comunicar as suas luzes, fica toda a terra em trevas; a isto correspondem as apoplexias, & parlesias, que por inteposiçaõ de alguns humores grossos, & viscosos são deixaõ communicar os influxos dos espiritos vitaes, & animaes aos membros do corpo, donde necessariamente ficaõ os ditos membros privados do seu natural movimento, & sentimento. Ha no mundo grande terremotos, a que correspodem os tremores, que vemos nas maleitas, & os movimentos convulsivos, que observamos nas gottas coraes. Ha no mundo grande chuveiros, & innundações de agua, a que correspondem os suores copiosos, que cada dia vemos. Finalmente ha no mundo grande varios animaes, que a natureza creou com taõ differentes formas, & condições, como foi a diversidade de sua caprichosa idea: & assim como no mundo grande se gèraõ muitos bichos, naõ por virtude seminal, mas de huma substancia podre, & corrupta; da mesma forte no nosso corpo, por intervençaõ do calor natural, se géraõ de materia humida, & podre, lombrigas em todas as partes, em que se achaõ disposições para ellas.

3. Na cabeça se criaõ, & fazem nella grandissimas dores, perturbações de vista, & do juizo, assim o dizem Benivenio, (I.) Fabricio, (2.) & Avicenna; (3.) nos rins, nos ouvidos, & nos dentes se criaõ, & fazem nas taes partes grandes dores; assim o dizem Fernlio, (4.) Pacheco, (5.) Guilherme, (6.) Janfonio, (7.) Alfario, (8.) & Poterio; (9.) na madre se criaõ, & fazem nella picadas, & comichões intoleraveis ; assim o diz Beckers; (10.) no estomago se criaõ, & fazem cardialgias, desmayos, dores, vomitos, fomes insaciaveis, & mortes apressadas; assim o dizem Traliano, (11.) Codronquio, (12.) & Boneto; (13.) nas veas se criaõ, & sahem pela fizura que faz a lanceta, assim o diz Zacuto, (14.) & eu o digo tambem, porque as vi sahir pela sangria que se fez a hum Religioso Agostinho morador no Convento da Graça; & por outra sangria, que se fez a hũa criada de Henrique Correa da silva, morador defronte da Igreja das Chagas; no coraçaõ se criaõ, & fazem palpitações, & ancias mortaes como certifica Boneto; (15.) finalmente em todas as partes do corpo aonde ouver materia humana, podre, com abundancia de calor se podem gerar lombrigas, & dellas muitas enfermidades como saõ gotta coral, estupores parlesias, apoplexias, tetanos, opistotanos, convulsões, colicas, tosses, camaras, puxos, soluços, fastios, rangimento de dentes, comichaõ de narizes, & do sesso, estremecimentos, iliaca, modorras, febres, faltas de sono, anxiedades, suspiros, tristezas, intercadencias de pulsos, fedor de boca, inchacaõ de ventre, tiziquidade, magreza, & outros symptomas naõ formidaveis, que o veneno mais presentaneo os naõ pòde causar peyores; como pela seguinte Observaçaõ mostrarei claramente.

4. Aos 17. de Agosto de 1670. fui chamado para curar a hum menino de cinco annos, chamado Manoel Lobo da silva, morador na rua direita de são Joseph.

Padecia o dito menino ancias do coraçaõ taõ excessivas, que muitas vezes degeneravaõ em tremores, & desmayos, com tosse continua, comichaõ de narizes, & sesso, summa magreza; & ventre taõ inchado, & duro, que excedia ao de huma mulher prenhada de nove meses; & o que mais era, tinha huma fome taõ insaciavel, que naõ avia comer que lhe bastasse, nem o satisfizesse. Destes finaes vim a conhecer que o tal menino estava cheyo de muitas, & muy grandes lombrigas, as quaes lhe furtavaõ o mantimento, de que elle avia de sustentar, & por isso faltandolhe o alimento necessario emmagrecia a olhos vistos, & tinha igualmente humas ancias, & agonias perpetuas, procedidas tanto das pendencias, que as lombrigas faziaõ entre si sobre qual avia de furtar primeiro o mantimento, que no estomago entrava, quanto pelas furias com que se assavanhavaõ, quando naõ achavaõ que commer. E para mais me certificar se no tal doente avia lombrigas, lhe appliquei emplastro, que entre os remedios exteriores, tem (na minha estimaçaõ) o melhor lugar.

5. Tomai de folhas verdes de ortelãa, de losna, de artemisa, & de erva veronica (chamada dos Latinos abrotanum foemina) de cada cousa destas hum punhado, pizese tudo muito bem em hum gralde pedra, ajuntandolhe de farinha de tremoços, po de coloquintidas, azevre, & de myrrha, de cada cousa destas huma oitava, de açafraõ subtilissimamente polvorizado meya oitava, de vinagre fortissimo, quanto bastar para fazer uma massa; & esta mandei renovar a cada tres dias; & applicar assim sobre o estomago, & barriga, como na cruz das cadeiras; & foi infinito o numero de lombrigas que deitou com o tal remedio. E para que naõ ficassem algũas no corpo; fiz que o enfermo tomasse por seis dias continuos (estando em jejum) quatro onças da seguinte agua, que para matar lombrigas, tem huma virtude quasi milagrosa. Tomem huma canada de agua da fonte, misturemlhe duas onças de azougue, & dentro de huma panela de barro se ferva atè gastar ametade, & ao depois se deite a tal agua em huma garrafa com tanta cautela, que naõ passe com ella cousa alguma do azougue, & a esta agua ajuntem hũa oitava de pó de semente de Alexandria; & desta bem vascolejada dei ao menino a quantidade acima dita ; & foi o sucesso taõ maravilhoso, que (demais de outras lombrigas) deitou huma, que tinha quatro covados de comprimento, com grande admiraçaõ das pessoas, que a viraõ; & daquelle dia por diante se despedio a febre, desinchou o ventre, desvaneceraõse as ancias, tirouse a tosse, & naõ teve mais fome, nem comichaõ nos lugares aonde as lombrigas costumaõ fazella; antes começou logo a medrar a ter boas cores, & saude, & esta hoje Religioso professo nos Paulistas.

6. Alem destes dous remedios, que saõ dos mais efficazes que tenho achado no discurso de muitos annos, tenho hum, que foi desejado de muitos, mas de niguem atè hoje conseguido; porèm agora o quero fazer publico, para utilidade de todos. Tomai de raizes de grama, de entrecasco do pao de medronheiro, de pessegueiro, & da raiz do freixo, de cada cousa destas meya onça, tudo se pize em gral de pedra, & em panela de barro se cozaõ com seis quartilhos de agua da fonte por tempo de meya hora, & coandose, desfareis neste cozimento seis oitavas de po subtilissimo de unha de vacca, que primeiro seja levemente torrada no forno; & desta agua toldada com o dito pò dareis todos os dias em jejum seis onças, ou a quantidade que for necessaria conforme a idade da pessoa; & naõ averà lombriga, por mais escondida, ou obstinada que seja, que naõ morra aos fios de tão poderosa espada.

7. Com estes mesmos remedios diz deitar outra lombriga de cinco varas a hum negro, chamado Gonçalo, escravo de Manoel Franco, do qual já tinha desconfiado certo professor de grande nome, porque o vio tão inchado de barriga, & magro de todo o mais corpo, que teve por infallivel o seu perigo; mas como eu tenho alguns remedios particulares, que preparo por minha curiosidade, & compaixaõ que tenho dos doẽtes, porque nas boticas se nao achaõ por todo o dinheiro, vem parar ás minhas mãos muitos casos desesperados, & he Deos servido que em premio do meu zelo, rito da gargante da morte, a muita parte daquelles, de que já naõ avia esperança. E se algum dia acontecer (como he factivel) que estes remedios faltem com o effeito desejado, recorraõ a minha casa, que eu tenho, entre outros segredos, hum para matar lombrigas taõ efficaz, que nunca me deixou envergonhado; com tal condiçaõ, que no doente haja capacidade para o tomar, porque tanto tem de excelente na virtude, quanto de desagradavel ao palato.

OBsERVAÇAM LVIII.

De huma mulher, que estando prenhada de poucos meses cahio em huma hydropesia, & continuando o tempo da prenhez, cresceo a inchaçaõ do ventre a huma taõ grande deformidade, que metia medo aos que aviaõ; chegando porèm o dia de parir, em que todos tinhaõ posto as esperanças da sua vida na copiosa purgaçaõ que esperavaõ, faltou de todo a descarga lochial, & por esta causa esteve em grandissimo perigo, do qual livrou a beneficio de huma purga, que lhe dei no quinto dia depois de ter parido.

I. Pertendo referir hum caso admiravel, em que os Oraculos da Medicina, & os que occupàraõ as mayores alturas da Arte curativa, se cansaraõ muitas vezes de balde.

2. Maria de Almeida moradora no beco da Galè, sendo casada concebeo; & andando o tempo, ou por causa do sangue reprezado, como succede a todas as mulheres quando andaõ prenhadas; ou por alguns alimentos depravados de que usou com os privilegios da prenhez, ou por outro qualquer motivo, que naõ pude saber, foi inchando pouco a pouco, & cahindo em hua hydropesia tão grande, que os humores serosos, por serem muitos, chegaraõ a occupar as partes espiritaes, & os orgãos da respiraçaõ, donde procedeo, que comprimido o bofe, & o septo transverso, & cheyo o peyto de serosidades, estava a pobre mulher taõ falta da respiraçaõ, & ventilaçaõ necessaria, que nem podia estar deitada, nem respirar, menos que estando em pè, ou assentada: & como por instantes se fosse suffocando, passava os dias, & as noites inteiras sem dormir; da qual vigia, & falta do descanso necssario se dissipàraõ os espiritos vitaes, & se resfriaraõ as officinas dos cozimentos de tal sorte, que em lugar de gerarem sangue bom, & laudavel, geravaõ humores

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Observaçaõ LVIII.

crus, & serosos, por cuja causa cresceo cada vez mais a inchaçaõ, & a hydropesia ; & foi tal o descuido, que esta mulher teve com a sua saude, que vendose neste estado, naõ chamou Medico para que a curasse, fiandose em que o tempo de parir estava muito perto, & que se purgasse bem, como esperava, seriaõ escuzados outros remedios: porque como diz Galeno, (I.) se as evacuações da madre saõ copiosas, livraõ de muitos achaques as mulheres; chegada porèm a hora do parto nasceraõ dous meninos, mas nem por isso purgou, nem aliviou cousa alguma; antes opprimindose a respiraçaõ cada vez mais, lhe parecia que acabava a vida; & porque naõ morresse como bruta, chamou a dous Medicos, os quaes desconfiàraõ tanto da enferma, que na primeira visita lhe mandaraõ dar todos os sacramentos, & pela naõ desconsolarem, nem a deixarem desemparada, determinàraõ tentar alguns remedios, & porque (como dizem as velhas) tantos saõ os homens, quantos saõ os pareceres; fizeraõ varios juizos sobre a deliberaçaõ do medicamento, que lhe aviaõ de applicar.

3. Dizia hum dos Medicos, que se (em lance taõ apertado) avia alguma esperança de remedio, eraõ as sangrias dos pès; porque succedia algumas vezes que a grande quantidade de sangue suffocando ao calor natural, era a causa semelhante enfermidade, a qual só com sangrias se curava algumas vezes, como se deixava conhecer pelo exemplo, & experiencias de Galeno, (2.) o qual diz que da mesma sorte que o fogo se apaga por causa da muita lenha, & só tirandose parte della se conserva, & desaffoga; da mesma sorte o calor por carga do muito sangue se suffoca algumas vezes, & só tirandose se alivia; & até Avicenna (3.) que reprova as sangrias nas hydropesias asciticas, diz que se a tal hydropesia proceder de retençaõ do sangue, se deve sangrar; fundado nos conselhos destes graves Authores, profiava o sobredito Medico, que a doente se sangrase sobpena de morte.

4. Negava o outro asserrimamente as sangrias dizendo

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Observações Medicas Doutrinaes.

que quem tirasse sangue à sobredita mulher estando hidropica, seria reo da sua morte, porque naõ só nos tempos prezentes; mas tambem nos passados era ley inviolavel que naõ sangrassem aos hidropicos; (4.) mayormente quando a fraqueza, que a falta de dormir avia causado, & o trabalho de nove meses de roim prenhidaõ, as muitas horas de dores ao parir, & a condição da doença lympathica, & serosa, eraõ fortissimos impedimentos para as sangrias. Alegava tambem o Medico em seu favor, & repulça da sangrias a Galeno, (5.) o qual diz: se algum Medico quizer curar alguma doença, que necessite de evacuaçaõ, se não fassa a tal evacuaçaõ em quanto as forças se não repararem; mas como o Medico conhecer que estaõ restauradas de maneira que as evacuações naõ façaõ damno entaõ se cure a enfermidade, porque a principal indicação he a que se toma forças do doente. E como a doente esta sobre hydropica muito fraca naõ lhe convinhaõ sangrias.

Desta variedade de opiniões resultou hua grande confusaõ entre os parentes da parida, ignorando a qual dos votos aviaõ de seguir: para desidirem essta duvida foi preciso chamar terceiro Medico, & cahindo sobre mim a sorte, fui a casa da enferma a 26 de Fevereiro de 1669. & achandoa moribunda abrio os olhos & pondo -os em mim disse, com lastimosas, & mal formadas vozes, as seguintes palavras: supposto que nas minhas enfermidades sempre tive sucessos felicissimos nas vossas mãos, agora ainda que naõ espero ter a mesma dita, vos quiz chamar neste grande aperto, em que me vejo, para que compadecendovos do meu miseravel estado, me appliqueis os ultimos remedios, com que me restituais a vida, ou me apresseis a morte; porque me vejo cercada de tantas ancias, & agonias, que sem encarecimento posso dizer, que tenho inveja aos mesmos mortos.

6. Examinadas pois com toda a circunspecçaõ as causas da enfermidade, conheci que a doença estava radicada no humor seroso, & como nos humores serosos

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Observaçaõ LVIII

limphaticos, & alheyos da natureza do sangue seja conveniente o porgar, julguei que a sangria estava taõ fóra de ser util, que seria damnosa; principalmente quando a inchaçaõ do corpo era taõ excessiva, & de taõ desmedida grandeza, que seria impossivel sangrarse, ainda q na sangria consistisse o unico remedio da sua vida: quanto mais, que temi, que o mesmo seria picarlhe a vea, que gangrenarse a ferida, como muitas vezes succede nos hydropicos, & naquellas pessoas, cujo calor natural está demasiadamente fraco: & provera a Deos que o meu temor, & suspeita não sahissem tão verdadeiros, como a experiencia o mostrou; porque coçandose a doente em huma perna, se ferio com as unhas, & logo se gangrenou a ferida a que o Cirurgiaõ Carlos Peres curou com grande felicidade. Pelo que vendo a doente que a minha suspeita passou de conjectura a evidencia, & que o mesmo foi arranharse, que gangrenarse, (como eu tinha temido) cobrou taõ grande conceito da minha pessoa, que só quiz obedecer aos meus preceitos; & assim refutando eu as sangrias (pelas razões jà apontadas) fui de parecer que todo o empenho de Arte fosse provocar a purgaçao do parto, ajudando para isso a natureza com as seguintes fomentações applicadas ao ventre. Tomem de oleo de assucenas, de gergelim, & de bagas de loureiro, de cada cousa destas huma onça, de enxundia de coelho, meya onça, de oleo de espica, ou de alfazema huma oitava, misturemse, & com esta fomentaçaõ quente se padeje o ventre duas vezes no dia; usando tambem de repetidas esfregações, & ventosas nas pernas. Tudo isto se executou com meyor diligencia, que fortuna; porque nenhum alivio se seguio. No dia seguinte achei a doente muito affligida, com a mesma febre, & com hum frenesi continuo. Grande foi o desejo que tive de sangralla; mas a hydropesia, & a excessiva carga de humores crus puzerão embargos ao meu intento, & por isso me contentei somente com lhe mandar pôr nas curvas das pernas seis sanguesugas, as quaes se enchèraõ de tanto

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humor cru, & seroso, que eu, & os outros Medicos ficamos conhecendo o grande damno, que lhe farião as sangrias, se tivessem dado. No dia seguinte fui visitar a sobredita enferma, & a achei com a respiração mais presa, & com a inchaçaõ do ventre crescida da maneira, que parecia naõ ter ainda parido. Neste grande perigo não sabia darme a conselho: porque permittir que se sangrasse, tendo tão disforme inchação, era totalmente impossivel, & perigoso: purgalla estando tão visinha do parto, era exporme a calumnia do povo, que avia de dizer (se morresse) que eu a matàra: não lhe fazer algum remedio, & deixalla ao desamparo, era impiedade, & tyrannia mais propria dos tigres de Hircania, que de hu Medico Christaõ

7. Pelo que pondo de parte o rustico medo, que alguns Medicos tem de que a gente ignorante os desacredite, manifestei aos parentes da enferma o grande perigo em que estava ; & disse que a unica esperança; que avia para escapar da morte, era só o purgalla; mas que eu o naõ avia de fazer, sem que me dessem palavra de que naõ se queixarião de mim ; no caso que a doente perigasse. Estiverão por este conserto, & receitando eu a purga, foi tão feliz a evacuação, que com ella se seguio, que a olhos vistos desinchou, & em poucos dias teve saude tão perfeita, que ainda hoje vive, passa de trinta & sete annos.

8. Bem sei que de cura regular he prohido por todos os Authores (6.) purgar a huma mulher estando parida de poucos dias, porque tem mostrado a experiencia, que as camaras saõ perigosissimas nos primeiros dias de parto; mas tambem sei que nas cousas humanas nada ha que seja perpetuo, nem taõ infallivel, que avendo necessidade urgente naõ tenha suas excepções. Que cousa prohibio Hippocrates (7.) tanto como as sangrias nas mulheres prenhadas, pelo temor de que movessem? & não obstante isso, as sangramos todas as vezes que a necessidade o pode, sem que por isso movão. Nada encomenda Galeano (8.) tanto como

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que naõ sangremos aos meninos antes de terem quatroze annos; & hoje os mandamos sangrar antes he por Hippocrates (9.) dar de comer aos doentes no tempo da sezaõ; & comtudo naõ averá Medico tão falto de experiencia, que naõ saiba, que nos muito magros, seccos, esquentados, & colericos, se póde dar de comer em qualquer tempo de sezaõ, & ainda na entrada della, como Galeano (10.) o aconselha nos doentes de temperamento colerico, ou muito magros; pois se estas excepções se admittem nos casos de necessidade tambem se deve admitir da eu purga, à sobredita hydropica no seu perigo, ainda que estivesse parida de cinco dias; porque tambem a experiencia tem mostrado, que se as paridas naõ purgaõ, & no fim de sete, ou oito dias lhe daõ camaras, livraõ com ellas; porque a evacuação dos cursos supre a falta da evacuação do puerperio: logo se huma evacuação supre a falta da outra, muita razaõ tive de dar a purga; & o feliz sucesso que a doente teve com ella, acreditou a minha resoluçaõ; porque a livrou o perigo.

9. Desta Observaçaõ aprendaõ os Medicos modernos duas cousas: a primeira que algumas vezes he grande Arte o saber affastarse da Arte: a segunda, que obrem sempre o que lhes ensinar a razaõ, & a consciencia. Porque se eu me ouvera atemorizado com os receyos do que poderião dizer de mim, por purgar a sobredita mulher cinco dias depois do porto, quem duvida, que ella & outras, que livrei por este caminho morrerião? E supposto, que regularmente fallando, mais convenientes sejão as sangrias nos sobrepartos, do que as purgas; comtudo esta regra não he infallivel, nem perpetua; porque a necessidade diz. Valhes (12.) atropela a toda a ordem, & se deve antepor às leys commuas: se a mulher parida abundar em humores crus, & serosos, que só se devem purgar por camara; quem duvida que seraõ as sangrias danosissimas como o seraõ as purgas no parto, em que a mulher abunde com demasiado sangue, que só se deve tirar

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tirar pelas sangrias. Confesso ingenuamente que todas as vezes que vejo a alguma mulher; que estando sobre parto inchada, & cheya de humores crus, &sem lhe acudir a prgaçaõ devida àquella doença, a purgo, ainda que esteja parida de seis, ou sete duas, & sempre com feliz successo.

10. Este caso quiz dar à estampa, por me parecer digno de ficar em memoria, para que daqui por diante ninguem desespere nos casos perigosos, nem se confie nos que parecerem faceis: porque vemos cada dia morrer muitos doentes, a quem os Medicos tinhao promerrito grandes seguranças da vida; & viverem outros, a quem naõ só tinhaõ prognosticado a morte, mas os tinhaõ deixado ao desemparado, de que pudera apontar muitos exemplos, se o referillos cundira em tanto credito, como cundira em afronta o publicallos.

OBsERVAÇAM LIX

De huma grande resicaçaõ, & magreza de todo o abdomem, procedida de excessivas calmas, de grande fastio, & de vômitos muito continuados.

Thomè Gonçalvez, morador em Lisboa, na rua da Ametade, por occasiaõ de comprar hum mato para fabricar carvão, (por ser contratador do tal negocio) partio desta Cidade para o Alentejo nos primeiros dias de Junho doanno de 1697. & por causa do muito trabalho que teve na jornada; ou pelas grandes calmas, que passou nos caminhos; ou pela dilatada assistencia, que fez na campina em dias mui calmosos, se lhe esquentàraõ, & abrazàraõ as entranhas de maneira, que gerou mais colera da que era necessaria para se conservar a natureza; donde se seguio que enfraquecido, & retundido o acido esurino do estomago pela muita colera, padeceo muitos dias naõ só hum grande fastio, & total aborrecimento ao comer; mas repetidos, & importunos vomitos, aos quaes se seguio huma summa magreza, & huma resicaçaõ, ou retracçaõ, & quasi convulsaõ do estomago, & musculos do abdômen: & porque o sobredito enfermo vio que o fastio, os vomitos, a magreza, o encolhimento do estomago, & ventre cresiaõ com excesso, entendeo que a sua vida estava em perigo; & por esta razão, pondo de parte as conveniencias da sua mercancia, se recolheo para sua casa a procurar remedio a tantos males; para este fim me chamou em dezoito de Agosto do sobredito anno; & informandome eu das queixas que tinha, entendi que a muita copia de colera, que do receptáculo colidoco entrava cada dia no estomago, não só lhe quebrantava, & retundia o acido esurino, que he o que excita a fome, mas por falta do tal acido, lhe sobrevieraõ o fastio, & se desenfreara a colera com tal excesso, que irritava o estomago, & obrigava aos continuos impulsos, & desejos de vomitar, & pela falta do sustento se foraõ apertando, & estreitando as veas mesaraicas, & os ductos do chylo de maneira, que necessariamente se resicaraõ, & myrrhàrão com tanta disformidade; que entendi certamente que esta era a causa da grande magreza assim do corpo, como do ventre, & mesenterio: & como a unica esperança que avia para que o sobredito enfermo melhorasse, era defencorrear, amollecer, & laxar as ditas veas, & o abdômen, para que o corpo sefosse renutrindo, & allentando; tomei por expediente meter ao enfermo em huns semicupios de agua tibia, cozendo-a primeiro com a carne de dous, ou tres kagados, & em falta deles com meya duzia de mãos de carneiro bem pizadas, hum arrarel de amendoas doces, & quatro onças de semente de linho, ajuntando huma grande maõ cheya de raizes de malvaisco, & huma grande porçaõ de óleo violado; ordenando juntamente que depois de estar huma hora dentro do dito banho, lhe puzessem (ao sahir dele) sobre o ventre, & estomago o redenho de hum carneiro gordo,, acabado de matar daquele instante; para que com o seu calor natural, & com a virtude lenitiva, & anodyna da gordura se mollificasse, & abrandasse a resicaçaõ das partes endurecidas, & retezadas; & que passada huma hora, bebesse meyo quartilho de leite de burra acabado de mugir, assim para se ir nutrindo, & refrescando, como para que a natureza se fosse costumando pouco a pouco a fazer cozimentos, & abrir os ductos, que estavaõ fechados, duros, & retezados por falta do uso do comer; aconselhandolhe que se desejasse algũa iguaria qualquer que fosse a comesse, porque nos fastios mortais, naõ há Medico douto que seja rigurosso; antes diz Tulpio (1.) que o Medico, que nos grandissimos fastios cede aos desejos do doente he prudente, & bem considerado, à maneira do bom piloto que na tempestade toma a enseada, quando naõ póde seguir a viagem direita; & porque nem a todas as horas do dia, & da noite podia o doente ter redenhos frescos, ordenei que, em falta delles, fomentasse o ventre, & a todas as parte magras com o unguento resumptivo, porque só por este caminho esperava colher fruto. Porèm como no discurso de vinte dias, naõ visse alivio com os ditos remedios, sospeitei, que a resicaçaõ, & a magreza procediaõ de obstrucções das veyas mezeraicas, & vazos pancreaticos, & que por esta causa os banhos lhe não aproveitavão, nem aproveitarião atè o fim do mundo, & que todos os remedios exteriores serião baldados, em quanto lhe naõ applicasse interiormente algum medicamento, que abrisse as vias fechadas, & refrescase as entranhas incendidas. Feito assim este discurso ( que me pareceo muito conforme à razaõ) me resolvi a darlhe huns caldos de frangão feitos com raizes frescas de borragens, lingua de vacca, almeiraõ, folhas de douradinha, fragaria, & epatica, ajuntando a cada caldo destes depois de coado, & espremido, vinte grãos de tartaro vitriolado, porque os ditos caldos não só refrescão; mas nutrem, & desopilão, assim por virtude das raizes, como por virtude especifica do tartaro vitriolado, àlem de abrir as obstruções, purga suavemente as materias tartarias de todo o mesenterio.

2. Tambem ordenei que aos banhos assima referidos, acresentassem cada dia tres canadas de leite de cabras, ou de vacca, & lhe desfizessem um paõ de massa crua: finalmente aconselhei ao enfermo que estivesse em casa fresca por natureza, ou por arteficio; mandando borrifar as paredes muitas vezes no dia com vinagre aguado, lanções ensopados em agua avinagrada, como aconselha Rafis, (2.) & fazendolhe fontes, alcatifar com folhas de alface, de freixo, de rosas, ou de parras; porque huma das cousas mais convenientes para os febricitantes, & resecados he, que o ar que respirarem seja fresco, porque este facilmente chega ao coraçaõ, & tempera o seu incendio, & sendo isto assim não estou bem com o voto de alguns Medicos agourentos, & medrosos, que não permitem que se abrão as janelas, nem entre ar na casa, aonde está o doente, o que he grande erro, porque sendo o ar sempre o mesmo, & estando represado, se inficiona, & preverte com o bafo do mesmo enfermo, & lhe he mui damnoso, como diz Valeriola. (3.) Naõ quero porèm dizer, que o corpo do doente esteja descuberto, nem exposto ao ar, antes encomendo que esteja bem arroupado, o que pertence ao corpo; para que os póros seconservem abertos, em ordem à transpiração, & evaporação das foligens, que se se reprezarem faraõ grande damno; tambem aconselhei ao doente, que naõ admitisse na casa muita gente junta, porque o bafo de muitos aquenta o ar; principalmente se a casa he pequena, ou falta de janelas, como he conselho de Galeno. (4.) Tudo isto se fez pontualmente, mas como a doença tivesse tomado grande posse, & a natureza estivesse mui prostrada, & as veas muito indurecidas, & convulsas, lhe naõ aproveitaraõ as diligencias da Arte; porque continuou a magreza, & o fastio, & morreo. serve esta Observaçaõ, de avisar aos homens, que não fassaõ pouco caso das enfermidades quando começaõ; porque só entaõ se curaõ bem, como diz Ouvido; (5.) porque naõ tem raizes taõ profundas, nem eu duvido que se estes remedios se fizessem no principio, aproveitarião; mas depois dos achaques confirmados, só Deos pòde curalos.

OBsERVAÇAM LX.

De huma dor de cabeça antiquissima, que só obedeceo aos pós de quintilio repetidas vezes tornados, & a huma almofadinha de couro cheya de agua fria de cisterna.

Manoel da Veiga, morador junto à Igreja de Nossa senhora de Alecrim, padeceo humas dores de cabeça taõ accerrimas, & porfiadas, que lhe duràraõ hum anno, no discurso do qual consultou a varios Medicos de boa nota, & ainda que estes de le empenhàraõ muito para curalo, resistirão as dores de maneira, que perdia a paciencia, & temia perder tambem a vista. porque de hora em hora lhe hia faltando; & sem ebargo que o affligidissimo doente tinha de mim grande conceito, por algumas boas curas que me vira fazer em sua casa, naõ se atreveo a chamarme, porque sabia que eu estava queixoso delle com muito justa causa ; porèm vendo o pobre homem que quantos mais remedios lhe faziaõ, tanto peyor se achava, poz de parte o temor, & a desconfiança da queixa que elle tinha, & me compadecesse do seu miseravel estado, pois se achava, sobre atormentado de dores, tão falto de vista, que escassamente divisava os vultos, nem ainda das pessoas, que familiarmente o tratavão.

Para aver de curar a este homem, era necessario saber primeiro se as dores de cabeça, & a falta de vista tinhaõ a sua causa, & nascimento na mesma cabeça, ou se a tinhaõ no estomago, porque conforme o lugar donde procedessem, se devia applicar o remedio. Disseme pois que as dores (ainda que insoportaveis naõ eraõ continuas; mas que creciaõ mais depois; & que tinha tão grandes amargores de boca, q nem lavando-a com agua avinagrada, nem com zaragatoa de pevides de marmelo, nem trazendo na boca gomos de lima doce, nem miolo de belancia, nem usando de quantas industrias inventou a Arte. os podia moderar; & sem embargo que para livrarem das sobreditas dores, & amargores que o penaliavaõ, o tinhaõ sangrado, purgado, & apozemado, & lhe tinhaõ applicado sanguisugas nas veas hemorrhoidaes, & nas fontes da cabeça, & lhe tinhaõ dado tres vezes (em dias alternados) as pilulas policrestas, em quantidade de meya oitava para cada vez; dandolhe depois disso, de cinco em cinco dias, humas pilulas preparadas de partes iguaes de azevre, pò de cardo santo, & pòs dos bichos millepedes, ou aselle, às quaes ajuntàraõ alguns grãos de diagridio fulphurado: tambem lhe applicàraõ repetidas vezes no dia epitomes refrigerantes sobre a regiaõ do figado; & sobre as fontes da cabeça emplastros feitos de bolo de rosa pizado, & misturado com leite das amendoas dos pessegos feito com agua de orgevaõ; nem lhe esqueceo o mui affamado unguento de alabastro, misturado com çumo de coentro verde; deraõlhe a beber dous dias sucessivos, tres onças de agua de cardo santo alterada com tãtas gottas de oleo de vitriolo, quantas foraõ necessarias para que a sobredita agua ficasse agradavelmente azeda; valeraõse muitas vezes de pôr sobre a testa, & fontes da cabeça as folhas tenras da hera levemente machucadas, & infundidas hum quarto de hora em oleo rosado omphancio quente ; applicaraõlhe sobre as fontes, & commissura coronal pannos picados molhados em partes iguaes de agua rosada, & de flor de sabugo, a que ajuntaraõ meya oitava de alcanfor desfeito em huma huma oitava de oleo de espicanardo, & seis grãos de almiscar, com humas gottas de vinagre rosado; tinhaõlhe posto sobre a commissura coronal, rapada à navalha, caranguejos crus pizados; cingiraõlhe a garganta com as raizes de tanchagem verde, que tem huma qualidade occulta contra as dores de cabeça, & contras as alporças, como me consta por algumas experiencias; finalemente lhe puzeraõ sobre a nuca os pós de zedoaria misturados com çúmo de orgevaõ. Estes, & outros mil remedios especificos, & muito celebrados assim da veneravel antiguidade, como dos Medicos modernos se fizeraõ, mas com taõ desgraçada sorte, que perdeo o doente a paciencia, & os Medicos a esperança, & assim o deixaraõ à natureza. Confesso ingenuamente que à vista de tantos, & taõ singulares remedios, quantos se lhe tinhaõ applicado inutilmente, desconfiei de poder curallo; contudo o aperto do caso, & a grande fé, que o doente em mim tinha, me fizeraõ romper por todos os embaraços, & tomar duas resoluções, que a muitos pareceraõ temeridades. A primeira foy, darlhe em tres dias successivos tres onças de agua benedicta vigorada, porque entendi, (pelos amargores da boca, de que se queixava,) & pelo lugar da dor ser na testa, & parte dianteira, da cabeça que o estomago era o culpado de quanto padecia, em cujos termos louvaõ gravissimos Authores por remedio prodigioso, & presentaneo os pòs de quintilio, como eu tenho observado infinitas vezes. A segunda resolução foy mandar que duas horas cada dia deitasse a cabeça em huma almofadinha de couro cheya de agua fria de cisterna, cuberta com huma toalha dobrada em quatro dobras, & que repetissem o mesmo remedio tres, ou quatro dias: por- que entendi que a grande quentura, que a cabeça tinha, & o escessivo fervor do sangue espirituoso, que nas suas veas, & arterias ardia, eraõ a causa aaquellas grandes dores. E naõ me enganou a presunmpção; por- que os vomitorios de agua benedicta repetidamente applicados, & com as almofadinhas de agua fria fria se temperou o incendio da cabeça de maneira, que dentro de quatro dias se tiraraõ as taes dores, como se fosse obra de milagre.

E se a alguem parecer que foy temeridade dar eu tres dias sucessivos vomitroios de agua benedicta, a quem tinha a cabeça taõ offendida, & a vista taõ offuscada; como tambem deitar a cabeça em almofadinha de agua fria: direi quanto aos vomitorios, que não se devem condemnar, nem temer; quando a cabeça padecer qualquer queixa por causa do estomago, porque vomitando o doente grande quantidade de coleras conheceo na mesma hora consideravel alivio, assim nas dores, como na vista, & amargores da boca.

Eu requeiro da parte de Deos aos senhores Medicos, & os desengano, que naõ tenhaõ medo de dar a agua benedicta nas doenças da cabeça, ou sejaõ dores, ou vagados, ou apoplexia, ou faltas de vista; com tal condiçaõ que estejaõ certos que o estomago he o culpado, & para o conhecer assim, não faltaõ sinaes. E quanto à almofadinha de agua fria, digo que mayores Medicos que eu, mandaraõ fazer emborcações de agua fria na cabeça, quando conheciaõ (pelo tacto quentissimo; ou por outros sinaes) que reynava nella, muito calor; & os effeitos foraõ taõ maravilhosos, que deraõ a conhecer que as resoluções dos ditos Medicos foraõ acertadas; assim se observou em hum Fidalgo Maltez, irmão do Conde de Assumar, q tendo dores de cabeça, desprezadoras de todos os remedios, só com as emborcações de agua fria se curaraõ; assim o observei em hum criado do Almotacel Mor Luis Gonçalves da Camara; deitouse o tal criado a dormir em huma noite muito fria, junto de huma chaminè com a cabeça posta para o fogo, que era grande, & como o sono fosse muito profundo, naõ sentio o calor, senaõ quando já se queimava; daqui se seguio huma dor de cabeça taõ furiosa, que passou a mania, & foy necessario maneatallo como doudo, & sendo eu chamado, palpei a cabeça, & a achei taõ quente, que era hum hum Vizuvio de fogo, ordeneilhe huma larguissima emborcação de agua fria, & dentro de duas horas ficou saõ. Os que me naõ quizerem dar credito, leão aos Authores (não identificamos o que foi escrito) practicos, & logo conhecerao que nem o dar vomitorios nas queixas da cabeça, que tem causa no estomago, nem o usar de emborcações, ou de almofadinhas cheyas de agua fria nos achaques da cabeça que procederem de excessivo calor della, foy temeridade, antes foy resolução de Medico experimentado, & versado na lição de livros.

Ponho tanto empenho em aconselhar a agua benedicta, assim para as dores sympaticas da cabeça como para outros achaques; porque compadeço muito de ver padecer aos doentes semelhantes dores, & outros achaques causados de cruezas, & enchimentos do estomago; & que de puro medo, se não atrevem alguns Medicos a usar dos vomitorios, quando eu com elles tenho curado muitas doenças dentro de vinte & quatro horas com grande credito de Arte, & confusa]o dos que impugnavaõ o tal remedio.

A algumas pessoas conheço, que quando tem dores de cabeça, se lhes tirão tanto que dormem, mas que seja meyo quarto de hora. A outras conheço que acabando de dormir, as assaltaõ dores tão acerrimas, que perdem o juizo: & porque os curiosos folgaraõ de saber a razaõ porque o somno tira as dores de cabeça a huns, & as causa a outros: direi que as dores, que se tirão com o somno, he porque se originão do enchimento, & turgescencia do humor nutritico, que está dentro do sangue, por isso levantandose as taes dores duas, ou tres horas depois de comer, amainão com o somno, pois este aplaca, & modifica os desordenados movimentos, & fervores do sangue: pelo contrario as dores de cabeça, que crescem depois do somno, he porque a materia morbifica está no succo nervoso, (não identificamos a palavra) como ao tempo do somno se ajuntaõ mais cruezas na cabeça, & naõ se purificaõ taõ perfeitamente como no tempo da vigia, daqui procede crescerem logo depois do somno. se estas razões não contentarem aos lei- Leitores estimarei me digão outras melhores para utilidade da Republica, & satisfação minha, & dos enfermos.

E porque estou vendo que alguns doentes saõ tão medrozos, que nem com estes exemplos, & observações minhas, quereraõ usar dos vomitorios, nem das almofadinhas de agua, por serem remedios, que não virão fazer a outrem; lhe quero enfiar dous remedios, de que tenho visto admiraveis proveitos. O primeiro he, o emplastro de rans misturado com meya parte de unguento de alabastro, & algumas gottas de oleo de açafrão. O segundo se prepara do modo seguinte. Tomareis meyo arratel de salitre da India, feito em pò, & em hum cadinho de barro o poreis sobre fogo forte, até que o tal salitre derreta, & ferva como se fosse agua, deitareis então dentro no tal salitre derretido, huma brazinha de fogo tão pequena, como huma avelãa, & logo se levantarà huma lavareda com grande estrondo, & como a dita lavareda, & estrondo applacarem, & tornará a levantar outra lavareada, & estrondo, & como applacar, deitareis outra brazinha, & deste modo ireis continuando com as brazinhas até que não aja lavareda, nem estrondo; mas deixareis estar o cadinho sobre o fogo muito forte hum quarto de hora, & então tirareis o cadinho do fogo, & depois de frio, ponde o tal salitre fico dentro de huma tigela da India, & poreis a dita tigela em huma logea fresea, & humida, & dentro de seis, ou oito dias se derreterà o nitro fixo em hum licor manteiguento, & estando mais outros oito, ou dez dias, se adelgaçarà mais o dito licor, & se converterá de branco em amarelento espeço, ao qual guardareis em hum vidro bem fechado.

Destilareis então boa quantidade de cardo santo colhido no fim de Mayo, & a esta agua estillada, a juntareis quatro onças de folhas de cardo santo bem pizadas em gral de pedra, & tornareis a destillar, & a cada quartilho desta agua ajuntareis tres oitavas do sobre sobredito licor do salitre fixo, & metereis tudo em huma garrafa vidro grosso, como saõ as olandesas, & fechando-a muito bem com sua rolha de cortiça, se meta a dita garrafa em hum tacho de agua quente, por vinte horas de sorte que naõ ferva; & acabado o dito tempo, se filtre por carta emperetica, & se guarde o tal licor, & delle se dará ao doente de dores de cabeça, que não obseverem a outros remedios; tres onças pela manhãa em jejum, & tres ao sol posto.

OBsERVAÇAM LXI.

De huma tosse ferina acompanhada com febre, com magreza excessiva, e com desejos continuos de vomitar, e depois de mil remedios baldados, sarou com confortativos das forças; porque conheci que a causa das sobreditas queixas era a falta dos espiritos, a que o povo chama esfalfamento.

1. sImaő Dias, morador nesta Cidade de Lisboa junto à Igreja de nossa senhora da Conceição, teve huma tosse continua acompanhada com febre, com repetidos desejos de vomitar, e magreza taõ grande que parecia a imagem da morte: e ainda que para livrar a este homem de tão grande perigo lhe applicàraõ os Medicos mui singulares remedios; comtudo de dia em dia se augmentava mais a enfermidade, sem que os remedios especificos; Nem o bom regimento, ou o total descanso lhe aproveitassem. Neste aperto fui chamado, e dandoseme conta da doença, fiquei muito tempo duvidando qual seria a causa della. Humas vezes me parecia que a dita tosse, procedia de humor muito viscoso, que no estomago: estava, e pela difheuldade que tinha para se arrancar, causava os desejos de vomitar, e fazia tosse mais cruel do que costumaõ ser as que procedem de outra causa, como diz Doleu, (1.) e que se isto assim era naõ avia remedio mais efficaz para a cura, que os vomitorios de agua benedicta; mayormente aonde a mesma natureza estava inclinada a isso; fundado nesta razonavel conjectura, lhe dei dous dias alternados, tres onças de agua benedicta; e sem embargo que purgou e bem, naõ aliviou cousa alguma. Outras vezes me parecia que a sobredita tosse, e febre tinha por causa alguma parte do sangue mais acre, e mordaz, que pela circulaçaõ dos humores dera comsigo nos musculos, e orgãos destinados para a respiraçaõ, e que picando as fibras do bofe, ou da aspera arteria causava a tosse; e que se assim era, (como se poderia conhecer pela tosse ser picante, seca, e crua,) não averia Medicina mais conveniente para curar a dita tosse, e febre que as sangrias, e remedios absorbentes, e dulcificantes, entre os quaes escolhi por mais efficazes, as ptisanas com o seu cremor, as quaes louva muito Galeno; (2.) mas com tal condiçaõ, que se naõ azedem no estomago, ajuntando a cada ptisana hum escropulo de aljofar preparado, ou das minhas pilulas absorbentes, que são muito melhores, advertindo que se a tosse fosse taõ excessiva, que tirasse o somno, e descanço, que neste caso misturassem em cada ptisa na oitava e meya de Diacodion, ou em sua falta dous grãos de laudano opiado; porque naõ ha remedio, que mais suavize a acrimonia dos humores, que picão as membranas do bofe, e da aspera arteria, do que as ptisanas, deste modo preparadas: assim o dizem muitos Doutores modernos, e o mostraõ as experiencias.

2. Porèm como o doente, tomasse as ptisanas assim preparadas, cinco noites successivas sem ter alivio; entendi que me enganàra no conhecimento da causa da tosse, e por isso era necessario buscarlhe outra: como pois seja doutrina assentada entre os Medicos antigos, que a tossesprocede de humores, que da cabeça cahem na aspera arteria, e no bofe, que picando-o; e irritando-o o obriga a tussir, me pareceo conveniente darlhe por nove dias alternados quatro escropulos de pilulas de hiera de Pachio, pela grande virtude que tem de curar os estillicidios, e enxugar as humidades superfluas da cabeça, pondolhe (depois de purgado) sobre a commissura coronal (rapada à navalha) hum suspensorio, como Galeno (3.) nos encomenda, e eu o applico muitas vezes com bom successo, e o mando fazer da maneira seguinte.

3. Tomai de fermento bem azedo huma onça, com vinte caracois descascados, e huma gema de ovo muito dura, pizese tudo muito bem em hum gral de pedra, atè que fique huma massa taõ uniforme, que pareça huma só cousa; e a esta ajuntai de pò de incenso, de almecega, de sangue de dragaõ, e de alambre, de cada cousa destas meya oitava, e morna se applique no lugar sobredito. Mas como deste remedio applicado muitos dias tirasse menos fruto do que se podia esperar da sua admiravel virtude, e eu tinha observado com elle em outras occasioens semelhantes; me pareceo razaõ appellar para as pilulas de eynoglosa, tomando quinze grãos dellas em noites alternadas, e supposto que reconheceo algum alivio, não foi tanto, que o escusasse de outros remedios, e por isso lhe ordenei usasse de alimentos, que declinassem para desecantes, e reborantes, assados, e naõ cozidos; e que a agua que bebesse, fosse preparada do modo seguinte. Tomem de limadura de pão de Guajaco duas oitavas, cozaõse em huma panela de barro com tres canadas de agua commua; e desta agua mandei usasse quando tivesse sede, e que com a tal agua lhe fizessem todos os dias pela manhã a hum caldo das farinhas seguintes, que costumaõ ser admiraveis para desecar os estilicidios; e humidades superfluas.

4. Tomai de farinha de arroz, de favas, e de biscouto preto, de cada cousa destas meyo arratel, de goma de trigo seis onças, de farinha de salsa parrilha tres onças, de farinha de dormideiras brancas duas onças, e misturandose todas estas farinhas, se torrem levemente a fogo lento: porèm foi a tosse taõ obstinada, que nem depois de tomado este remedio muitos dias, diminuhio cousa alguma da sua fereza; antes vendo eu que era mais seca, e que o doente enrouquecia, lhe ordenei dous remedios, de que algumas vezes tenho visto grande utilidade. O primeiro foy hum lambedor de duas onças de oleo de amēdoas doces feito sem fogo, misturado com hũa onça de pò de assucar cande violado. O segundo foi meterlhe os pès em hũa bacia cheya de agua taõ quente, que mal a pudesse sofrer: por quanto algumas vezes succedem as tosses, e rouquidões, ou de vapores, que dos hypocondrios sobem ao peito, ou de resfriamento dos pès; e para qualquer destas causas saõ os pediluvios quentissimos quasi milagrosos, assim o dizem gravissimos Authores, (4.) e eu o digo tambem pelos effeitos q̃ delles tenho visto, em accidentes quasi apopleticos, em q̃ a circulaçaõ do sangue estava quasi parada; porque divertem os vapores perversos das partes nobres para as menos nobres; como tambem porque com a grande quentura da agua se vence a frialdade dos pès. Vendo porèm que perfeverava a doença, entrei a suspeitar se alguma inflammaçaõ do figado, ou algumas lombrigas seriaõ a causa de tosse taõ seca, e rebelde, como já se tem observado; e levado desta suspeita appliquei sobre o figado hum epitome refrigerante de unguento sandalino misturado com çumo de cerralhas, e chicoria, farinha de cevada, assucar de cumbo, alcanfor, e vinagre rosado: e para as lombrigas appliquei sobre o estomago, e todo o ventre huma massa feita do modo seguinte. Tomai de ortelãa, losna, e artemija, de cada cousa destas huma maõ cheya; de azevre, myrarha, açafraõ, e pòs de tremoços, de cada cousa destas huma oitava, tudo se pize muito bem, e se incorpore com vinagre fortissimo bastante para fazer emplastro; dandolhe a beber agua cozida em huma maõ cheya de folhas de espinheiro alvar, em que misturei pò de semente de alexandria, e de bisnaga, com pò do osso da unha de vacca; e finalmente lhe dei seis vezes em dias alternados, huma oitava das minhas pilulas magistraes das lombrigas, que naõ saõ inferiores a outro algum remedio humano: porèm como as queixas não obedecessem, nem deitasse lombriga alguma, me veyo ao pensamento que a sobredita tosse nem procedia do figado inflammado, nem de lombrigas, nem dos humores lymphaticos estarem mais acres, e pungentes; mas procedia da transpiraçaõ prohibida, e dos póros fechados em razão da grande frialdade do tempo, e da dureza da pele, e que por esta causa reteudos os taes vapores dentro no corpo, antes retrocedidos para dentro aquelles effluvios damnosos, davaõ comsigo dentro no bofe, e o faziaõ padecer aquelles irritamentos, e movimento quasi convulsivos da tosse, nos quaes termos nenhum remedio avia de aproveitar tanto, como os diaphoreticos, que abrem os póros, e facilitaõ a diaphoresis, e transpiraçaõ; e assim lhe dei quatro noites successivas, vinte grãos do sulphur auratum do antimonio prepado por minhas mãos, misturado com tres onças de agua de cardo santo, e huma onça de arrobe de bagas de sabugueiro; (que sobre ser muito diaphoretico, e sudorifico,) he contraveneno das febres malignas, como dizem muitos, (5.) porque naõ he dizivel a grande virtude, que este sudorifico tem para abrir os póros, e fazer transpirar os vapores, e fuligens, que saõ causa de mil doenças: porèm vendo que tantos, e taõ qualificados remedios naõ aproveitàraõ, desconfiei da vida do doente de tal sorte, que o quiz deixar ao arbitrio da fortuna; mas porque seria acçaõ vergonhosa, e indigna de hum Medico experimentado dar as costas ao inimigo, me esforcei a seguir a empreza, tendo por certo que huma tosse desprezadora de taõ singulares remedios procedia dos espiritos estarem exhaustados, e das forças estarem quasi extinctas; (a qual doença chama a gente vulgar esfalfamento.) Nem me enganou o pensamento; por quanto este homem era dado a muito trabalho, e comia pouquissimo; e esta he (como todos sabem) a estrada por onde se caminha para os esfalfamentos, e tosses secas, e teimosas: e depois que assentei comigo que esta era a causa, tratei de restaurarlhe as forças; e os espiritos, dandolhe para isso todos os dias em jejum duas gemas de ovos frescos batidas com tres onças de vinho excellentissimo, ajuntandolhe dous grãos de ambar; e passadas tres horas, lhe dei huma chicara de bom chucolate, dandolhe de quatro em quatro horas hum caldo de meya perdiz, e meya gallinha; e aproveitàraõ tanto estes restaurativos, que antes de passarem doze dias se tirou a febre, a tosse; e os continuos impulsos que tinha de vomitar; e recuperou a saude, e as forças que desejava; e viveo muitos annos depois disso.

5. Desta Observaçaõ se colhe, que não he infallivel, nem perpetuo que todas as febres, vomitos, ou tosses procedaõ de muito calor, nem de podridaõ dos humores; mas humas vezes procedem de obturaçaõ dos póros, e falta da transpiração das foligens; que aviaõ de sahir pela pele, e as fontes; outras vezes procedem de excessivo trabalho, e dos espiritos gastados; jà com o demasiado estudo, jà com o muito uso venereo, ja com os continuos cuidados, cujo remedio naõ consiste sempre em sangrar, nem em purgar, mas consiste muitas vezes em abrir os pòros, em abrir fontes, e em recuperar forças como eu o fiz neste caso, e em ourros muitos com feliz successo.

6. Advrtio com Poterio (6.) aos Medicos principiantes, que sem embarbo que os Doutores louvaõ muito as fontes para remedio das tosses, que nem por isso se haõ de abrir a todos a olhos fechados, ou a carga ferrada, porque de se abrirem sem consideraçaõ, succede terem muitas pessoas mào conceito dellas, tendoas outras em grande estimaçaõ; e he os curiosos me perguntarem a razaõ de taõ differentes opiniões, direi que isto procede, de que muitos melhoraõ com ellas, e a outros nada lhe aproveitaõ; de sorte que, naqueles que tem a causa da enfermidade na falta da transpiraçaõ, e nas partes cutaneas, ou terceira regiaõ, obraõ as fontes milagres; mas naquellas que a causa da doença está na segunda regiaõ, ou na primeira, nada aproveitaõ, e saõ pençaõ sem beneficio.

OBsERVAÇAM LXII.

De huma grande febre, fastio, e ancias do coraçaõ, que huma donzella mimosa, e delicada teve, nascido tudo do excessivo trabalho, a que não era costumada: e parecendome que os sobreditos symptomas procediaõ da falta da conjunçaõ mensal, a mandei sangrar, porèm vendo que com as sangrias peyorava muito, suspendi logo o tal remedio, porque entendi que tudo precedia de pobreza, e exhaustaçaõ de espiritos; e para lhos restaurar, lhe mandei tomar chocolate, marmelada desfeita em vinho, e caldos de perdiz, misturados com gemas de ovos frescos; e com estes restaurativos lhe tirei a febre, o fastio, e as ancias de coracaõ, e a livrei da morte.

1. QUe do grande trabalho corporal, e dos contínuos cuidados possaõ nascer febres, ancias do coraçaõ, fastios, e outras mil doenças, he cousa taõ certa, como aver água no mar, e luz no sol. Nem tambem he menos certo que as sangrias para curar semelhantes febres, tosses, e symptomas, saõ mais damnosos que o mais presentaneo veneno; por quanto o verdadeiro remedio destas queixas consiste nos restaurativos das forças, e de nenhũ modo nas evacuações do sangue. Esta verdade poderia eu confirmar com muito casos, que observei, contentome com referir só hum, para que os Medicos pricipiantes entendaõ que nem todas as febres, se devem curar com sangrias, purgas, ou ajudas; e que assim como o calor febril procede de differenças causas, se deve tambem curar com differentes remedios, como mostrarei pelo seguinte successo.

2. Manoel Peres, mestre da fabrica das armas de fogo morador ao cáis do carvão, me chamou para que lhe curasse a huma sua irmã, que avia quatro dias tinha adoecido com huma intentissima febre, fastio, ancias de coraçaõ, e faltas dos meses; e chegando eu a visitar a doente, a achei naõ só triste, fraca, sequiosa, e e dolorida, mas com faltas da conjunçaõ mental.

3. Nesta multidão de symptomas tive por cousa infallivel que as queixas referidas procediaõ das faltas da conjunçaõ mensal, e que sendo isto assim, naõ averia remedio tam efficaz como eraõ as sangrias dos pés, conforme a doutrina de Avicenna, (1.) e Galeno, (2.) que dizem que quando a falta de alguma evacuaçaõ (a que a natureza estiver constumada) foi causa de alguma doença, que o remedio da tal doença será tornar a provocar a essa tal evacuaçaõ. Nem a razaõ natural deixava de persuadir que as sangrias eraõ o remedio, que mais convinha, pois a doente era moça, sanguinha, e de temperamento quente. Mandei que a sangrassem logo no pè; mas taõ longe esteve a febre, e os mais symptomas de abrandarem, que antes se augmentàraõ com notável excesso. Admireime, e naõ acabei de entender como as sangrias (sendo remedio taõ applaudido para curar as febres, e suppresões dos meses) podiaõ fazer effeito taõ infausto, e contrario a minha esperança; porèm como seja deslumbramento da razaõ obrar contra o que mostra a experiencia, (3.) me deliberei a naõ sangrar mais, pois as tres sangrias, que tomou, lhe fizeraõ taõ grande damno, que a chegàraõ às portas da morte. Lembrandome porèm que Hippocrates, (4.) e Avicenna (5.) nos mandão que continuemos os remedios, quando saõ bem indicados, ainda que nos pareçaõ infructuosos; e que naõ deixemos de fazer o que he razaõ, ainda que naõ consigamos logo o alivio que pertendemos, me animei a mandar sangrar de novo a sobredita doente, naõ só fiado nos conselhos de taõ grandes mestres; mas também por entender que naõ seria facil achar remedio, que plenariamente acudisse a hũa tam grande febre acompanhada de taõ diffentes symptomas.

4. Mas (ò bom Deos !) tanto que se abrio a vea, assaltàraõ à pobre doente humas ancias taõ excessivas, que entendi exprirava nas mãos do sangrador. A vista deste successo mandei suspender as sangrias, porque me pareceo erro sem desculpa porfiar contra a experiencia: e supposto que aos homens naõ he concedido o priveligio de conhecer cabalmente os profundos segredos da natureza; comtudo, porque a febre era complicada com outras queixas, e zombava das sangrias, e que por Authoridade de Galeno (6.) a todas as luzes foraõ sempre muito louvadas para semelhantes casos, me desvelei em saber qual seria a causa, porque as sangrias faziaõ tanto damo a huma mulher moça, febricitante, sanguinha, falta de conjuçaõ, e depois de hum largo discurso, e ponderaçaõ larga, achei que tudo procedera da fraqueza, e exhaustaçaõ dos espirieos em que havia cahido por causa do grande, e excessivo trabalho, que a sobredita donzella mimosa, e delicada tomàra sobre si, governando huma casa todo o tempo, em que teve doente a sua criada, e por isso cahio em hum grande fastio, e deste em huma grande debilidade de forças, e da falta destas faltàraõ os espiritos, e a sanguificaçaõ, e consequentemente as purgações mensaes, e daqui se originou a febre, que tanto mais crescia, quanto mais se sangrava. Para que pois a febre as ancias, o fastio, e os mais symptomas se naõ augmentassem, tomei por arbitrio naõ lhe tirar mais sangue, antes lhe mandei dar todas as madrugadas huma chicara de bom chucolate, e de quatro em quatro horas duas colheres de gelèa de carne misturada com meya tigela de caldo de gallinha; porque naõ he dizivel a brevidade, com que estes alimentos recuperaõ as forças, sem que o estomago se carregue com o peso do mantimento: e porque nem todos saberaõ preperar a gelèa, quero ensinar aqui o modo com que se faz, que he o seguinte. Tomem hum perdigaõ, huma gallinha, dous frangãos, tres arrateis de vitela, ou em sua falta hum capaõ, tudo se coza em panela de barro com quatro canadas de agua ordinaria, até que fiquem tres quartilhos, e entaõ (apartandose a carne) se deite fóra toda a gordura do caldo, e o magro se guarde, para usais delle, como fica dito.

5. Tambem appliquei sobre o estomago pombos escalados vivos, borrifados com vinho quente , polvorizados com pós de aromatico rosado, sandalos, e canela; porque naõ se pode explicar o grande esforço, que a natureza recebe com este remedio, pela proporçaõ, e analogia, que o calor dos pombos tem com a nossa natureza: e no entretanto, por ter respeito ao excessivo fastio, e fraqueza, da enferma, lhe permitti que comesse tudo o de que gostasse; que dormisse o mais que pudesse; e que naõ trabalhasse, porque todas estas cousas feriaõ o seu remedio; seguindo nisto a Hippocrates, (7.) a Galeno, (8.) e a outros muitos que assım o aconselhaõ. Com estas licenças taõ favoraveis, como tambem com os sobreditos remedios esperei que todas as queixas se desvanecessem: e naõ vi malograda a minha esperança; porque só com lhe suspender as sangrias, e lhe confortar o estomago, e permittirlhe que comesse o de que mais gostasse, se alentou a natureza de modo, que em poucos dias teve saude: e daqui fiquei conhecendo que tudo, o que a doente padecia, procedèra de esfalfamento, ou de falta de espiritos; pois com as sangrias se prostrava tanto, e com os confortativos se esforçava muito, e tinha saude.

6. Desta Observaçaõ se deixà ver mais claramente que com a luz do sol, quam errados vaõ aquelles, que tem para si que a verdadeira cura das febres consiste nas sangrias, quando a experiencia tem mostrado que algumas febres ha, que só com restaurativos, e confortativos dos espiritos se curaõ. E se alguem avaliar por temeridade dar eu chocolate, marmelada com vinho, e caldos de perdiz com gemas de ovos aos que tem febre procedida de esfalfamento, saibaõ que eu me atrevo a affirmar diante de Deos, e dos homens, que só os esfalfados, a quem se acode com estes restaurativos, escapaõ da morte: e pelo contrario morrem todos, a quem tiraõ sangue estando exhaustados por causa de qualquer grande trabalho do corpo, ou do espirito.

7. se a modestia o permittira, pudera nomear aqui mais de vinte homens, que por serem excessivos nos actos venereos, se exhaustáraõ, e enfraquecèraõ de tal forte, que lhes sobreveyo febre; e porque naõ deraõ conta aos Medicos dos taes excessos, nem os Medicos examinàdraõ as causas porque enfermàraõ, os mandáraõ sangrar, e os matàraõ; porque nenhum daquelles, a quem tiráraõ sangue, escapou da morte: e pelo contrario pudera apontar mais de cincoenta pessoas, que por varios excessos, que fizeraõ, lhes deraõ grandes febres; e porque examinei as causas que tiveraõ para enfermar, e conheci que de excessos procedèraõ, os naõ sangrei, antes os confortei, já com caldos restaurantes, já com chocolate, e paõ de ló molhado nelle, já com marmelada desfeita em vinho generoso, já com caldos de perdiz, em que misturava gemas de ovos, e deste modo saràraõ todos.

8. Pelos excessos do muito estudar se esfalfou, e teve febre tres meses o Doutor Manoel Rodriguez Leitaõ, e por beneficio do chocolate se tirou a febre, e viveo muitos annos. Pelos excessos de amassar seis alqueires de paõ todos os dias, se esfalfou, e teve grande febre huma mulher humilde moradora na rua da Oliveira, e com o chocolate, e marmelada desfeita em vinho lhe vencia febre, e teve saude. Pelos excessos de andar a pé em requerimento de varios negocios; teve muita febre, e tosse seca Alexandre da Costa escudeiro do Viso-Rey Caetano de Mello de Castro; e porque entendi que a febre, e tosse deste homem procedia do grande, e continuo trabalho, e dos espiritos gastados, o naõ mandei sangrar, antes me empenhei em que descançasse, e usasse de caldos muito restaurativos, feitos de meya perdiz, e meya gallinha, aos quaes ajuntasse sempre duas gemas de ovos frescos, tomasse bom chocolate, e que se ajudasse a esforçar com diacidraõ assado, e com marmelada de çumos desfeita em huma chicara de bom vinho, e que sobre o estomago, e embigo applicassem de seis em seis horas fatias de carne de vacca mal assadas ; borrifadas com vinho, e polvorizadas com canela, sandalos, e aromatico rosado, e com estas diligencias sarou, e teve perfeita saude.

9. Pelos excessos da luxuria deu huma grande febre, e tosse a certo homem, que naõ quero nomear por modestia; e porque me constou que os excessos venereos foraõ a causa da enfermidade, lhe aconselhei que fugisse de mulheres como de veneno, e que se restaurasse com alimentos muito substanciaes, e faceis de digerir, como saõ gemas de ovos frescos desfeitas em duas onças de bom vinho, e quatro grãos de ambar gris: que tomasse paõ de lò molhado em bom vinho, e que todos os dias tomasse o çumo de tres; ou quatro corações de carneiro mal assados; e espremidos em huma prensa, deitado o tal succo em huma tigela de caldo de perdiz com duas colheres de vinho generoso; e com estes remedios, e com naõ sangrar; livrei das mãos da morte, naõ só a este homem, mas muitos outros, cujos nomes quero passar em silencio por naõ molestar aos Leytores.

10. Quiz escrever estes exemplos, naõ por jactarme de aver curado muitas febres sem sangrias; mas para acautelar aos Medicos modernos, e faltos de experiencia, advertindolhes que quando os chamarem para curar aos enfermos, examinem primeiro se saõ casados de poucos dias; se saõ descomedidos nos actos conjugaes, se saõ demasiadamente estudiosos, se fazem muitas penitencias, se tem officios de grande trabalho do corpo, ou do espirito, se lhes falta o sustento a suas horas, ou se os alimentos de que usa saõ de pouca, ou ruim substancia; porque as febres destas taes pessoas, ordinariamente procedem dos espiritos exhaustados, e gastados, a que o povo chama esfalfamento; e quem sangrar aos que tiverem febres procedidas de qualquer destas causas, experimentará disgraçados successos, como eu tenho visto alguns, que deixo de referir, porque o meu intento he servir a todos, e naõ offender a alguem; mas porque na hora da morte me naõ diga Deos, dai cà razaõ, porque depois de tantos annos de experiencia, naõ dissestes aos homens os damnos irreparaveis, que fazem as sangrias nos gastados, e esfalfados, nem advertistes aos doentes, como na primeira visita devem informar aos Medicos de tudo, porque deste modo seguraráõ a sua vida.

11. Nem faça horror aos principiantes o serem quentes o vinho, o chocolate, o caldo de perdiz, os ovos, e o diacidraõ, o ambar, nem o paõ de ló; porque tambem a quinaquina he muito quente, e curamos com ella infinitas febres: tambem a salsa parrilha he quente, e com ella curamosas febres gallicas: quentissima he a agua ardente, e posta sobre os erysipelas, os cura muito bem: o aço (pelas muitas partes sulphureas que em si tem) he quentissimo, e cura as febres de oppilaçaõ melhor que outro qualquer remedio. Ultimamente por esta Observaçaõ consta que a sobredita enferma perderia certamente a vida, se obrigado da febre a tivera sangrado; mas como do grande damno, que lhe fizeraõ as primeiras sangrias, entendi que a febre procedia das forças exhaustadas, lhe dei, em lugar dellas, os sobreditos restaurativos, e foraõ elles taõ proveitosos, que dentro de tres dias se despedio a febre, e ficou boa.

OBsERVAÇAM LXIII.

De hũa surdez, o zunimento de ambos os ouvidos acompanhado com suma purgaçaõ, que por elles corria passante de dous annos, no discurso dos quaes se applicaraõ muitos remedios sem alivio; donde vim a presumir que dentro nos ouvidos avia alguma chaga, e que essa era a causa de tanta resistencia: e naõ me enganei; porque depois do doente bem purgado, lhe deitei dentro hum licor feito de escorias de ferro; e foy taõ efficaz o effeito deste remedio, que se venceo a doença no termo de cincoenta dias.

1. NAõ avera quem ignore, por mais que veja de passagem as cousas deste mundo, quam fragil he a vida humana, e a quantas pensoens està sujeita a nossa natureza, sem que a mocidade, ou valentia sejaõ bastantes armas para resistir aos assaltos das doenças, que cada dia padecemos.

2. Tres annos avia que Francisco Nunes, homem maritimo, mancebo, e robusto padecia continuadamente, huma surdez, e zunimento de ouvidos; e sem embargo q̃ era pessoa humilde, nem por isso deixou de fazer toda diligencia possivel para curarse: mas como este homem se governasse mais pelas inclinações do appetite, que pelos dictames da razaõ, comia, e bebia tudo o de que gostava, sem attender ao damno, que lhe podiaõ causar semelhante erros; e esta (a meu ver) foi a causa, porque lhe naõ aproveitavaõ os remedios, que se lhe tinham applicado, sendo todos mui excellentes; e porque depois das sangrias, purgas, apozemas, pilulas, e mil medicamentos outros, tirou só enfado, e aborrecimento, mas nenhum fruto; me pedio lhe quizesse applicar algum remedio, que o livrasse de taõ penosa queixa. Muitos foraõ os que me occorreraõ taõ bons, e taõ singulares, que podiaõ competir entre si sobre a primasia de qual avia de preferir, e levar a palma. se olhava para o oleo das gemas de ovos feito de fresco, me parecia que elle só bastava: se considerava no succo, que se espreme de cebola assada recheada com oleo de amendoas amargosas, com huma oitava de pò de raiz de aristoloquia redonda, e quatro grãos de cravo da India, entendia que todos os mais remedios eraõ escusados, com tanto que a surdez, tinido, ou dor procedesse de causa fria; naõ me esqueceo o genital do porco frito em oleo de amendoa amargosas; nem me passou por alto aquelle taõ decantado remedio de Dioscorides, (1.) que para dores, e queixas dos ouvidos de causa quente he milagroso, e se faz de oleo rosado fervido a fogo lento em huma casca de romãa com uma duzia de bichos de conta chamados mille-pedes: bem me lembrou o fel de cabra fervido com igual quantidade de mel de enxame: tambem me occorrèraõ por cousa singular para as dores dos ouvidos de causa quente, tres gottas de oleo da semente de meimendro, ou oleo de páo de freixo feito per descensum: nem me passaram do sentido as fumaças de tabaco de fumo, ou de enxofre deitadas muitas vezes no dia nos ouvidos: sendo para a minha estimaçaõ mais admiravel de todos o espirito do osso do veado, (2.) e depois deste o que se faz de huma oitava de almecega, hum escropulo de semente de arruda, outro de mostarda, outro de cravo, e outro de açafraõ, cozido tudo com mel a fogo lento, finalmente lembráraõme aquelles dous decantadissimos remedios, a gordura da eyrò de agua doce assada em espeto, e o oleo de amendoas amargosas, em que se frigissem dous, ou tres ratinhos acabados de nascer. sem embargo porèm que qualquer destes remedios era capacissimo para curar dores, e zunimentos de ouvidos, como muitas vezes tenho observado, de nehum quiz usar sem evacuar novamente os humores, preparando-os primeiro com os seguintes xaropes capitaes. Tomai de folhas de betonica, cabeças de hysopo, e de rosmaninho, de cada cousa destas duzia e meya de sementede funcho huma oitava, tudo se coza em panela de barro a fogo brando com tres quartilhos de agua commua, e a cada cinco onças deste cozimento coado fiz ajuntar huma onça de mel rosado; acabados que foraõ de tomar quatro xaropes destes, purguei ao doente com quatro onças de cozimento dos sobreditos xarope, em que mandei infundir, por huma noite, duas oitavas de folhas de sene, e dous escropulos de agarico trociscado, a que ajuntei depois de coado duas onças de xarope Rey, e huma oitava dos meus trociscos de Fioravanto e descançando tres dias repeti a mesma purga, e descançando outros tres dias lhes fiz tomar cinco vezes em dias alternados as seguintes pilulas, que em alguns achaques dos ouvidos, e dos olhos obraõ prodigios. De massa de pilulas lucis, e Cochias, de cada cousa destas dous escropulos e meyo, misturemse, e formemse pilulas para tomar pela madrugada esta quantidade: com esta previa, e precisa evacuaçaõ, ficou o doente admiravelmente descarregado, e disposto para qualquer dos remedios acima apontados fazer maravilhoso proveito; mas como eu conhecesse que a surdez, e zunimento dos ouvidos procediaõ de chaga que nelles avia, pois por ambos deitava materia, a todos os remedios desprezei contentandome com o lavar muitos dias com agua mel, e depois cozimento de cascas de bolotas, e Epuris, deitandolhe cincoenta dias o oleo de ferro para desecar, e enxugar as materias, e humidades dos orgãos auditorios, que saõ ordinaria causa da surdez; tem maravilhosa propriedade, e em serviço do bem commum quero ensinar o como se prepara, que he do modo seguinte.

3. Tomem de escorias de ferro quatro onças, moaõse com agua em huma pedra muito dura, como saõ aquellas, em que os pintores moem o ouro, até que se faça hum polme sustilissimo, e impalpavel, e depois que o dito polme se secar, e ficar em pò, se metaõ os ditos pòs dentro em huma redoma de vidro, deitandolhe em cima hum quartilho de vinagre branco muito forte, e enterrada a tal redoma até o meyo em huma tigela de fogo cheya de area, se ponha por baixo fogo de candea por tempo de seis horas, e passadas ellas se apague a candea, para que a area, e a redoma se esfriem, e depois de tudo estar frio se tire a redoma da area, e se vase o vinagre em outra redoma com tal cutela, que naõ passe com elle cousa alguma do pè que està no vidro, e sobre os ditos pós se torne a deitar outro quartilho de vinagre branco forte, e se torne a enterrar o vidro na area atè o meyo, podolhe por baixo o fogo de candea por outras seis horas, e acabadas ellas se apague a candea, para que a area, e a redoma se esfriem, e se tornará a vasas mansamente o vinagre dentro na outra redoma, e entaõ se deitará todo o sobredito vinagre em huma tigela da India, ou em outra bem vidrada, e pondose sobre fogo, se deixe evaporar o vinagre, até ficar hum licor da grossura de mel, e então se deitará aquelle mel, ou tintura do ferro em huma redoma de boca estreita, e emcima lhe deitaraõ meyo quartilho de rosa-solis, feita com erva doce, e fechada muito bem a boca da redoma, se enterrerá até o meyo em area, e com fogo de candea se tirará a tintura do ferro, e desta se deitaraõ todas as noites quatro gottas no ouvido, tapando-o muito bem com huma migalha de algodaõ de cheiro; e no fim de cincoenta dias vos admirareis da prodigiosa virtude, com que este remedio enxuga as purgações dos ouvidos, e cura as suas chagas, como succedeo felizmente a este enfermo, de que aqui trato.

4. Quatro cousas quero advertir neste lugar aos Medicos principiantes. A primeira que todos os remedios, que se applicarem para qualquer enfermidade dos ouvidos, se appliquem mornos, porque como o orgaõ do ouvir he membranoso, cartilaginoso, e espermatico, se offende muito com a frialdade actual. A segunda he, que antes que se applique este, ou qualquer outro remedio para achaques dos ouvidos, tomeo doente por hum funil os bafos das seguintes ervas balsamicas, e neruinas, como saõ ortelãa, salva, mangerona, segurelha, poejos, rosmaninho, hyssopo, artemija, mentrastos, e neveda, de cada cousa destas huma maõ cheya, de macela, veronica, e fel da terra, de cada cousa destas meya maõ cheya, tudo se coza com huma camada de vinho fino; e estes fumos, e bafos se tomem muitos dias pelos ouvidos por espaços de meya hora; e depois desta preparaçaõ, poderá o Medico deitar com toda a confiança o oleo, ou extrato das escorias do ferro, ou qualquer outro remedio dentro do ouvido; com tanto que o doente no tempo que tomar bafos, ou deitar o remedio, esteja mastigando castanhas piladas muito duras, ou favas secas, para que com esta diligencia de mastigar, e bolir com os queixos, se abraõ melhor os orgaõs auditorios, e entrem bem os taes remedios.

5. A terceira cousa he, que se a chaga dos ouvidos, por estar sordida, ou ser antiga, resistir a todos os remedios referidos; que neste caso se lhe meta cada dia huma mecha de fios remolhada em huma pequena quantidade do seguinte unguento. Tomai de assucar de chumbo subtilissimamente polvorizado oito grãos, de mercurio doce precipitado lavado cinco grãos, de unguento rosado tres oitavas. A quarta cousa he, que se a surdez, ou queixa do ouvido for taõ obstinada; e rebelde que zombe de todos os remedios acima aporatados, procurem algum boticario taõ curioso, que nenhum trabalho lhe pareça grande a fim de fazer hum grande remedio; e a esse encomende a manufactura do seguinte oleo; e pòde o doente estar certo que se for feito com perfeiçaõ, e com todos os ingredientes que eu aponto na receita, recuperará a saude que deseja; o oleo se faz do modo seguinte.

6. Tomai trezentos ovos das formigas, e quarenta bichos de conta, (chamados vulgarmente mille-pedes, e saõ aquelles, que tocandolhes com o dedo se fazem taõ redondos como huma conta) de castoreo verdadeiro huma oitava; de polpa de coloquintidas; de folhas de mangerona, de losna, e de arruda, de cada cousa destas huma oitava; de canela finissima duas oitavas; de semente de erva doce, de cominhos, de alcorovia, e de funcho, de cada cousa destas duas oitavas; de bagas de loureiro descascadas outras duas oitavas; de cascas de romãa, de helleboro negro, e de cascas de rabaõ, de cada cousa destas tres oitavas; de amendoas amargosas duas onças; tudo se pize conforme os preceitos da Arte, e se meta tudo em huma garrafa de vidro forte de Olanda, deitandolhe em cima meya canada de azeite, o mais fino, e velho que se puder achar; e fechando muito bem a boca da tal garrafa, se enterre em hum monte de esterco de cavallo por quinze dias, e acabados elles, se tire a garrafa, e se meta em hum tacho de agua, e pondose sobre o fogo ferverá o dito oleo por espaço de duas horas, e acabada esta fervura, se coe o oleo com for te expressaõ, e se guarde bem fechado, e delle se deitaráõ seis gottas no ouvido duas vezes no dia; e no espaço de hum mes observaráõ hum mes observaráõ hum prodigioso effeito; no caso porém que todas estas diligencias naõ bastem, eu tenho humas pastilhas, cujos bafos saõ de virtude taõ admiravel, que naõ deixaráõ frustradas as esperanças dos doentes, os que as quizerem usar fallem comigo.

OBsERVAÇAM LXIV.

De huma dor de cabeça taõ rebelde, que naõ obedecendo a muitos remédios singulares, só aos pós de quintilio, e a humas pilulas narcotico-purgantes, e finalmenre a huns soros de leite alterados com humas gottas de oleo de vitriolo se rendàraõ

1. MAria de Miranda, criada de Ruy de Moura Manoel, padeceo humas dores de cabeça taõ insoportaveis, que nam ouve em toda Medicina cabedaes bastantes para a resgatar dellas; e como esta mulher visse que com o seu mal se tinhaõ baldado muitas diligencias da Arte, só em Deos poz as suas esperanças, e assim prostrada por terra com humildade no coraçaõ, e lagrimas nos olhos fazia ao Ceo continuas deprecações pedindo a saude, ou ao menos algum alivio para taõ grande sentimento.

2. Neste ancioso cuidado, e ardente desejo de ter saude lhe veyo à noticia que para algumas doenças obstinadas, sabia eu alguns remedios especificos, e experimentados; e por esta razaõ me mandou chamar, pedindome fizesse todo o possivel para a aliviar de dores taõ desesperadas. E chegando eu a ver a affigida enferma, lhe perguntei se a dor era nova, ou antiga; se era por toda a cabeça, ou se occupava huma só parte della; se era continua, ou interpolada; porque se era nova, se chamava Cephalalgia, e era facil de curar; se era antiga, se chamava Cephalea, e era difficultosa de vencer; se occupava huma só parte, se chamava Hemicrania; se era continua, se chamava Idiopathica, e tinha a sua causa fixa na cabeça; se era interpolada, se chamava sympathica, e se communica de outras partes: porque he cousa bem sabida que as dores, ou enfermidades, que tem intervallos, daõ indicios certos que saõ effeitos de alguas fluxões, e que procedem de outras partes; que a procederem da mesma, seraõ sempre permanentes, e continuas.

3. Como pois a doente me dissesse que a sua dor era muito antiga, e que occupava toda a cabeça, mas que naõ era continua, conheci q̃ era Cephalea, e que procedia de vapores acres ; e colericos, que do estomago subiaõ; e acabei de conhecer que assim era, por me dizer lhe amargava muito a boca. Tambem conheci que a tal dor occupava as partes, que estaõ do casco para dentro, pois quando apertava a cabeça com as mãos, ou com hum toucador, nem se augumentava, nem se diminuhia; e naõ succederia afim, se a dor estivera do casco para fóra; porque a compressaõ exterior teria dominio para a tirar, ou para a diminuir. Conhecendo pois que a causa da tal dor eraõ os humores colericos, que do estomago subiaõ, foy o meu primeiro empenho deitar fóra os humores, que eraõ a causa de tanto mal: foy o segundo, confortar a cabeça, para que naõ recebesse os vapores damnosos: foy finalmente o terceiro empenho fixar o fervor da colera, e moderar a arrebatada circulaçaõ do sangue.

4. Para evacuar pois do estomago a causa material das dores, fiz tomar a doente, dous dias successivos, tres onças de agua benedicta bem vigorada: do qual remedio esperei justamente colher grande alivio, principalmente vendo a grande quantidade de humores colericos, que sahiraõ por vomito. Mas (oh enganosas esperanças dos homens !) cresceo a dor, quando eu esperava se tirasse: daqui comecei a suspeitar se no casco averia alguma corrupçaõ, que fosse causa da sobredita dor; ou algumas bostelas recolhidas, como eu observei em huma moça, cujo successo podem ver os curiosos na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap 7. fol. 54. num. 32.

5. Desvanecèraõse porèm estas duas suspeitas, assim porque a dor naõ durava sempre, nem estava fixa em hum lugar; porque quando estes dous sinaes concorressem juntos, faziaõ grande prova de que as dores procedem de corrupçaõ do osso, nem tinhaõ precedido bostelas , que se recolhessem. Julguei pois que sem embargo que a dor era sympathica, e naõ tinha a sua causa na cabeça, já esta passava praça de dor idiopathica, e essencial, pelo muito tempo, que lhe durava: e consequentemente entendi que seria conveniente fazerlhe tomar de tres em tres dias as pilulas seguintes. De calomelanos Turqueti bem preparado tres oitavas, de trociscos de Alaandal subtilissimamente polvorizados meya oitava, de laudano opiado feito por bom artifice quinze grãos; e misturando tudo muito bem com huma migalha de electuario rosado, se formem pilulas, de que dei meya oitava, de tres em tres dias, em jejum. Com este admiravel remedio obrou suavemente, e com grande utilidade na enfermo. Mas como pela duraçaõ das dores ficasse a cabeça muito enfraquecida, me resolvi (para a confortar) applicarlhe sobre a testa, e fontes o seguinte unguento. Tomai de unguento de alabastro duas oitavas, de unguento populeaõ húa oitava, de laudano opiado oito grãos, tudo se misture muito bem com çumo de orgevaõ, ou de salva, ou de mangerona. E porque entendi que os vapores da colera fervente, e exaltada eraõ a causa de tantas dores, para os fixar, e reprimir lhe fiz comer cada dia duas onças de assucar rosado lavado, e limpo da calda, que por ser doce he prejudicial aos que padecem alguma doença procedida de colera, misturando todos os dias com o dito assucar rosado lavado meya oitava das minhas pilulas alcalicas, ou absorbentes, cujas virtudes sendo admiraveis para muitas doenças, como os curiosos podem ver na minha Polyanthea da segunda impressaõ, no trat. 3. cap. 4. desde a fol. 847 até 850. o prestimo sobre todos os prestimos que tem as ditas pilulas saõ de embeber em si os humores acido-salinos, dos quaes procedem a mayor parte das dores, que o corpo padece. Finalmente para fixar, e rebater a ferocidade, e orgasimo dos humores malignos, aconselhei tomasse por quarenta dias em jejum hum quartilho de soro de leite de cabras preparado com a perfeiçaõ, que eu ensino na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 68. fol. 438. ajuntando a cada soro dez, ou doze gottas de oleo de enxofre campanado, ou as que bastarem para que o tal soro fique agradavelmente azedo, porque desta sorte naõ só refresca muito as entranhas, e tempera os incendios do fígado; mas fixa, e liga a acrimonia biliosa dos humores, e reprime a circulação arrebatada do sangue.

6. No entretanto que se applicavaõ estes remedios, me naõ descuidei de mandar fazer repetidos lavatorios de agua muito quente aos pés; porque naõ se póde encarecer o proveito, que fazem estes pediluvios em todas as doenças da cabeça, do coraçaõ, e do ventre. Tambem usei repetidas vezes de esfregações, ajudas, e ventosas secas nas barrigas das pernas.

7. Tambem usei de algumas emborcações feitas com partes iguaes de leite, e óleo rosado mornos; e com estes remedios conseguio saude taõ perfeita, q̃ seria eu reo de hũ grande crime, se deixasse sepultadas na cova do silencio humas noticias de taõ grande cura, taõ uteis para os presentes, e foturos enfermos de semelhantes dores.

8. Duas cousas quero advertir aos Medicos principiantes. A primeira, que se algum dia se exasperar a dor de cabeça de sorte que prostre muito as forças, se desprezem todos os outros indicantes, e se acuda primeiro ao symptoma da dor: naõ em quanto symptoma; mas em quanto póde ser causa de perigar a vida, ou de algum acidente: pela qual razaõ em casos semelhantes costumo recorrer ao uso do laudano opiado, dando em dous, ou tres dias successivos huma pilula de tres grãos; porque depois de mitigada a violencia da dor, se tratarà da causa della. A segunda cousa he, que se a dor de cabeça for taõ indomavel, que zombe de todos os remedios; que neste caso se abraõ fontes em ambos os braços com toda a confiança, sem fazer caso do rustico medo da gente vulgar, que treme, e teme de ouvir fallar em fontes altas nas mulheres; porque a experiencia de muitos annos me tem ensinado que todas as vezes, que a doença da cabeça he antiga, e naõ obedece aos remedios mais eficazes da Arte, só obedece às fontes altas, ou o doente seja homem, ou mulher. Em confirmaçaõ desta verdade pudera allegar muitos exemplos; mas por naõ enfadar referirei só quatro.

9. Dona Luiza Maria Pereira, mulher de Joaõ Guilherme, padeceo no discurso de quatro annos tantas dores de dentes, que a obrigàraõ a tirar sete à violencia do ferro; e como eu visse que o estillicidio, e causa das taes dores, por serem jà antigas, passavaõ praça de essenciaes, e idiopathicas, lhe fiz abrir fontes altas, naõ obstante ser mulher moça, e ter contra mim a opiniaõ de certo Medico doutissimo, que as impugnou muito: mas o feliz successo que teve com as ditas fontes, mostrou que o meu conselho foy mais acertado.

10. Domingas Ferreira Lopa, mulher de meu irmaõ Francisco Curvo semmedo, padeceo mais de doze annos vertigens, e queixas da cabeça taõ grandes, e continuas, que lhe naõ davaõ lugar a sahir de casa, nem a ouvir Missa, sem que a assaltassem os ditos accidentes vertiginosos, e com tanta furia, que pareciaõ gotta coral; e como pela antiguidade dos ditos vagados os reputasse como essenciaes, e idiopathicos, naõ obstante ser mulher moça, lhe mandei abrir fontes nos braços contra o voto deoutro Medico muito famigerado, e sarou radicalmente.

11. Dona Anna de Vasconcellos, mulher de Joaõ Tavares Moniz, foy muitos annos perseguida de distillações ao peito, e aos olhos taõ furiosas, que causavaõ lastima aos corações mais penhascosos; e porque a doença era já antiga, e como tal, era quasi essencial, e idiopathica, lhe mandei abrir fontes nos braços e teve tanta melhoria, que pareceo milagrosa.

12. Agueda Paes padeceo cinco annos tantas defluxões, e inflammações de olhos, que fugia de que a gente a visse pela deformidade em que estava; e naõ obstante ser mulher, e já velha, sarou com as fontes dos braços.

13. Joanna de Jesus, moradora ao poço dos Negros, teve huma fistula no lagrimal avia quatro anos; e sem embargo de ser mulher moça, sarou da dita fistula com huma fonte alta.

14. Basilio Couceiro, Escrivaõ das Capellas do senhor Rey Dom Affonso V. tinha cada seis , ou oito meses huma dor, e inflammaçaõ da garganta taõ apertada, que parecia hum garrotilho, e por esta causa vivia com perpetuo regimento, e nem este bastava para se livrar, e enfadado já das muitas sangrias, que cada seis meses levava, lhe aconselhei abrisse fontes nos braços, e com ellas sarou de sorte, que nem teve teve mais semelhante dor,nem inflammaçaõ, passa de quinze annos.

15. Allego todos estes exemplos felicemente succedidos com fontes altas em mulheres moças , para que os principiantes, e os barbeiros, que curaõ em terras onde naõ ha Medicos, percaõ o medo, e mandem abrir fontes nos braços, ainda que seja em mulheres moças, se os achaques da cabeça, dos olhos, dos dentes, ou da garganta forem antigos, e naõ obedecerem aos outros remedios. Advirto porèm que se os taes achaques forem novos, e de pouco tempo, que em tal caso naõ louvo, nem aconselho às mulheres fontes altas, mas louvo as baixas.

OBsERVAÇAM LXV.

De huma grande febre acompanhada com tosse, rouquidaõ, fastio, & magreza, e causado tudo de grandissima fraqueza; para cujo remedio se chamou hum idiotissimo barbeiro, o qual por lhe naõ esquecer o officio de tirar sangre, sangrou, & mais sangrou, até que as forças se prostàraõ de modo que esteve a doente em risco de morrer, se eu lhe naõ suspendera as sangrias, & lhe naõ acudira com caldos restaurativos.

1. Muitos successos desgraçados acontecem a alguns enfermos, porque fiaõ as suas vidas de qualquer Medico novato, ou barbeiro ignorante, sendo que aos taes doentes lhes seria melhor carecer totalmente de Medico, que governarse pelo conselho de quem naõ tem letras, nem experiencia. Isto digo, para que advirtaõ os enfermos quanto lhes importa chamar hum bom Medico desde meira hora da enfermidade, por mais leve, & na que seja; pois saõ muito mais graves os commissaõ, que os de omissaõ, como pelo que referirei no seguinte caso

2. Agostinha Pereira, moradora na rua das Canastras, amava com taõ grande excesso ao primeiro filho que teve, que o quiz crear a seus peitos; porèm, ou pelo grande trabalho que teve com a creaçaõ, ou por naõ dormir, nem descansar de noite, nem de dia, todo o tempo que lhe era necessario, pelos repetidos choros da criança, ou pela muita quantidade de leite, que esta mamava, se poz em taõ grande fraqueza, que o estomago naõ só lhe cozia mal os alimentos, mas muito tarde; o que conheci, porque depois de ter comido seis horas, ainda que fosse a iguaria mais leve & facil de digerir, experimentava algumas dores no fundo do estomago, & arrotos que cheiravaõ ao que tinha comido: dondo como o estomago naõ fizesse o seu officio, ou o seu cozimento perfeito, se originou huma excessiva copia de excrementos, & por esta causa o chylo viciado convertendose em sangue grosso, & vicioso, & distribuindose por todas as partes do corpo lhe introduzio febre, tosse, rouquidaõ, fastio, & outros symptomas desta qualidade.

3. Como pois esta mulher se visse assaltada de tantos males juntos, em lugar de escolher hum Medico letrado, para que a curasse, chamou hum barbeiro ignorante, & como tal julgou que era necessario tirarlhe sangue, quando devia darlho a beber, porque em semelhante caso se algum Medico doutor seu cargo a cura desta enferma, taõ estaria de a mandar sangrar, que antes lhe applicaria vos, lhe prohibiria que desse de mamar, & lhe applicaria cousas corroborantes porque se a debilidade contrahida por tantas occasiões tinha sido causa queixas referidas; com que fundamento se avia de dar o castigo ao sangue inculpado? Mas o barbeiro era incapaz para fazer a cura, como qualquer burro tanger huma viola. Commettido finalmente taõ grande erro, se accendeo a febre, se incruou a tosse, & cresceo a magreza de tal modo, que os mesmos parentes da doente, & pessoas de casa que a trataraõ com familiaridade, a desconheciaõ. Em tam grande perigo me chamaraõ, 7 com muitos rogos me pediraõ quizesse encarregarme de huma doença de tanta consideração. Para aver pois de cortar com uma espada, & de hum só golpe a hũa hydra de tantas cabeças, mandei que a sobredita enferma naõ desse mais de mamar ao menino: & para vencer a febre, a tosse, a magreza & a rouquidaõ (procedido tudo dos espiritos exhaustados) mandei applicar a seguinte bebida de seis em seis horas. Tomai de cevada pilada tres onças, cozase em panela nova com vinte quartilhos de agua, até ficarem tres quartilhos, & com esta agua ordenei se fizesse huma amendoada de pevides de abobora, melancia, & melaõ, a que ajuntassem huma oitava de sementes de dormideiras brancas, & duas duzias de amendoas doces, & com este leite mandei bater as claras de seis ovos frescos, & quatro onças de assucar branco, & desta potagem lhe fiz beber, de cinco em cinco horas, seis onças: & para adoçar a acrimonia dos humores, que irritavaõ a tosse, & a destillaçaõ, & suspender a fluxão, que da cabeça cahia no peito, & na garganta, ordenei tomasse todas as noites (ao recolher) oitava & meya de diacodio, misturado com humas colheres de caldo; & que sobre a commissura coronal, rapada à navalha, lhe applicassem o seguinte suspensorio, de que tenho muita experiencia, & colhido grande fruto. Tomem oito caracois, pizemse muito bem com huma onça de fermento bem azedo, & huma gema de ovo muito dura, & depois de tudo estar muito bem pizado, & misturado, ajuntem a esta massa pós de incenso macho, de almecega, de sangue de dragão, & de alambre, de cada consa destas hum escropulo, & estendendose huma pouca desta massa sobre hum panno de linho, se applique, cada vinte & quatro horas, no lugar sobre dito. Assim se execuron logo, & continuandose quinze dias com o tal remedio, & com as sobreditas amendoadas, & com o diacodio, conheceo a doente mui grande melhoria; mas porque avia ainda alguma tosse, de rouquidaõ, desejei darlhe todos os dias meyo quartilho de água quente te, cozida com hum punhado de flor de sabugueiro secca à sombra, & adoçado com huma colher de assucar; por ser este remedio mui decantado para esta doença; porèm naõ se achando a dita flor, usei das seguintes pastilhas, que trazidas na boca todo o doa, tem admiravel virtude para tosses, & rouquidões. Tomem de raizes de lavaisco bem pizadas tres onças, deitemse de infusaõ em meya canada de agua bem quente, & no cabo de quatro dias se deite fora a agua, & se pizem muito bem ditas raizes; & se paste aquella massa por huma pineira derala, & a esta massa se ajunte de raiz de lirio Florentino duas oitavas, de flores de enxofre oitava & meya, de raiz de alcaçuz duas oitavas, tudo se faça em pò subtilissimo, & com alquitira, & goma Arabia se formem pastilhas, & secandose à sombra até se fazerem duissimas, & dellas uson com tanta felicidade, que sarou da tosse, & rouquidaõ.

4. Restava somente por vencer a grande fraqueza, & o summo fastio; para restauraçaõ dos quaes ordenei os seguintes caldos regenerantes, & nutrientes: Tomem hum frangaõ, a metade de hũa gallinha, hũa perdiz, tres arrateis de carne de vitela, ou em falta della hum capaõ gordo, & fazendo todas estas carnes em pedaços, se ponhaõ a cozer em panela muito bem tapada com seu testo barrado, com quatro canadas de agua, até ficar tudo em meya canada, & tirandosse a panela do fogo, se tire toda a gordura deste caldo, & se deite fora, & do caldo magro ordenei se fossem dando, de quatro em quatro horas, duas onças desta gelatina misturada com tres onças de caldo de gallinha; fazendolhe tambem beber (tres meses em jejum) hum quartilho de leite de vacca, começando (para costumarlhe a natureza) de cinco onças, & indo acrescentando cada dia a quantidade, até chegar a humquartilho & assim depostos os cuidados, dormindo com sossego, & comendo bons alimentos, tomou forças, & teve saude, quando jà não avia esperanças de vida.

5. sea verdade bem aceita de todos, zella naõ excitàra odios, quantos successos desgraçados pudera referir de pessoas, que morreraõ de levisssimas doenças, porque fiaraõ as suas vidas, & faude do pessoas ignorantes? o que naõ succederia, se ouveraõ chamado Medico douto desde a primeira hora, que enfermaraõ. Mas porque muita parte da gente, (principalmente a ordinaria) naõ duvida entregar a sua vida a qualquer embusteiro, viandante, ou amolador de facas; daqui procede que algumas doenças, que naõ eraõ para temidas, pasvaraõ a se incuraveis: mas para que daqui por diante naõ succedaõ semelhante infortunios, encomendo muito a todos, que tanto que adoecerem, chamem logo Medico letrado, & experimentado, porque desta sorte se escusaraõ as lágrimas do arrependimento, & se conseguiraõ os gostos da saude.

6. Ponhaõ os doentes ao menos aquelle cuidado em escolher Medico para lhe fiar a sua vida, que poem em escolher hum bom alfayate para lhe fazer o seu vestido, que a gala da tela, ou de borcado naõ he taõ preciosa como a saude, se esta se errou naõ se acha outra a comprar, assim como na rua Nova se achará outra tela a vender.

OBsERVAÇAM LXVI.

De hum menino, que padecia grandes ancias do coração, rangimento de dentes, comichão de narizes, gritos lamentaveis, sonhos turbulentos, & outros gravissimos symptomas; o que tudo procedia da grande quantidade de lombrigas.

Alguns enfermos tenho achado, que tem tão grande aborrecimento, & repugnancia aos medicamentos, que mais facilmente querem morrer, que tomallos. Confesso q naõ posso sofrer tanto melindre, antes quando me chamaõ para curar enfermos fermos taõ afeminados, & invencioneiros, desejo (em castigo da sua culpa) deitallos de mim, & deixallos à sua revelia, & com muita razão; porque supposto seja mao naõ poder tomar os medicamentos, muito peyor he naõ os querer tomar: comtudo se entendo que o aborrecimento que tem dos remedios naõ he malicia affectada, mas horror, & antipatia natural que o estomago tem às medicinas, em tal caso faço quanto posso por aliviallos com alguns remedios exteriormente applicados.

2. No meyo do Estio estava doente hum menino de idade de oito annos, filho de Matheos da silva, com comichaõ dos narizes, rangimento de dentes, ancias do coração, magreza excessiva, & gritos taõ estrondosos, que se ouviaõ por toda a vizinhança; & como estes symptomas sejaõ inseparaveis das pessoas, que tem lombrigas, tive por sem duvida que no dito menino avia muitas, principalmente quando com o excremento tinha lançado alguas; & por consequencia se aviaõ de curar os taes symptomas com remedios, que matassem os taes bichos. Porèm sabendo eu que o tal menino de nenhum modo podia beber medicamento algum, ainda que fosse levissimo, determinei appellar para os remedios, que se applicaõ por fóra, entre os quaes tem grande virtude o seguinte lenimento. Tomem de oleo de losna, de ipiricaõ, & de amendoas amargosas, de cada cousa destas tres onças; de pòs de coloquintidas, & de aristoloquia longa, de cada cousa destas huma oitava, de folhas de ortelãa huma mão cheya, & com seis dentes de alhos se pize tudo medianamente, & a fogo brando se ferva; & com este oleo fomentei o estomago, ventre, narizes, & pulsos duas vezes no dia; & como o doente sentisse alguma melhoria, mandei continuar as sobreditas fomentações por cinco dias successivos; porèm como o alivio naõ continuasse taõ felizmente como eu desejava, lhe appliquei outra fomentaçaõ de grande, & mayor efficacia, & se prepara da maneira seguinte. Tomem das amendoas dos caroços dos pessegos huma onça; de alhos alhos descascados meya onça; das casquinhas exteriores amarellas das laranjas azedas, de cada cousa destas huma onça; de semente de Alexandria, derabau, & de couves, de cada cousa destas meya onça; de folhas de losna, de fel da terra, de ipericaõ, de diétamó, de genciana, de azevre, de pó de osso de veado, de pó de coloquintidas, & de tremoços, de cada cousa destas meya onça; pizese tudo, & ponhase a ferver com fogo lento em quatro libras de azeite commum; depois por quinze dias se ponha ao sol, & á Lua, de depois se guarde para usar delle. Nenhum remédio exterior se acharà de virtude mais presentanea do que este oleo, pois raras vezes se fomentará o ventre, & estomago com elle, que dentro de oito dias naõ surta o grande proveito que se deseja, fazendo deitar fóra muitas lombrigas, como succedeo ao nosso enfermo, que lançou quarenta, & logo se tiràraõ as ancias, & os outros symptomas, & começou a comer bem, mas naõ obstante isso, continuou a magreza de maneira, que cada dia se atenuava mais; daqui vim a presumir, que o dito menino tinha entre a pelle, & carne algumas lombrigas pequenissimas, a que os Doutores (i.) chamaõ Dracunculos, ou syrones, os quaes bichinhos costumaõ causar ancias, choros, inquietações, magrezas, & atrofias grandes, por mais que comaõ alimentos substanciaes, antes a olhos vistos de vaõ lecando, & desmedrando até que morrem.

3. Como pois eu entendesse que os Dracunculos eraõ os que causavaõ a magreza, & atrophia, ordenei que depois de lavarem ao menino, & o enxugarem com panno quente, lhe esfregassem muito bem as costas com hum pombo acabado de matar, para que os Dracunculos acudissem a chupar o sangue, & que pesadas doze Ave Marias se rapassem as do menino com huma navalha bem afiada, para deste se cortarem as cabecinhas dos taes bichinhos, que me consta pelas experiencias de alguns res, & do Doutor Antonio da Mata Falcaõ, de Medico do Augustissimo Monarca, o senhor Dom Joaõ o IV. que com este genero de remedio livraraõ a muitos meninos da garganta da morte.

4. Finalmente para renutrir, & fazer tomar carnes, & forças ao sobredito menino, aconselhei que por tempo de hum mes lhe dessem em jejum hû quartilho de leite de egoa, que naõ comesse no tal mes mais que cevada, & grama em lugar de palha; porque este leite assim preparado, he hum dos mayores remedios para matar lombrigas tanto por si, como pela grama, & por huma, & outra cousa maravilhoso para desopilar as veas lacteas, & lymphaticas, que por estarem obstruidas, saõ muitas vezes causa da magreza das crianças: tudo se fez, como eu aconselhei, & cobrou saude taõ perfeita, que me escusou de usar do oleo de Bachi do graõ Duque de Florença; o qual oleo entre os remedios exteriores, leva vantagem a quantos tem o mundo; assim o diz Eustaquio Rudio, (3.) & as experiencias o confessaõ, com tal condiçaõ, que seja verdadeiro, & feito na botica daquelle Principe: digo sendo verdadeiro; porque tambem em Florença, como em Portugal, se falsificaõ oje alguns remedios, & se vendem aos desgraçados doentes com o nome de verdaderios, mas logo se conhece o engano; porque os adulterados, & contrafeitos, naõ fazem as boas obras, que fazem os legitimos.

5. se o menino de que fallo nesta Observaçaõ, fora capaz de tomar remedios pela boca, o meu arcano chamado das lombrigas lhas deitaria todas fóra, porque de muitos annos a esta parte ainda não achei remedio mais efficaz, como se tome dous dias successivos, & seis dias alternados em quantidade de huma oitava em fórmula de pilulas: & os que naõ quizerem servirse deste remedio, por ser meu, ou por duvidarem dos louvores que lhe dou; podem dar cinco, ou seis dias successivos em jejum, huma chicara de agua levemente fervida com rosmaninho, misturandolhe meya oitava de osso de veado cru limado em pò muito fubtil.

6. Ou podem dar, tres dias successivos em jejum, meyo meyo quartilho de agua, em que estivesse de infusaõ huma noite huma cebola crua feita em selada miuda.

Os que quizerem saber outros remedios para matar lombrigas, vejaõ a minha Polyanthea da segunda impressaõ, no cap. 62. das lombrigas, da folha 396 até 404.

OBsERVAÇAM LXVII.

De huma tosse rebeldissima, que certa mulher padeceo, estando taõ magra, & debilitada, que todos entenderaõ se fazia tisica; & por virtude dos pós de quintilio que lhe dei repetidas vezes, & das pilulas de hiera de Pachio, sobre que bebia hum caldo de cágado, & de frangaõ, a livrei da morte.

1. ENtre a multidaõ de doenças, a que a vida humana está sujeita, nenhuma atormenta tanto aos mayores Medicos, como a tisica, pois lutando elles com esta cruel hydra, baldaõ o seu trabalho, & naõ conseguem a vitoria, como succedeo ha poucos dias a hum Medico de boa fama, o qual sendo chamado para curar huma donzella, chamada Maria de Tavora, moradora nos Olivaes, a achou muito affligida com huma fluxaõ acre, & corrosiva, que lhe cahia no peito, com febre, & tosse taõ continua, que todos entendiaõ que se faria tisica; & supposto que para vencer a tantos inimigos juntos lhe applicasse muitos remedios selectos, foraõ taõ mal succedidos, que a doença empeyorava ao compasso q o desvelo do Medico crescia. Desanimouse elle totalmente, vendo que o achaque zombava das suas diligencias, & se resolveo a deixar a doente ao arbitrio da fortuna. Neste apertado conflicto fui chamado, como sou muitas vezes quando os doentes estaõ ungidos; confesso que tive grande medo de me encarregar de huma enferma, que alem de padecer duas enfermidades taõ perigosas, tinha tambem contra si o rigor das calmas do Estio, Estio, com que se me fazia a cura mais difficultosa, & arriscada. Porèm como eu visse que a doença corria à redea solta para a sepultura, julguei que era preciso acudirlhe com grande pressa, porque da tardança se seguiria infallivelmente a morte.

2. Avendo pois de começar a cura, fiz a primeira visita a quinze de Agosto de 1670. & observei que todo o corpo estava resecado, magro, & febricitante; & considerando eu a vehemencia da tosse, a resistencia da febre, & a inutilidade dos remedios, que se lhe aviaõ applicado, entendi que a doença tinha grandes raizes, & que por isso lhe devia acudir por outro caminho, que naõ fosse pela estrada ordinaria, nem com os remedios communs, pois esses estavaõ já feitos sem proveito, & que lembrandome que os Doutores (1.) aconselhaõ, que para as grandes doenças se fizeraõ os grandes remedios; me resolvi a lançar maõ dos chymicos, porque estes chegaõ com todas as suas virtudes, & qualidades inteiras aos lugares aonde está a doença; o que naõ succede aos remedios ordinarios, & vegetais, que as perdem antes de chegar aos lugares, aonde haõ de servir, & por esta razaõ naõ fazem os effeitos desejados; mas como naquelle tempo naõ tinha amanhecido em Portugal a luz da Chymica, estavaõ taõ abominados, & temidos os seus remedios, que só o fallar nelles se reputava por delirio, & crime da mayor grandeza, & por este temor se resolveo a doente querer antes morrer, que tomallos. A esta repugnancia acudi, dizendo que doenças de tanto peso como a sua doçura era, naõ se curavaõ com remedios leves, & que pela doçura da saude bem se podia sofrer o amargoso das medicinas. A estas persuações, & rogos meus, & dos parentes obedeceo a doente, promettendo sujeitarsse ao que quizesse.

3. Antes pois de começar a cura,me puz a discorrer sobre o modo, com que se faz a tisica, & achei que se faz,quando a natureza manda para o bofe o humor, com que se ha de sustentar, & como o tal humor naõ possa ser taõ exactamente puro, que deixe de ter algumas partes excrementicias, se o bofe as naõ aparta bem de si, na sua individual nutriçaõ, se vaõ ajuntando nelle pouco a pouco, & com o continuo calor do mesmo bofe, & visinhança do figado se vem a fazer taõ corrosivas, & mordazes, que acquirem natureza de cal, de fal, & de tartaro; & como os taes excrementos sejaõ muito secos, secaõ tambem muito aos bofes, em quem estaõ embebidos, & lhes imprimem hum taõ máo temperamento, & natureza, que converte em humor acre, & depravado a mayor parte do humor, que a natureza alli mandou para o seu natural sustento, & conservação, & daqui se segue a chaga no bofe, & delle chagado, & inflammado, se inflamma tambem o coraçaõ, & deste se inflammaõ os espiritos, os quaes como pela circulaçaõ se communiquem a todo o corpo pelas arterias, & veas, necessariamente haõ de inficionar a saude, emmagrecer o corpo, & tirar a vida.

4. E se alguem perguntar a razaõ porque os espiritos vitaes se irritaõ, & ardem; direi que he, porque como o calor natural pertende sempre deitar fóra de si tudo, o que he excrementicio, & por serem damnoso à natureza, se acontece que os taes excrementos, por serem muitos, ou viscosos, ou secos, os naõ póde arrojar de si, logo se irrita, & infurece para lançar fóra os excrementos inimigos, & daqui procede a inflammaçaõ no bofe, & desta chaga, a qual supposto seja enfermidade perigosissima, naõ he taõ desesperada, que alguma vez se naõ cure, se cahe em mãos de Medico, que tem remedios taõ efficazes, que fazem effeitos mui parecidos com milagrosos.

5. Consideradas bem as causas desta doença, & tomadas as indicações della, entendi que era necessario evacuar os excrementos acres, pungentes, & tartareos, dos quaes a tosse, a magreza, & a febre procediaõ. Para satisfazer a esta indicaçaõ plenariamente, nenhum remedio achei mais seguro, mais prompto, nem mais admiravel do que he o quintilio, tomando-o dous dias successivos, & tres interpolados, dando cada hua vez quinze grãos delle desatados em tres onças de caldo de gallinha, ou de agua da fonte; ou se podem tambem darmisturados em huma onça de assucar rosado ordinario.

6. Creame quem quizer, mas como Christaõ posso certificar, que com os pós de quintilio tenho curado muitas tosses rebeldes, estillicidios suffocativos, & febres teimosas, assim em pessoas grandes, como em meninos, & crianças de mama, dando-os duas, & tres vezes com prosperos successos: as pessoas que duvidarem desta verdade, podem informarse com Francisco Gomes Fragoso, mercador da rua Nova, o qual tendo huma filha de idade de nove meses espirando, por causa de huma tosse,& destillicidio suffocativo, me chamou, & vendo eu que do grandissimo perigo em que a criança estava, só podia escapar com hum remedio taõ prompto, & efficaz, como saõ os pós de quintilio, lhe dei seis graõs delle, misturados com huma colher de agua commua, & vomitando algumas coleras, & phlegmas salvou a vida. Tambem se podem informar com Duarte Franco, alfayate, morador defronte do chafaris dos cavallos, porque a hum filho seu, de idade de dezoito meses, estando com a vela na maõ por outro destillicidio, & tosse suffocativa, dei oito grãos de pós de quintilio, com que vomitou copiosamente, & sarou da tosse, & do perigo. Perguntem a Domingos Martins official de rodas de sejes, morador junto das convertidas, & elle dirá que tendo um filho de idade de dous annos com o sirrho na garganta, por causa de hua tosse, & destillicidio suffocante, lhe deu, por meu conselho, oito grãos do quintilio; & logo teve saude taõ repentina, que pareceo milagrosa. Informemse com Catherina Pimenta, moradora ao salvador, & ella dirá, que estando huma filha sua de idade de quatro annos, ardendo em febre, & rebentando com tosse, tudo procedido da muita terra, & cal que tinha comido, lhe dei dous dias successivos, & tres interpolados, os pós de quintilio em quantidade de dez grãos, misturados com huma onça de agua do chafaris, & sarou de sorte, que está hoje casada, & com filhos.

7. Os que quizerem mais testemunhas de tosses rebeldes, & destillicidios ,suffocativos, curadas com os pòs de quintilio, vejaõ a minha Polyanthea da segunda impressaõ no trat. 2. cap. 22 fol. 182. n. 16. & 17.

8. Peço muito aos Leitores, que naõ attribuaõ a vaidade o nomear os doentes, & as criãças de mama, que curei com o quintilio; porque só o faço pro zelo do bem commum, & por compaixaõ de ver que alguns Medicos, sem embargo de serem doutissimos, de puro medo naõ ousaõ a dar o quintilio, privando aos doentes da vida, que poderiaõ lograr, se o tomaraõ; & privandose a si das gloriosas curas, que podiaõ fazer, se do tal remedio animosamente usassem como eu o uso, de muitos annos a esta parte, com sucessos taõ felices, que mais parecem obras de milagre, que da Arte, porque tive alguns doentes, que tomando este remedio pela manhãa, se acharaõ sãos à tarde.

9. Os que depois de tantos exemplos, & testemunhas em credito do quintilio, ou agua benedicta lhe tiverem ainda tanto medo, que digam querem antes sangrarse vinte vezes, que tomar o tal remedio huma só vez, lhes direi o que Galeno, (2.) já lhes disse, que taõ fea, & abominavel cousa he desprezar por seu gosto o que lhes póde fazer bem, como desejar por seu regalo o que lhes pòde fazer mal.

10. Tornando ao nosso caso, digo que comecei a cura dando à sobredita enferma, dous dias successivos, quinze grãos de pòs de quintilio por cada vez, desatados em tres onças de agua da fonte, & descansando tres dias, lhos dei outras duas vezes em dias alternados, & conseguio notavel melhoria. Mas porque ainda sentia alguns vestigios de tosse, lhe dei oito vezes, em dias alternados, as seguintes pilulas de hiera de Pachio, que para os estillicidios, & tosses arreigadas, & outros muitos achaques rebeldes, saõ admiraveis, como diz scribonio Largio, (3.) Trincavelo, (4.) & eu o tenho experimentado.

11. Tomem de cabeças de rosmaninho, de folhas de marroyos, de camedrios; (chamada vulgarmente erva Carvalhinha) de agarico trociscado, & de troscicos de Alaandal subtilissimamente preparados, de cada cousa destas dez oitavas & meya; de opoponaco, de sagapeno, de semente de salsa, de raiz de aristoloquia redonda, & de pimenta branca, de cada cousa destas cinco oitavas, de cinnamomo, de espicanardo; de myrrha, & de açafraõ, de cada cousa destas quatro oitavas, tudo se polvorize subtilmente, & com o que for necessario de terebinthina, & mel, se forme massa, de q dei oitava & meya de cada vez em fórma de pilulas; & como entendi q tinha descarregado bem os humores serosos, & corrosivos, lhe dei, em trinta dias em jejum, quinze grãos do meu Antihectico misturado com hus garfos de assucar rosado velho; finalmente ordenei que em quanto durasse a doença, bebesse agua cozida na fórma seguinte. Em tres canadas de agua da fonte ponhaõ a cozer em panela de barro huma oitava de lasquinhas de sandalos citrinos, & nas ultimas fervuras lhe ajuntem huma maõ cheya de folhas de era terrestre; & se naõ ouver a tal erva, usem em seu lugar hum punhado pimpinella; & foy Deos fervido que com estes remedios cobrou taõ perfeita saude, que antes de passarem dous annos casou com Manoel de Bragança, & passa de trinta annos que vive por merce de Deos, & dilligencias da Arte.

12. Desta Observaçaõ colhèraõ os Medicos modernos huma utilidade mui necessaria no acto practico da Medicina, & he, terem confiança para dar animosamente os pós de quintilio nas tosses, & estillicidios, por mais que sejaõ grandes, & suffocativos; porque àlem dos muitos louvores, que grandes Medicos lhe attribuem para esta doença; tenho sido mil vezes testemunha dos maravilhosos effeitos, que os pós de quintilio obraõ, o que se acaba de confirmar com o seguinte caso, que quero referir para acabar de vencer a incredulidade daquellas pessoas, que reprovaõ tudo o que naõ sabem, ou naõ disseraõ os antigos, como se elles estivessem obrigados a saber tudo, sendo isso attributo só de Deos.

13. Refere Greiselio (4.) o caso dizendo as seguintes palavras: Estando eu em Ungria, me buscou hum soldado muito gentilhomem, o qual era casado com huma mulher, que àlem de ser velha estava avaliada por tisica avia sete annos; pediome o dito marido a quizesse visitar; & vendoa eu a achei sem pulso, sem movimento, sem calor, com suores frios, & faltas de respiraçaõ, com o rosto denegrido, & azulado, & suffocandose por instantes; ouvindo o marido esta sentença que lhe dei de morte, fingio com lagrimas, & suspiros, que tinha infinito sentimento de ver a sua mulher em taõ perigoso estado; & como eu imaginasse que aquellas lagrimas eraõ verdadeiras, lhe disse: Visto que vossa mulher está posta no perigo que vòs vedes, & todos conhecem, eu a quero aceitar como morta, & applicarlhe algum remedio, ainda que com pouca esperança de que lhe aproveite; & parecendolhe ao marido que quanto mais depressa morreria, & se veria livre della, me rogou encarecidamente lhe desse alguma medicina; appliqueilhe entaõ hum vomitorio, com que deitou pela boca mais de dez quartilhos de materia purulenta, & daquelle dia por diante começou a melhorar; & dandolhe entaõ varios medicamentos abstergentes, & expectorantes teve saude; cousa que o marido sentio com tal excesso, que endoudeceo, porque vio frustrados os seus máos desejos, & escusados os lutos, velas, & outros funeraes, que (com alvoroço interior) tinha prevenido avia muitos tempos. A vista deste caso taõ maravilhoso, já naõ averà quem se atreva a reprovar os pós de quintilio, salvo por teima, o que naõ creyo de algum Medico Christaõ.

14. Disse acima, que eu dera à sobredita enferma os pòs de quintilio preparados por minhas mãos, porque em negocio de tanta importancia, como he a vida, se naõ devem dar remedios, sem que o Medico saiba a perfeiçaõ com que saõ feitos, ou sem saber as obras que fazem; porque no mesmo remedio està muitas vezes a vida, & muitas vezes a morte, conforme a perfeiçaõ, ou imperfeiçaõ com que he feito. E porque sei naõ ha de faltar quem cuide que o louvar eu tanto os pós de quintilio (que preparo por minhas mãos) he por ambiçaõ, & desejo de que os comprem em minha casa; os desengano dizendolhes que taõ fóra estou de pertender esses avanços, que os tenho ensinado a fazer com toda a perfeiçaõ na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 5. fol. 38. do num. I. ate 3

OBsERVAÇAM LXVIII.

De huma mulher caꭍada, que no diꭍcurꭍo de dous annos padeceo grandes dores de ventre acompanhadas com hum fluxo uterino de humores variegados, fedorentos, e corroꭍivas, que deꭍprezando a mil remedios, ꭍarou radicalmente com o vinho emexco tomado quatro em dias alternados, e com a agua ferrada, e cozida com huma pinha brava machucada, e com as minhas pilulas alcalicas abꭍorbentes.

Huma doente moça, cujo nome quero paꭍꭍar em ꭍilencio, ꭍe achava aꭍꭍligida com huma purgaçaõ uterina de cores diꭍꭍerentes, & com dores de ventre taõ acerrimas, & porꭍiadas, que a obrigavaõ a chorar, & dizer mal da ꭍua vida: Para remedio de taõ penoꭍa enfermidade ꭍe chamaraõ de boa opiniaõ; mas ꭍaõ algumas doenças taõ obꭍtinadas, que quanto mais remedios lhes fazem, ranto mais ꭍe augmentaõ; & vendo a doente que lhe ꭍuccedia o meꭍmo, pois no diꭍcurꭍo de dous annos naõ tinha melhorado couꭍa alguma;antes experimentava, que os diꭍveelos dos Medicos eraõ para ella, deꭍsejou muito chamarme,porem duvidava que eu quizeꭍꭍe vela, porq tendolhe algus ꭍojeitos dado noticias da minha peꭍꭍoa, não quiz ouvillas, nem admittirme no principio; (r.) comtudo o amor da, & o temor da morte a obrigaraõ a por de parte, o juꭍto receyo que tinha,& me fez chamar,como muitos fazem, que me naõ querem quando adoecem,& eꭍtão quazi mortos me rogaõ; & ꭍsem embargo que todas eꭍtas noticias me chegaõ aos ouvidos, nem por iꭍꭍo deixo de fazer quanto poꭍꭍo, por acudir aos que me buꭍcaõ; & permitte Deos, que com os meꭍmos por cuja cauꭍa fugiaõ de mim, conꭍeguem a ꭍaude, de que ja naõ tinhaõ eꭍperança ; muitos caꭍos pudera apontar deꭍtes, mas fiquem em ꭍilencio.

sendo pois eu chamado para curar a eꭍta mulher, a achei não ꭍo ꭍraquiꭍꭍima, & magra, pela vehemencia das dores, & copioꭍa evacuação de materias, que da madre ꭍahiaõ, cheya de faꭍtio pelo dilatado regimento, & exceꭍꭍivo numero de, que tinha tomado: para aver de curar a eꭍta enferma, conꭍsiderei que eraõ neceꭍꭍarias tres couꭍas, ꭍem as quaes ferias impoꭍꭍivel vencer a enfermidade, como o diz Galeno. (1.) A primeira purgar, & o corpo de humores com remedios, que tambem a madre. A ꭍegunda extinguir a dor,que naõ chamaꭍꭍem mais humores para a parte. A terceira defecar as humidades, & confortar a madre, para que nem creaꭍꭍenem recebeꭍꭍe mais fluxos. Para preparar o humor, depois de algunas ꭍangrias, ordenei os ꭍeguintes xaropes. de folhas de artemija, matricaria, erva cidreira, betonica, avenca, & pimpinella, de cada erva deꭍtas hua maõ cheya, cozaꭍe tudo em panela de barro com tres quartilhos de agua da fonte até ficar em dous, & coandoꭍe, ajuntem a quatro onças deꭍte cozimento huma onça de oximel ꭍimplez; & depois que tomou ꭍes xaropes deꭍtes em dias ꭍucceꭍꭍivos, lhe receitei a purga ꭍeguinte.

Tomem do ꭍobredito cozimento ꭍeis onças, infundaõꭍe nelle dous eꭍcropulos de raiz de norca, & machucada, dous eꭍcropulos de agarico, huma oitava de folhas de fene de Lapata, & coandoꭍe eꭍta infuꭍaõ., mandei deꭍatar nella meya de diafenicaõ, & que ꭍe bebeꭍꭍe em jejum. Grande foy a evacuacaõ, que a eꭍta purga ꭍe ꭍseguio; mas como ofluxo uterino naõ diminuiꭍꭍe couꭍa algua, appellei para o vinho emetico, tendo por certo que nenhum remedio avia de tirar o meu credito tanto a limpo como o dito vinho, pela efficacio com que os vomitorios revellem os humores para a parte, & por iꭍꭍo lhe dei quatro vezes em dias alternados duas onças delle, & obrou com tanta felicidade, que ficou quaꭍi livre da purgaçaõ; mas para me ꭍegurar, lhe fiz tomar as ꭍeguintes pilulas; quepara curar os fluxos da madre alimpandoa, & confortandoa, ꭍaõ. Tomem de opoponaco, de myrrha, de ammoniaco, & de almecega da India, de cada couꭍa deꭍtas huma oitava, de agarico trociꭍcado quatro de diagridio ꭍulphurado meya oitava, de crocus martis adꭍtringente tres oitavas,de flor de noz noꭍcada vinte grãos, de alambre preparado dous, de pedra hematites meya oitava, tudo ꭍe miꭍtura com o que for neceꭍꭍario de terenbinthina de beta, & ꭍe formem pilulas; das quaes dei cada dia hua oitava, ordenando finalemente que lhe abriꭍꭍem em ambas as pernas, para que por ellas ꭍe, & divertiꭍꭍe a materia corroꭍsiva, & mordaz, que fazia as dores, & o fluxo; & para mais lher confortar, & defecar o utero, fiz que por tempo de tres meꭍes agua ferrada com aço, na qual mandava cozer huma pinha brava machucada, & que em doze deꭍta coada deitaꭍꭍem quatro oitavas dos meus trociꭍcos, que inventei para as purgações da madre, de qualquer qualidade que fejaõ, & ꭍe acharaõ em caꭍa, porque os q hoje ꭍe vendem nas boticas com o meu nome, ꭍaõ falꭍificados, porque eu não revelei a peꭍꭍoa alguma os dezafeis ꭍegredos, de que fallo no meu Manifeꭍto,porque quero que fiquem a meus.E porque o bom regimento he a couꭍa mais principal, & eꭍꭍencial para conꭍervar a faude, & as doenças, lhe aconꭍelhei com Galeno que naõ comeꭍꭍe alimentos ꭍalgados, nem muito adubados, nem curados ao fumo, nem groꭍꭍos,ou viꭍeoꭍos, ainda que os taes mantimentos naõ façaõ logo mal, andando o tempo vem a fazer damnos; por tanto fizeꭍꭍe particular eꭍtudo de eꭍcolher alimentos de boa ꭍubꭍtancio, freꭍcos, & faceis de, & que ꭍe foꭍꭍe morar em huma quinta, ou terra de bons ares, & de nenhum modo viveꭍꭍe em caꭍas ꭍubterraneas, nem debaixo de montes, nem junto de lagoas, ou lugares alagadiços. Aconꭍelheilhe que naõ fatigaꭍꭍe o corpo com trabalho, nem o animo com iras, triꭍtezas, vigias, & cuidados, & outras paixões d’alma; nem carregaꭍꭍe a natureza com muito comer, & beber, porque qualquer couꭍa deꭍtas he capaz de fazer grandes damnos,& de diꭍꭍipar muito as forças, & he conꭍelho prudente o quanto for poꭍꭍivel, para que, ꭍe neceꭍꭍitarmos dellas, tenhamos com que poꭍꭍamos defendernos; & obꭍervando a enferma eꭍtes conꭍelhos, alcançou ꭍaude, que naõ ꭍó ꭍe tiraraõ as dores do ventre,& ꭍe eꭍgotou o fluxo uterino; masengordou, & naõ depois diꭍꭍo queixa, nem enfermidade alguma.

Deꭍta Obꭍervaçaõ aprendaõ os donetes a naõ dizerem mal dos Medicos, nem deꭍprezar os ꭍeus, porque alguma vez ꭍe vem obrigados a irem buꭍcar a vida às maõs daquelles meꭍmos, de quem eꭍcandaloꭍas queixas, & a quem deraõ a morte na honra, & na fama, ꭍem remorderlhes a & ficaõ muito ꭍoꭍꭍegados, cuidando que como os naõ mataraõ com faca, ou eꭍpada, que nenhum mal lhes fizeraõ, mas no dia da conta o ꭍaberaõ.

OBsERVAÇAM LXIX.

De hum fluxo de sangue pela via ouvina procedido de de hum excesso, que certo homem fez com huma mulher dama, por cuja causa se prosteràraõ as forças de tal modo, que chegou a syncopizar, cabir em hum suor frio: no qual perigo fui chamada, & porque conheci que o sangue por causa do muito calor, & agitação daquelle estavaõ adelgaçado, & as veas taõ abertas, que se esgotaria, se lhe naõ acudisse com remedio, que promptamente fixasse o orgasmo, & fervor do sangue, & engrossasse a sua delgadeza; lhe dei a beber meyo quartilho de vinagre forte, & passafastres horas, lhe fiz tomar huma oitava do meu grande segredo de estancar sangue, misturando-o com duas claras de ovos, bebendo em cima meyo quartilho de agua de tanchagem: & de improviso parou o fluxo de sangue, & se fixou o arrebatado movimento que fazia, & escapou da morte.

O Mesmo prestimo, que a pedra de cevar tem para os navegantes, tem a Anatomia, & a Chymica para os que sucaõ o grande mar da Medicina: & assim como os que fazem viagem sem carta de marear, caminhaõ errados, porque naõ vem os perigos, para fugir delles: da mesma forte os que exercitaõ a Medicina sem conhecimento da Anatomia, & da Chymica, se precitaõ em mil perigos, porque ignoraõ muitas cousas, que estavaão obrigados a saber, para bem curar.

Que Medico ouve no mundo, que antes da Anatomia soubesse da circulaçaõ do sangue? Que Medico antes da Chymica soube como o messmo sangue se condensa, & se dissoslve? & que delle condensado, & incrassado se segue naõ se circular, & da falta da circulaçaõ se sesguem as apolexias mortaes? E pelo contrario do sangue dissolvido, & muito arrarado por

Observações Medicas Doutrinaes.

por causa de alguma qualidade occulta, ou por algua fadiga, & trabalho demasiado se seguem os fluxos de sangue incomssiveis? Tudo isto se ignorava antiguamente.

3. Porèm depois que Chymica, & Anatomia derão luz às escuras trevas da Medicina antiga, logo tivemos noticia que o sangue, ou por ardor da febre, ou por qualidade occulta ou por grande trabalho, naõ só se faz mais liquido, & arrarado, mas se circula com mais arrebatado movimento. Tambem soubemos, depois que nos amanheceo o sol da Chymica, que o sanfue se fixa, & suspende da sua circulaçaõ continua por copia de humor azedo, que dentro do corpo se creou, ou exteriormente se bebeo. Isto supposto, entremos na nossa Observaçaõ.

4. Certo homem indigno deste nome, porque só o de bruto lhe competia, & lhe era mais proprio, mas por modestia o naõ quero nomear; amava a huma mulher dama com taõ excessivo, & desordenado affecto, diado na idade de mancebo, & na valentia das forças, pertendeo apagar o ardente Mongibelo, em que se abrazavaõ aquelles dous Vesuvios da luxuria, & para conseguir taõ barbaro intento soltou as redeas aos torpes atos da lascivia de tal sorte, que cahio em hu copiosissimo fluuxo de sangue pela via da ourina, de que se seguio hum suor srio, & hum syncope taõ grande, que ficou sem falla, & quasi morto, como tem succedido a muitos, estando no mesino acto perdèraõ de repente a vida; neste miseravel estado me chamàraõ, para ver se averia algum remedio, com que aquelle moribundo pudesse escapar da morte temporal, & eterna: & conhecendo eu que pela demasiada agitaçaõ do corpo, & excandescencia dos espiritos, que ouve naquelle torpe ato, se adelgaçou o sangue, & se circulou com taõ apressado movimento, que naõ pode conterse dentro dos carceres, & prosoens das veas, & que por essa causa rompèra naquelle mortal fluxo, me lembrou que nenhum remedio era taõ efficaz para fixar, suspender, & ligar promptissimamente o sangue, como

Observaçaõ LXIX.

como o vinagre forte bebido em quantidade de seis onças: ou o meu segredo de estancar sangue, dado em quantidade de hua oitava, misturado com duas claras de ovos, & meyo quartilho de agua de tanchagem: & valendome primeiro do vinagre, por estar mais à maõ, lhe fiz beber as ditas seis onças, & de improviso sarou o fluxo, como se fosse obra de milagre.

5. nem se póde duvidar que assfim o vinagre forte, como também os espiritos de Vitriolo, o oleo de de enxofre, o çumo de limaõ, & todas as cousas azedas (tomadas em grande quantidade) fizem, & coalhem o sangue, & lhe retardem o seu necessario movimento, & circulaçaõ; porque àlem de que o dizem todos os Authores, o mostra tambem um sucesso, que aconteceo em casa do Conde de Castelho Melhor, aonde hum seu criado comeo huma duzia de limões azedos feitos em cellada, & pela muita quantidade do azedo se fixou, & coalhou o sangue de tal modo, que naõ pode circurse, & como lhe faltou a circulação, lhe deo logo huma apoplexia taõ forte, que o matou no mesmo dia.

6. Desta Observaçaõ conheceraõ os Medicos modernos, que a mayor parte das dores, que os doentes gráo de azedume, ou junto em mayor quantidade na mesma parte, em que esta a dor; porque (como já dissemos) tendo todo o azedo cirtude de coalhar, & engrossar o sangue, consecutivamente o incapacita para que secircule, & ventile, & tanto que lhe falta a ventilaçaõ, & circulaçaõ, logo apodrece, & apodrecendo se faz acre, odioso à natureza, & causa dores.

7. Naõ faça duvida a alguem o dizer eu que as dores procedem do acido; porque cada dia estamos vendo dores de pleuriz, de gotta, de colica, de estomago, de dentes, & de conjunçaõ mensal, que zombaõ dos mayores remedios da Arte, & só com os absorbentes, & muito melhor tudo com as minhas pilulas antifebriles se tirão totalmente, ou se moderaõ muito.

Mm Def-

Observações Medicas Doutrinaes.

8. Destas experiencias novas se deixa ver, & conhecer claramente como os Medicos da tempera velha naõ alcaçáraõ estas delicadezas, nem lhes veyo ao penfamento que as dores procediaõ do acido errante, & exaltado a mayor azedume.

9. Pela Chymica conhecèraõ os Medicos modernos a verdadeira razão porque o aço aproveita muito para a melancolia hypocondriaca, para os azedumes do estomago, & para promover o sangue mesal: porque como o aço seja maravilhoso absorvente, & antacido, naõ só he capaz de tirar as dores procedidas do acido, que costuma reynar nos hyponcondriacos; mas he milagroso para promover os menstruos incrassados, & reprezados pelo mesmo acido: & eis-aqui como muitas cousas, que antigamente estavaõ occultas, se fizeraõ manifestas depois da Anatomia, & da Chymica.

10. Advirto que o se vinagre forte naõ bastar para suspender o fluxo de sangue, que sahe pela via da ourina, que em tal caso recorraõ confiadamente para os meus trociscos de estancar sangue, dando uma oitava delles feitos em pò misturado com huma onça de xarope de rosas secas, bebendolhe em cima meyo quartilho de agua de tanchagem batida com duas claras de ovo; & repetindo este remedio tres, ou quatro dias pela manhãa em jejum, & à noite antes de cear, observaraõ huma melhoria taõ estupenda, que parecerá milagrosa, como parece a do presente caso.

11. As pessoas curiosas, ou as que tiverem algum fluxo de sangue de qualquer parte que seja, podem ver os innumeraveis fluxos que curei com o meu segredo de estancar sangue em muitas pessoas, cujos nomes, ruas, & officios nomeei para confirmação da minha verdade, & credito do remedio; tudo se achará na Polyanthea da segunda impressaõ no trat. 3. cap. 4. desde a folha 853. até fol. 856. lá se achará tambem o modo com que se applica, & quantidade em que se dá o tal remedio.

OBsERVAÇAM LXX.

De humas bostellas, & comichões de todo o corpo taõ, & rebeldes, que alguns Medicos se persuadiraõ que eraõ gallicas; outras entendéraõ que eraõ; & depois de gastados tres annos na applicaçaõ de vários remedios sem alivio, se appellou para o uso de banhos de agua de poço do Borratem, & de dous remedios se conseguio a saude desejada.

Muitas vezes nos vem às mão doentes perseguidos de comichões, bostelas, & coceiras taõ rebeldes, & desobedientes aos remedios da Arte, que nos persuadimos que procedem de, ou que saõ leprosas: comtudo ainda que muitas vezes possa ser esta a causa, naõ he sempre taõ, que outras vezes naõ possa ter a cula a excessiva quentura do figado, ou a muita velhice, & idade, que gerando humores acres, & falinos, saõ da tal doença, sem que ella concorraõ a qualidade gallica, nem a ele phantiaca. Em desta verdade podia referir muitos exemplos, sómente os dous seguintes.

Pedro de Castilho, Fidalgo bem conhecido nesta Corte, & Manoel de Costa, Juiz do Terreiro, padeceraõ alguns annos tantas comichões, bostelas, & asperezas da pelle, que muitos Medicos entenderaõ que eraõ leprosos, & outros se persuadiraõ que gallicados; comtudo ainda que qualquer destas possa ser causa de importunas, & terribeis comichões, naõ he isso taõ certo, nem taõ infallivel, que algumas vezes naõ tenha toda a culpa o calor do figado, ou muita velhice; porque, acres, & corrosivos, que exasperem, & a superficie do corpo, & façaõ taes, & asperezas na pelle que se equivoquem com a lepra. Varios foraõ os Medicos, que se chamàraõ curar a estes doentes; applicàrõlhes sangrias,, ptisanas, caldos de avea, agua de olhos de silva destillados por alambique de vidro; deraõlhes a beber, largos tempos, agua cozida com brassica; deraõlhes leite de burra; applicàraõlhes banhos detina, & das Alcaçarias, & finalmente que tivessem bom regimento, como pedra de todas as curas: & capacissimos para curar as sobreditas comichões, & bostelas, nenhum fizeraõ. Vendo os Medicos taõ malogradas as suas diligencias, desconfiàraõ de poder curallos, & para novos juizes, ou Medicos mais que naõ terem conseguido a saude, que poucos, q se ouveraõ tomado cem banhos, & dias de leite, teriaõ certamente conseguido o seu intento; mas porque o tempo era já frio, & para os taes remedios, fossem passando com bom regimento até que chegasse a Primavera, & chegada ella, tornàraõ a ser sangrados, purgados, & metidos em banho, & no uso dos soris, de que largo tempo, porque tinhaõ posta sua esperança na muita continuaçaõ dos taes remedios; mas nem por isso as comichões diminuiraõ cousa alguma da sua crueldade. Nesta afflicção, & mayor desconfiança da vida me chamàrão, & depois de me darem conta de tudo o que se tinha feito, me pareceo mandallo tres vezes na vea salvatella da maõ direita, tambem deitar tres vezes sanguisugas em dias alternados, & nos dias, que naõ tomavão as taes sanguisugas, lhes dava hum quartilho de soro de leite de burra simplez, dandolhes cada seis dias hum feito com duas oitavas de folhas de sene, huma oitava de epitome, & tres onças de xarope magistral de çumos. Grande esperança tive que com as repetidas, & continuados soros, já simplices, já purgativos, se vencesse a enfermidade; porque naõ ha palavras, que bastem para louvar a virtude, & que as sanguisugas, & os soros tem para &, achaques cutaneos, com tanto que se muitas vezes, & em grande quantidade; porèm a rebeldia do mal zombou de quanto se tinha feito: em lance taõ apertado me occorrèrão tres remedios, ou tres ancoras, em q só se podião confiar as pobres náos da vida daquelles homens, que fluctuavaõ em tam grande tormenta. Foi o primeiro remedio fazerlhes tomar noventa banhos de agua do poço do Borratem, em que mandei soltar todos os dias hum paõ de massa crua; porque naõ he dizivel a grande frescura, que a massa crua acrescenta aos banhos. Foy o segundo beber por seis meses a agua do mesmo poço, ajuntando a cada quartilho da dita agua, meya oitava das minhas pulilas absorbentes; porque como as comichões, & bostelas procedem de soros acidos-salinos, & as minhas pilula sejaõ o melhor & dulcificantes, que inventou o engenho dos homens, tive por sem duvida que avião de muito, não só por temperarem o figado, como por adoçarem os soros acidos-salinos. Foy o ultimo fazerlhes tomar cada dia jejum tres onças de xarope de folhas de espinheiro alvar, cuja virtude he maravilhosa para curar todas as comichões, & bostellas procedidas do figado, & se prepara do seguinte. Tomem tres onças de folhas do dito, ponhaõse a cozer em panela de barro com huma canada de agua da fonte, até ficarem tres, & entaõ se coe esta agua com fortissima & com o assucar que for necessario se faça, & depois que estiver frio, se meta em huma de vidro, & se ponha tres noites ao sereno, a dita garrafa antes de nascer o sol, & depois de tres noites de sereno, daráõ aos doentes cada tres onças deste lambedor, bebendolhe em cima huma chicara de agua do poço do Borratem. os doentes e estes meus conselhos, & comm promptidão, & fortuna, que ficàraõ perfeitamente sãos, & livres de huma enfermidade taõ abominavel.

Duas consas advirto aos Medicos modernos. A primeira, que os banhos para os que tem comichões, & coçeira tam rebeldes, que parecem leprosas, sejaõ de agua do poço do Borratem, porque esta refresca tanto o figado, que ella só bastou muitas vezes para curar doenças, que outros remedios não puderaõ Nesta Cidade o tem assim experimentado muitas pessoas, que tendo o corpo cheyo de chagas, & do figado, se desquitàraõ de todas suas molestias só com beber da dita agua; em credito da qual o seguinte caso, que naõ será desagravel aos o sabello.

Certos casados de muitos annos não tinhaõ, & supposto que a esterilidade tem muitas causas, huma dellas he casar a molher de idade taõ nova, que lhe não baixa o sangue mensal, o que he grande erro, porque delle se segue, ou não terem filhos, ou tellos muito tarde, como pudera mostrar mil exemplos.

Outra causa da esterilidade he a grande de algum dos consortes, porque só temperandose esta, se faz o thalamo secundo, como se deixa ver seguinte successo succedido acaso. A certo homem esquentadissimo do figado sobrevieraõ humas, & bostelas por todo o corpo, que zombarão de mil remedios que se lhes applicàraõ, appllouse para o uso da agua do poço do Barratem, pela experiencia que ha nevta Cidade, de que tempera as queixas que procedem de quentura do figado, & succedeo que sendo o Vobredito homem infecundo dezaleis annos, teve filhos depois que bebeo da dita agua, & das impingens, & bostelas; donde se deixa a virtude da dita agua, & que da demansiada procedia a esterilidade.

Os que desprezarem a Arte Chymica, & as indagações dos segredos naturaes, não só as virtudes alcalinas, & occultas, que se em muitas cousas utilissimas à saude; mas se privaõ de saber mil segredos admiraveis, com que os doentes melhor se curassem, & os Medicos tivessem melhor fama. Eu entendo que se o tempo, que alguns gastaõ em especular questões infrutuosas, o applicassem ao estudo da Chymica, da Anatomia, & da botanica, a Medicina fertilissima de remedios mais pela preparação, & mais suaves pela pouca, escusando nos doentes os enjoos dos almudes & canada de bebidas que lhes damos. Perguntara eu aos que aborrecem a Chymica, de que serve aos, & aos Medicos, o saber se os peixes respirão, ou não respirão debaixo da agua? De que serve aos, ou aos doentes o saber se a balea he rey dos escamigeros: se o sol he pedra, ou carroça de: se a Lua te rosto: sse o Elefante anda dez annos nas entranhas de sua mãy? Destas questões, ou se não tira proveito; mas só trabalho do, afflicção do animo, & perdição do; porèm ha homens, que gostão mais de quebradeiros de cabeça, que de inquirir a verdade por fogo, por agua, por disvesos, & por mil outras canceiras de mais credito, & proveito.

A segunda cousa que advirto he, que se algum dia succeder que a comichão, bostelas, ou aspereza da pelle não poço obedeção do Borratem, nem aos muitos soros, ou compostos, nem ao leite de burra, nem aos xaropes das folhas do espinheiro alvar, appellem a tintura do antimonio, que se for feita com, & dada muitos meses em agua cozida com flor de buxo, ou com raizes de brassica marina, se curaráõ as comichões pela admiravel que ambos estes remedios tem, de o sangue: & no caso que em Portugal não aja quem saiba fazer a verdadeira tintura do antimonio, podem usar confiadissimamente do sulphur auratum do, dando doze grãos delle cada dia, misturados em duas onças de agua de cardo santo, ou papoulas, porque purifica o sangue melhor que outro algum.

Ultimamente quando isto não baste, podem para untar o corpo, cinco, ou seis noites, com mera porque me consta que padecendo algũs doentes comichões tão tenazes, que resistirão a todos os remedios da Arte, se rendèrão à prodigiosa da sobredita mera. Tambem me consta que Luis Vieyra da silva algũs annos comichões, para cujo remedio consultou os melhores Medicos da Corte, executando à risca tudo quanto lhe aconselháraõ, naõ pode verse livre da sobrefita, senão com se purgar nove vezes no discurso de vinte dias, tomando depois disso, tres meses, leite de burras, em que quantidade de meya canada cada cia; esta cura lhe fez o Doutor Francisco da Fonseca, a quem depois de Deos confessa o sobredito dever a saude, & o gosto com que vive.

OBsERVAÇAM LXXI.

De hum fluxo de sangue dos narizesestaõ desenfreado, que naõ obedeceo aos remedios mais efficazes da Arte; & sendo eu chamado, lhe dei o meu grande segredo de estancar sangue, fazendolhe tambem meter as partes pudendas em agua frigidissima de cisterna, & taõ efficazmente se rebateo, & fixou o excessivo fervor, que com sós estes dous remedios escapou da morte aquelle homem, que estava agonizando, & sem esperança de vida.

1. HUm homem mancebo, que tinha por officio ser toureiro de capinha, em huma ma tarde mui calmosa de Agosto fez tantas, & taõ repetidas sortes aos touros, com tanta violencia, & fervor que se lhe esquentou, & adelgaçou o sangue de maneira, que começou a deitallo pelas ventas do nariz em tanta quantidade, que parecia hum chuveiro ro; & como o sangue (1.) na opiniaõ dos Medicos seja ja o filho mais amado da natureza, porque sem elle se naõ póde conservar a vida, causou grande temor ao sobredito toureiro a grande quantidade que incessantemente temente deitava delle, & ancioso com este medo fez chamar, para que lhe acudisse, a hum bom Medico, o qual à imitação do grande Doutor Mercado o mandou dou logo sangrar nas veas salvatellas de ambas as mãos, encomendando ao barbeiro que fizesse as sangrias grias por pausas, & com grandes intervallos, para que o sangue corresse alternadamente hora por huma, hora ra por outra cisura, esperando justamente que com estes tes movimentos contrarios, & revulsivos, se divertisse a natureza, & deixasse de mandar o sangue para o nariz riz, & conseguintemente parasse o fluxo, que por ser já excessivo, era capaz de extinguir os espiritos vitaes, & resfriar o cerebro de maneira, que passasse da hemorrhagia rhagia a huma apoplexia mortal, como (em termos identicos) succedeo ao Desembargador Heytor de Brito Pereyra, de quem fallo na minha Polyanthea nova trat. 2. cap. 21. fol. 170. num. 31.

2. Porèm como as sangrias se fizessem em ambas as mãos com as condições já referidas, & nem por isso so diminuisse o fluxo cousa alguma, antes corresse o sangue com mais furioso, & arrebatado impeto, lhe foraõ começando a dar alguns desmayos, & suores frios; applicou então o Medico a seguinte bebida; mandou bater duas claras de ovos frescos com seis onças ças de agua de tanchagem, & hum escropulo de pedra dra hmatitis, & que bebesse este remedio repetindolho lho de tres em tres horas, applicandolhe juntamente sobre a testa, & fontes os pós de gesso misturados com igual quantidade de ortigas bravas bem pizadas; & sendo estes dous remedios mui celebrados, & efficazes zes, nada aproveitàrão.

3. Appellou o Medico para as pedras de estancar penduradas ao pescoço; valeose de ligaduras fortissimas mas nas pernas; deulhe a beber o çumo das uvas de caõ, chamadas vulgarmente arroz dos telhados; usou de mechas dos poedoiros da tinta, que pelas agalhas, caparrosa, & goma Arabia de que ella se faz, podião surtir maravilhoso effeito; fezlhe tomar tres vezes no dia o pò de quatro pernas vermelhas das perdizes, misturados turados com huma onça de xarope de çumo de ortigas gas; nada porèm foy bastante, para que o sangue parasse.

4. Neste aperto estando jà o doente frio ungido, & disposto para morrer, lhe disseraõ que eu tinha o mais efficaz remedio que avia, para suspender os fluxos xos de sangue, por mais arrebatados, & teimosos que fossem,viessem donde viessem. Com esta boa nova se animou o doente muito, & me fez chamar, entendendo do que eu lhe podia valer em taõ grande perigo: & naõ se enganou; porque com o favor de Deos o livrei da morte com os dous remedios seguintes.

5. O primeiro se faz deste modo. A huma onça de xarope de mortinhos, mandei ajuntar hũa oitava dos meus castellinhos de estancar sangue feitos em pò, & que de tres em tres horas repetisse outra tanta quantidade dade, bebendolhe em cima seis onças de agua de tanchagem chagem batida com huma clara de ovo fresco.

6. O segundo remedio foy mandarlhe meter os testiculos, & o membro viril em hum alguidar de agua de cisterna frigidissima; & foy tal a efficacia dos castellinhos linhos, que logo com os primeiros pòs se supprimio o sangue de tal modo, que era escusado o banho da agua de cisterna; mas sem embargo disso, quiz que o tomasse masse, porque me naõ contentei só com fixar, & ligar a ferocidade do humor com a efficacia dos pòs; mas quiz resfriar o orgasmo, & fervor do sangue mediante te a grande frialdade da agua.

7. Desta Observação ficaraõ os Medicos novatos conhecendo duas cousas muito proveitosas. A primeira ra, a grande virtude que tem os meus castellinhos de estancar sangue, pois só elles fizeraõ o que nenhum remedio pode fazer, assim neste doente, como em outros tros muitos, que deitando sangue por differentes partes tes do corpo, sem que remedio algum lho estancasse, só com o meu segredo se suspendeo, como os curiosos poderáõ ver na minha Polyanthea nova trat. 3. cap. 4. da folha 853. até 856. aonde acharaõ nomeadas as pessoas soas, que livrei da morte com o tal remedio.

8. A segunda, o grande parentesco, & communicaçaõ caçaõ que as partes pudendas tem com a cabeça, peito to, & mais partes do corpo, & deste conhecimento procede; que os Medicos mais doutos, & os que seguem guem os seus dictames, nas febres malignas, & doenças ças venenosas, mandaõ applicar o oleo de Mathiolo, as triagas, & outros contravenenos sobre os testiculos, porque sabem muito bem, que por nenhum outro caminho minho se podem communicar melhor, nem mais brevemente vemente as virtudes bezoarticas, & cardiacas ao coraçaõ çaõ, & a todo o corpo, como pelos testiculos, prova seja ja desta verdade o que vemos cada dia, que os musicos perdem a gala, & metal da voz, portanto que usaõ de mulher lher, ou saõ quebrados, ou padecem algum achaque nos testiculos, ou no escroto.

Finalmente ordenei que o doente naõ tivesse na cama cobertor vermelho; porque a cor vermelha pela signatura, & semelhança que tem com o sangue, o move, & o faz sahir para fóra; mas que só olhasse, & tivesse à vista cobertor azul, negro, ou pardo.

OBsERVAÇAM LXXII.

De humas dores de gotta, que por tempo de tres anos padeceo certo homem, & naõ lhe aproveitando remedios algũs, sarou com se purgar (cada tres meses) com hum electuario, que lhe ensinei, & com lavar todos os dias os pès com ourina fervida com humas folhas de engos, & artemija, & beber seis meses leite de burra, naõ conhecendo mulher, nem bebendo vinho.

1. HE a gotta huma enfermidade taõ fácil de conhecer, como impossivel de curar: com com ella esgotaõ os Medicos o que sabem, mas sem proveito, & os enfermos perdem a paciencia, & o merecimento: he doença, que anda mui annexa aos homens ricos, de vida regalona, faltos de exercicio, comilões, vinhosos, & muito sensuaes: assim o mostrão as experiencias, & eu o tenho observado também assim, como pudera mostrar por mil exemplos; baste por todos o seguinte.

2. Nesta Cidade conheci a hum homem, o qual em quanto foy rico, & teve abundancia de bens temporaes, padeceo acerrimas dores de gotta; mas depois que por varios infortunios dos tempos cahio em pobreza, & lhe faltassem naõ só os regalos mas tambem o sustento ordinario, naõ teve mais dores.

3. Deste exemplo, & de outros muitos que deixo de referir por naõ enfadar, fiquei conhecendo que da fartura, do vinho, da luxuria, do descanso, & falta de exercicio procede quasi sempre a sobredita enfermidade. E a razaõ he: porque os ricos nem trabalhaõ, nem fazem exercicio, comem muito, & alguns naõ bebem pouco, & quasi todos se deixaõ prender dos laços de Venus: & todas estas cousas, ou algũas só dellas saõ mui capazes para causarem gottas, parlesias, apoplexias, asthmas, tuberculos, & outras pessimas doenças. Pelo cõtrario os pobres fazem exercicio, trabalhaõ, muito comem pouco, naõ bebem vinho, & naõ se deixaõ aprisionar com os grilhões da concupiscencia; & por esta razaõ naõ devemos admirarnos de que estes naõ padeçaõ taes dores, ou muito raras vezes; & supposto que naõ seja facil de averiguar a qual das muitas causas da gotta se deva attribuir mais a geraçaõ della; eu me perssuado que ao uso de Venus, porquesendo muito, ou usado logo depois de comer, naõ só se enfraquece todo o corpo, mas se esgotaõ os espiritos vitaes, & o sangue mais puro, & se resfria o calor natural de maneira, que se fazem máos cozimentos, se amontoaõ muitas cruezas, se amolecem, & relaxao os nervos de tal sorte, que ficaõ capazes para receber os humores acido-salinos, que sao os que fazem zem as sobreditas dores; & isto se confirma com as experiencias de graves Authores, (I.) os quaes affirmaõ que conhecèraõ algũs homens gottosos, que em quanto foraõ casados, padecèraõ insoportaveis dores de gotta, mas que viuvando, ou estando em alguma prisaõ em que naõ usaraõ de mulher, ficàraõ livres della. Tambem se tem observado que muitos homens, que eraõ muito sogeitos a gotta, quando eraõ ricos, caindo em pobreza, ou em alguma prisaõ aonde passaraõ muitas fomes, naõ tiveraõ mais gotta.

4. Tambem o uso do vinho (principalmente bebido em jejum) he huma das principaes causas da gotta, assim porque he mais abundante de tartaro que outros alimentos, como tambem porque se azeda mais facilmente no estomago, que qualquer outro alimento & como as cousas azedas, & tartareas sejaõ muito inimigas dos nervos, por esta razaõ ao vinho attribuem muitos Authores (2.) a gotta; ultimamente porque como o vinho he muito penetrativo, leva comsigo todas as cruezas, & saburra que acha no estomago, & dà com ellas em os nervos, & faz a gotta.

5. se fora licito descubrir os defeitos alheyos, pudera nomear aqui alguns homens, que em quanto bebèraõ muito vinho, foraõ perseguidos de acerrimas dores nas juntas; mas como o largaraõ totalmente, & comèraõ pouco, & fizeraõ exercicio, se livràraõ de taõ terribel enfermidade.

6. Destas Observações ficaràõ os Medicos modernos sabendo, que o vinho, & o uso de mulher saõ para os gottosos mais nocivos que veneno, & que por esta razaõ encomendo muito com Majero (3.) aos que desejão ter faude, & livrarse do dito mal, que fujaõ destas duas cousas; que comaõ pouco, & que fação exercicio todos os dias, mas não demasiado, que tambem he damnoso.

7. Mas se tudo isto, pontualmente observado, naõ bastar para preservar da gotta, se curará o doente (estando fóra do accidente) do modo com que curei ao sobredito homem, purgando-o tres vezes em dias alternados ternados com duas onças & meya de agua benedicta vigorada, porque nos vomitorios repetidos poem graves Authores (4.) toda a esperança da cura desta enfermidade; & descançando o doente tres dias, lhe dei quarenta soros de leite de burra, dando cada quatro dias hum purgativo, em que deitava de infusaõ seis onças de assucar rosado de Alexandria, meyo escropulo de erva doce machucada, & coandose o tal soro com forte expressaõ, lhe ajuntava quatro escropulos dos meus trociscos solutivos, chamados de Fioravãto, subtilissimamente polvorizados, & purgava com os ditos soros oito, ou nove cursos.

8. Acabados de tomar os soros singelos, & purgativos, ordenei que de tres em tres dias tomasse hũa oitava das seguintes pilulas. Tomem de azevre fuccotrino meya onça, de pó de rosas encarnadas dous escropulos, de hermodactilos (tirada a casca exterior) quatro escropulos & meyo, de elleboro negro preparado quatro escropulos, tudo polvorizado se misture com o que for necessario de xarope de iva artetica, & se formem.

9. Depois do doente bem purgado com os sobreditos remedios, lhe fiz tomar de cinco em cinco dias huma pilula de seis grãos dos pós Antipodagricos, que saõ feitos de ouro, & azougue, & com elles naõ só foy evacuando com brandura alguns humores mais centraes, & viscosos, mas se confortáraõ muito os nervos; & para que ficasse mais seguro, ordenei que tomasse hum quartilho de leite de burra em jejum, por tempo de seis meses, & que todas as noites (antes de cear) banhasse os pés com ourina que primeiro fosse cozida com pedra hume crua, cascas de romãa, engos, artemija; & forão estes remedios tam bem succedidos, que sarou, & naõ tornou a padecer taes dores; mas observou o regimento pontualissimamente.

10. Huma duvida muito forçosa, me poráõ neste lugar os Medicos modernos, & he, que como podem ser bons os pòs Antipodagricos para a gotta, se elles pelo azougue de que saõ preparados, podem levar para ra a garganta os humores da gotto, a qual transpiraçaõ he tão damnosa, que se alguma vez vemos, que a gotta sobe dos pès para a garganta, ou para o peito, desconfiamos da vida do doente. Respondo que he verdade, que o subir o humor da gotta para a garganta, ou peito, sempre se tem por pessimo final, & por consequencia naõ será acertado dar remedio de azougue que faz esse efeito, se o doente estiver pouco purgado, ou com grande carga de humores; mas quem der os taes pós estando o corpo purgado dez, ou doze vezes, como eu os dei, nenhum risco tem, porque já entaõ naõ ha tanto humor superfluo, que venha à garganta, & suffoque ao doente.

11. Visto que nesta Observaçaõ digo, que a gotta se naõ há de curar em quanto as dores durarem, me perguntaraõ os Medicos modernos: pois que havemos de fazer se nos chamarem no actual aperto das dores? A taõ justificada pergunta naõ posso deixar de responder, apontando alguns remedios, de que tenho melhor conceito, & visto algum proveito.

12. O primeiro he, mexer ao ar do lume os miolos de hum porco com duas colheres de oleo rosado, & duas colheres de farinha de goma de trigo, com este remedio, sentia Gomes Freyre de Andrade (que foy o prototypo dos gottosos) mais alivio que com outro algum. O segundo he, chapejar a parte dolorosa com agua de senrada, em que se serve hum molho de artemija; com este sarou radicalmente hum neto do Torrão, sendo gottoso por herança de pay, & avó. O terceiro he, fomentar a parte enferma com oleo sem sal, em que mando frigir tres arrans vivas de ribeira corrente, ajuntando a oito onças deste oleo, depois de coado, & estando já fóra do lume, duas onças de tutanos de vacca, & huma onça pò subtilissimo do osso de defunto; com este remedio aliviava muito o Capitaõ Maximo de Arruda. O quarto he, fomentar a parte dolorosa com agua destillada de flor de barbasco; em que tenha estado de infusaõ por tempo de meya hora sobre cinzas quentes, huma maõ chea de flor de verbasco, com meya oitava de pò de incenso macho. O quinto he, fazer huma massa de bosta de boy fresca, com agua cozida com engos, & artemija, a qual massa mando ajuntar hum vintem de açafraõ feito em pò, & duas gemas de ovos cruas. O sexto, saõ as ortigas bravas cozidas em vinho, & pizadas, postas sobre a dor. O setimo, saõ as folhas de couve cozidas, pizadas, & misturadas com a terça parte de borras de vinagre, & duas gemas de ovos cruas, & o que bastar de oleo rosado. Fomentar vinte dias a gotta com ourina de meninos, em que tenhaõ cozido hũa maõ chea de artemija, & outra de engos, he remedio mui celebrado; nem tem menos virtude a fomentaçaõ, que se faz com a agua que destillaõ de si as raizes das nogueiras fendidas em Fevereiro, ou Março. Os gottosos, que depois de bem purgados, tomarem, trinta dias continuos em jejum, hũa oitava dos seguintes, pòs conheceraõ grandissimo alivio. Tomem de iva artetica, de genciana, artemija, centaurea menor, arristoloquia redonda, & de casco de caveira de homem, que naõ morresse de doença, nem fosse enterrado, mas fosse morto na guerra ou enforcado; porque o casco do enterrados, ou mortos de doença, tem perdido todo a virtude volatil; de cada cousa destas meya onça, tudo se faça em pilulas, ou se de em pò misturado em caldo. Os que beberem por tempo de hum anno agua cozida em panela de barro, com duas oitavas de lasquinhas miudas de páo de aroeira colhida em setembro, dandolhe huma boa fervura, com tres canadas de agua experimentaràõ grande alivio, como eu experimentei em mim, que sendo de idade de vinte & dous annos, fui assaltado com dores de gotta taõ acerrimas, que naõ sossegava de dia, nem de noite, & cheyo de tristeza, por ver que em idade tam nova padecia taõ terrível doença, consultei ao insigne Medico Francisco Rodriguez Cassaõ, chamando por alcunha o s. Fins, & depois de me consolr muito, me disse, que usasse da dita agua, & foy o efeito dela taõ feliz, que daquelle dia por diante até hoje, que tenho setenta & dous annos nos, não tive mas gotta, graças sejaõ dadas a Deos. Crataõ louva muito para preservar da gotta, & da pedra, tomar cada quinze dias onça & meya do xarope de espina servina em soro de leite, ou caldo de frangão.

13. Dous remedios muito louvados acho nos Authores; a hum chamão Amuleto, que saõ os pès, & as mãos de hum cágado cortadas no minguante da Lua, estando o cágado vivo, & atadas a maõ direita do cágado à maõ direita do gottoso, & a maõ esquerda do cágado à maõ esquerda do gottoso, fazendo o mesmo aos pès, como ensina Esquenquio. (5.) 14. O outro remedio dizem Crataõ, & Majero (6.) obra por transplantação, pondo sobre a dor da gotta hum caõ vivo, deixando-o estar algũas horas, porque com o calor daquelle animal, naõ só se transplanta o humor que faz a gotta, mas se transplanta a doença no cão, de forte que o mata, ou o entorpece.

15. Infinitos saõ os remedios, que os Authores ensinaõ para a gotta, mas atè este dia naõ se achou algum, que infalivelmente a cure; comtudo se alguma cousa he capaz de curalla, he naõ beber vinho, naõ usar de mulher, comer pouco, & beber mastigado, fazer todos os dias bastante exercicio em jejum, ou seis horas depois de ter comido, purgar duas vezes cada anno com hum quartilho de soro de leite bem purificado, em que deitem de infusaõ cinco onças de assucar rosado de Alexandria, duas oitavas de folhas de fene, & dous escropulos de cremores de tartaro; ou com duas oitavas dos meus trociscos purgativos desatados em hum quartilho de soro de leyte.

16. Tambem aproveita muito para curar, & evitar a gotta, fugir de comer carne daquelles animaes que saõ sojeitos a gotta, como he gallinha, frangaõ; fugir de alimentos que criaõ humores mui delgados, como saõ cabra, ovelha; antes usem de carne de vacca fresca, & de mãos de carneiro; os que observarem estes conselhos pontualmente; naõ duvido que possaõ livrarse da gotta, porque Hippocrates (7.) falando dos gottosos, diz as seguintes palavras; Todos os que saõ velhos, ou tem nas juntas callos endurecidos, ou saõ naturalmente doentios, & saõ dureiros, & difficultosos em cursar, todos estes, ao meu entender, naõ podem sarar humanamente; comtudo se aos taes sobrevierem cantar as copiosas, ou outras quaesquer descargas inferiores, lhe aproveitaõ muito: pelo contario, aquelle gottoso que he moço, & naõ tem callos endurecidos nas juntas, & vive com boa regra, & se exercita, & trabalha, & he facil de ventre, este tal gottoso póde sarar, com tanto que dè nas mãos de hum bom Medico.

17. sendo as dores da gotta hum symptoma, que por sua crueldade pede muitas vezes, que lhe acudaõ primeiro do que à causa donde as taes dores procedem, me perguntaraõ os Medicos modernos, que razaõ tive para não aconselhar neste lugar algum remedio opiado, ou narcotico para tirar as taes dores, pois só elles certamente as tiraõ. Respondo que em nenhũa forte de dores he seguro o uso dos narcoticos, porque ainda que por entaõ tiraõ a dor, deixaõ as partes taõ enfraquecidas, que não tornaõ a fazer os seus officios com a perfeiçaõ, com que os faziaõ de antes, & por esta razaõ diz Galeno (8.) que quando era chamado para curar algumas dores vehementissimas dos olhos, as curava já com banhos, já com fomentações, já com sangrias, já com purgas, & naõ com remedios opiados, que isso o faziaõ só os Medicos de duzias, porque naõ advertem que os taes remedios narcoticos, & opiados saõ a ruina, & mote deste sentido, porque logo começavaõ a ver menos, & andando o tempo lhes vinha huma catarata, ou se dilatava a pupilla, ou se sumia o olho. Ate aqui saõ palavras de Galeno.

18. Eu porèm digo que se a dor de gotta, ou outra qualquer dor chegarem a taõ desmarcada grandeza, ou excesso, que possaõ matar ou doente, que neste caso se podem aplicar sobre os lugares das dores os remedios opiados, & narcoticos; mas com tal condiçaõ, q não se deixem estar muito tempo na parte, mas só o que bastar para a dor se tirar, ou diminuir, & logo go se tire o tal narcotico, & se somente a parte com espirito de vinho, oleo de canela, de erva doce, ou de alfazema, para restaurar a força que a dita parte perdeo com a applicaçaõ do medicamente narcotico.

OBsERVAÇAM LXXIII.

De huma toꭍꭍe rina, cauꭍada de retenção das fuligens da terceiraregião, & da lympha acido-ꭍalina, deꭍtillou da cabeça ꭍobre a garganta, & peito, & depois de muitosremedios baldados, ꭍe venceo com os vomitorios de agua benetia tres vezes applicados, & com hum abꭍorvente antacido oito dias tomadoe ꭍe acabou de ꭍegurar a ꭍaude com huma fonte no braço eꭍquerdo, & outra na perna direita.

AInda que a experiencia nos tem enꭍinado muitas vezes que os homens comilões,& faltos de exercicio ꭍão muito mais ꭍujeitos a catarrhos, e eꭍtillicidios,& a doenças q os parcos,& exercitados; porque augmentandoꭍe o calor natural com o exercicio, & trabalho, coꭍtumaõ gerar menos quantidade de excrementos, ꭍuar bem, & expellir mayor porção de fuligens, como diz Hippocrates não obꭍtante porèm eꭍta verdade, eu vi a muitos homens moderados em comer, & bem exercitados em trabalhar, que pela groꭍꭍura, & consꭍtipação da pelle, ou pelos alimentos groꭍꭍos que comião, ou pelas caꭍas humidas, ou ꭍubterraneas em que moravão, padecinnão ꭍó de toꭍꭍes,& eꭍtillicidios, mas dores de cabeça, & de dentes, & outras queixas:ꭍendo pois igualmente ꭍujeitos a fluxões, & a catarrhos os regalões, & os laborioꭍos, os robuꭍtos, & os delicados, os moços, & os velhos, os parcos, & os glotões, podemos entender que eꭍtas enfermidades procedem mais dealga qualidade externa do ar ambiente com diꭍpoꭍição interior de materia, & apta porporção de orgãos, & conꭍequencia que ꭍemelhantes catarrhos, toꭍꭍes, & fluxões teimoꭍas ꭍe devem curar com mudança de ares, como principal remedio ; & com purgar os humores, & abꭍorver os ꭍoros acido-falinos, como pela ꭍeguinte Obꭍervação farei manifeꭍto.

Franciꭍco de Coimbra, morador na rua dos Gallegos, teve por tempo de quatro meꭍes huma toꭍꭍe tão exceꭍꭍiva, & forte, que não ꭍoꭍꭍegava de dia, nem de noite, nem achava lugar, em que deꭍcanꭍaꭍꭍe: para ꭍe curar de tão cruel doença chamou a algũns Medicos de boa nota; & com elles pelo uꭍo, & experiencia ꭍabem, que nem todas as toꭍꭍes procedem das meꭍmas cauꭍas, conꭍideraraõ primeiro de que cauꭍa procederia a que o ꭍobredito homem padecia; & como naõ tinha febre, & era velho, à qual idade (commo diz Mercurial) andaõ as toꭍꭍes mui annexas, porque tem o peito, & os bofes mais fracos, & as cabeças mais cheas de humidades, as quaes cahindo no peito, & e nos bronchios do bofe,nem deixaõ entrar o ar, nem ꭍahir as fuligens taõ livremente como era neceꭍꭍario, & daqui procedem as faltas da reꭍpiraçaõ, & as toꭍꭍes dos velhos & como os Medicosentendeꭍꭍem,que as viꭍcoꭍidades, & cruezas erão a cauꭍa da ꭍobredita toꭍꭍe, ordenàraõ que para cozer, & atenuar as viꭍcoꭍidades, era neceꭍꭍario beber alguns dias agua quente cozida com cabecinhas de ouregãos,alcazuz,maçans da naꭍega, & hũ pouco de açafraõ; dandolhe depois diꭍꭍo huma purga de tres onças de mannà deꭍatado em quatro onças da ꭍobredita agua; ordenandolhe finalmente que ꭍobre a taboa do peito trouxeꭍꭍe hum emplaꭍtro de couro de luva untado com refina de pinho, & polvorizado com meyo eꭍcropulo de pò de cravo da India, & hum eꭍcropulo de pò de almecega; & que na boca trouxeꭍꭍe por continuaçaõ huma pedra de goma Arabia: porèm como nenhum alivio conheceꭍꭍem com eꭍte remedio, começaraõ a ꭍuꭍpeitar que tudo procedia de humor acre, & delgado, que deꭍtillava, da cabeça, & e cahia na aꭍpera arteria, & lhe picava naõ ꭍó as ꭍuas membranas nervoꭍas, mas também as do bofe, & caufavaõ a toꭍꭍe, & para a rebater, derão ꭍeis noites ꭍucceꭍꭍivas oitava & meya de diacodio, miꭍturado com tres onças de caldo de gallinha, por ꭍer o dito diacordio remedio, a que graviꭍꭍimos Authores attribuem grandes virtudes, para domar a ferocidade das toꭍꭍes ꭍecas,& fluxões acres,& conciliar o ꭍomno, o que he muito neceꭍꭍario em ꭍemelhantes caꭍos: outras vezes uꭍaraõ de lambedor, feito de mucilagens de raiz de malvaiꭍco, aꭍꭍucar cande, & alquitira, a que ajuntaraõ aljofar preparado, pondolhe ꭍobre a commiꭍꭍura coronal (rapada à navalha) hum ꭍuꭍpenꭍorio maravilhoꭍo feito de caracois bem pizados com huma gema de ovo dura, incorporando tudo com fermento azedo, pòs de incenꭍo, almecega, alambre, & de agarico; mas tudo ꭍem proveito. Os que cuidavaõ que a toꭍꭍe procedia de lombrigas, que mordicavaõ o eꭍtomago, applicavaõ ꭍobre elle hum empaꭍtro feito de folhas de ortelãa, artemija, & loꭍna, tudo bem pizado, & miꭍturado com pò de myrrha, açafraõ, ꭍemente de Alexandria, e ꭍel de vacca repetindolhe eꭍte remedio quatro dias ꭍucceꭍꭍivos de manhãa, & de tarde; ordenando juntamente que bebeꭍꭍe oito dias agua cozida com meya onça de limaduras de oꭍꭍo de veado. & um punhado de folhas de eꭍpinheiro alvar; à qual ajuntaꭍꭍem (nas ultimas fervuras) meya oitava de ꭍemente de Alexandria; tudo porèm de balde. Os que imaginavaõ que a toꭍꭍe procedia de diꭍposição maraꭍmodica, & ꭍecura du humido radical, porque o viaõmagro, & velho, uꭍavaõ humas vezes de cados de frangãos recheados com aꭍꭍucar roꭍado, & conꭍerva de flores de borragem: outras vezes de caldos de cágados, outras de caldos de vitela, & caracois: mas como os ꭍobreditos Medicos viꭍꭍem que o enfermo não tinha alivio depois de applicados tão excellentes remedios, perdèraõ as eꭍperanças de curallo,& se deꭍpediraõ, deixando-o lutar com as ondas da morte. Neꭍte aperto me chamàraõ para que acudiꭍꭍe ao deꭍemparado enfermo;& como eu tive ꭍempre por grande crueldade deꭍemparar aos doentes, ainda que eꭍtejaõ na ultima agonia, me encarreguei da cura do tal doente; & dandome elle conta do ꭍeu mal, & dos remedios, que lhe tinhaõ feito, diꭍꭍe que àlem da toꭍꭍe, que muito o atormentava,padecia grandiꭍꭍimos amargores de boca, & exceꭍꭍivo faꭍtio. Daqui conheci que a cauꭍa da toꭍꭍe eꭍtava no eꭍtomago; porque conforme as minhas experiencias, & de alguns Authores graves, ꭍaõ mais crueis as quedelle procedem, & por eꭍta razão comecei a curallo, dandolhe tres vezes (em dias alternados) tres onças de agua benedicta bem vigorada, porque depois que ꭍou Medico, naõ tenho achado remedio taõ proveitoꭍo para as toꭍꭍes rebeldes, & antigas, ou ellas procedaõ do eꭍtomago, como muitos dizem, ou da cabeça, do que Hippocrates naõ duvida, como ꭍaõ os vomitorios, principalmente os que ꭍaõ de agua benedicta, & aꭍꭍim o moꭍtraõ os effeitos; porque melhorou muito, ainda que naõ de todo; & por eꭍta razaõ preꭍumi que os póros cutaneos, ou por cauꭍa da vida ꭍedentaria, & falta de exercicio, ou pela frialdade doar, ou por cauꭍa da velhice eꭍtavaõ tão fechados, que naõ deixavão evaporar as fuligens, do centro para a circunferenciado corpo coꭍtumaõ ꭍahir, & das ditas fuligens reprezadas, ou retrocedidas da circunferencia para o centro, ꭍe conꭍtumão ꭍeguir muitas, & mui differentes éfermidades já febres, já pleurizes, já eryꭍipelas, já ꭍangue pela boca,já abꭍceꭍꭍos, já hydropeꭍias, & mais que tudo toꭍꭍes, as quaes perꭍeveraõ, em quanto os póros eꭍtaõ fechados, & para lhos abrir, & fazer continuar a tranꭍpiração, como couꭍa tão neceꭍꭍaria, para a ꭍaude, pois por ella ꭍahe até o ciniricio, como diz santorio, mandei que ꭍeis noites ꭍucceꭍꭍivas lhe esfregaꭍꭍem todo o corpo com hum hydreleo feito de quatro onças de agua commua, em que deꭍataꭍꭍem huma oitava de ꭍalirre moido, & ꭍeis onças de oleo de amendoas amargoꭍas, & que com o dito hydreleo bem batido,& moderadamente quente o esfregaꭍꭍem todo, cobrindo-o com baꭍtante roupa, dandolhe logo a beber quatro onças de agua de papoulas miꭍturada com huonça de arrobe das bagas do ꭍabugueiro, para deꭍte modo abrir os póros, & conꭍeguir o ꭍuor, & a expulꭍaõ das fuligens, em que na minha eꭍtimaçaõ conꭍiꭍtia toda a eꭍperança na ꭍaude. Tudo ꭍe fez promptamente, mas com menos utilidade do que eu eꭍperava; neꭍta reꭍiꭍtencia da toꭍꭍe acabei de entender que ꭍemelhante rebeldia de nenhuma outra cauꭍa podia proceder, mais que da lympha acida picante, & que devia adoçalla,& retundilla com os remedios alcalicos abꭍorbentes, & para iꭍꭍo lhe receitei o ꭍeguinte remedio, de que tenho viꭍto prodigioꭍos effeitos.

Tomem de ꭍemente de dormideiras brancas levemente torradas, de aꭍꭍucar cande, de ꭍalꭍa parrilha, de goma de trigo, & de farinha de pao, de cada couꭍa deꭍtas duas onças, tudo ꭍe faça em pó de mediocre groꭍꭍura; & deꭍtes pós, ou farinha mandei dar ao doente duas colheres em jejum, & outras duas à noite, quatro horas depois de ter ceado, naõ bebendo, nem comendo couꭍa alguma em cima, & continuando com eꭍte remedio oito dias ꭍuceꭍꭍivos,& comendo pouquiꭍꭍimo teve notavel melhoria, & para que acabaꭍꭍe de conꭍeguilla, lhe aconꭍelhei trouxeꭍa ꭍempre na boca as ꭍeguintes paꭍtilhas, que para toꭍꭍes ꭍecas, rouquidões, aꭍmas, & achaques do peito ꭍaõ maravilhoꭍas. Tomai de raizes de alcaçuz duas onças, de raizes de lirio Florentino,de flores de enxofre, de flores de beijoim, & de alquitira branca,de cada couꭍa deꭍtas meya onça, tudo feito em pò ꭍutil ꭍe miꭍture com mucilagens de raizes de malvaico, & formando paꭍtilhas deꭍta maꭍꭍa ꭍe ꭍequem à ꭍombra até que ꭍe ꭍaçaõ muito duras.

Tambem lhe mandei fomentar a taboa do peito com o ꭍeguinte lenimento, por ꭍer muito eꭍpecifico em as toꭍꭍes, rouquidões, & aꭍmas. Tomai de unguento peitoral hũa onça, de meya onça, de oleo de Elefante, ou em ꭍua falta de oleo de ꭍemente de nabos tres oitavas, de pò ꭍubtiliꭍꭍimo de açafraõ meia oitava, & todas as noites ꭍe unte com eꭍte lenimento quente, cobrindo com papel mataborrão; com eꭍte remedio, & os mais que ficaõ apontados, ꭍarou de ꭍorte que pareceo obra de milagre.

Viꭍto que a falta de ꭍuor, & da tranꭍpiraçaõ, & as fuligens reprezadas foraõ a cauꭍa da ꭍobredita toꭍꭍe, &a experiencia me tem enꭍinado que as fontes fazem maravilhoꭍos proveitos nos que tem a contextura do corpo denꭍa, & em todo os achaques, que tem a ꭍua origem na terceira região, & as fontes ꭍe abrem nella, daqui vem que aproveitaõ muitos a muitos, como aproveitàraõ a eꭍte enfermo, a quem mandei abrir huma no braço eꭍquerdo, outra na perna direita, & não tornou a padecer ꭍemelhante toꭍꭍe. E que as fontes ꭍedevaõ abrir aonde eꭍtá a cauꭍa da doença, odizem graviꭍꭍimos Doutores, como curioꭍos poderaõ ver em Augenio, Claudino, & em outros muitos.

Por naõ enfadar aos Leytores, deixo de referir os innumeraveis doentes, aꭍꭍim velhos, como moços, fracos, & robuꭍtos, mulheres prenhadas, & criançade leite, a quem curei de toꭍꭍes rebeldiꭍꭍimas, & catarrhos ꭍuꭍꭍocativos com os vomitorios de agua benedicta tomados dous dias ꭍucceꭍꭍivos,& tres interpolados, com fontes, & ꭍeguindo a Poterio com lhes facilitar bem a camara, & a tranꭍpiração com remedios diaphoreticos muito continuados. Os incredulos podem examinar a minha verdade com que fallo, vendo a minha Polyanthea da ꭍegunda impreꭍꭍão fo182. n. 16. 17. 18. 19. aonde acharaõ os nomes das peꭍꭍoas, a quem livrei da morte com os ditos vomitorios.

Aquelles eꭍtillicidios, ou oꭍꭍes, que forem taõ rebeldes, que ꭍe naõ renderem ao poderoꭍo imperio dos vomitorios repetidos, nem ꭍobreditos pós abꭍorbentes, nem ao hydreleo, ou fontes, nem ao oleo de amendoasdoces tirado de freꭍco ꭍem fogo, & miꭍsturado com huma gema de ovo olle, do qual lambedor tenho grande conceito recorrão para o frenquente uꭍo das pilulas de hiera de Pachio, que ꭍe forem feitas com toda a perfeiçaõ, tiraraõ a limpo o credito do Medico. Advito Advirto aos Medicos moderno, que quandoencontrarem doenças com tão exceꭍꭍivos faꭍtios, como tinha o do preꭍente caꭍo, lhes permitiraõ que comão o que de goꭍtarem, porque de outra ꭍorte, primeiro morreraõ de fraqueza, que da enfermidade; eu naõ obrigo a alguem a que ꭍiga eꭍte conꭍelho, mas digo que por eꭍte modo livrei a muitos da garganta da morte, porque ꭍempre tive pra mim, que a demaꭍiada ꭍeveridade, & rigor com que alguns traraõ aos doentes faꭍtientos, mais argue pobreza, & falta de remedios efficazes, com que os curem, que eꭍperança de que rigor da dieta os fare:naõ he iꭍto penꭍamento ꭍó meu,já Vanelmonte dizia o meꭍmo pelas palavras ꭍeguintes: Certamente deꭍde a minha mocidade tive para mim, como em profecia, que as curas mais eraõ effeitos dos bons remedios, que dos bons alimentos; & por eꭍta razão, aꭍꭍim como fiquei fiei pouco das dietas, conꭍiderei também, que a apertada odediencia ꭍobre o alimento, aꭍꭍim da parte de quem manda, como de quem obedece, argue pobreza, & falta de conhecimento do verdadeiro, & proprio remedio para curar a enfermidade por tanto quem tiver algum ꭍegredo bom para curar, eꭍꭍe pode curar, ꭍem affligir ao doente com o rigor dos alimentos deꭍagradaveis, & aborreciveis; porque no caꭍo que o alimento ꭍeja menos bom, a grande virtude, & e efficacia do remedio pòde vencer tudo.

OBsERVAÇAM LXXIV.

De huma febre maligna, a que sobreveyo hum fluxo de sangue uterino taõ teimoso, que durou quarenta dias, e taõ copioso, que enfraqueceo as officinas naturaes de tal modo, que fez cahir a doente em hũa hydropesia Anasarca; e por beneficio dos pós de quintilio tres vezes tomados, e dos meus trociscos de estancar sangue recuperou a saude que desejava.

1. NÃo posso deixar de compadecerme da pouca sorte de certa mulher, que estando mal convalecida de huma febre maligna, lhe sobreveyo veyo hum fluxo de sangue uterino taõ copioso, q̃ a fez cahir em huma hydropesia taõ grande, que a chegou às portas da morte: que tambem ha doenças mui parecidas com a serpente Lernea, da qual contão os Historiadores profanos, que cortandoselhe huma cabeça, lhe renascem sete. Desta condiçaõ he o seguinte caso, que quero referir para utilidade commua.

2. Certa mulher de idade de trinta annos tinha padecido huma febre malignissima, e tendo a natureza já livrado do grande perigo em que esteve, e pendurado as armas como trofeo da vitoria, entrou por novo desafio em segunda batalha muito mais arriscada riscada que a primeira, porque lhe deo hum fluxo de sangue uterino tão copioso, e porfiado, que degenerou em huma inchação de todo o corpo tão grande, que todos lhe temèrão a morte, porque a viraõ muito fraca, muito fastienta, e muito desanimada. Neste aperto me chamaraõ, e fazendo eu toda a diligencia por conhecer a causa da tal enfermidade, assentei como cousa certa, que o sobredito fluxo ou procedia dia de vicio da materia conteuda nas veas, ou de vicio dos vasos continentes; mas de qual destes vicios, ou causas procedia, era o que me fazia toda a duvida, e que sem esta estar tirada, seria impossivel curar a doença com acerto: considerei pois que o tal fluxo não procedia do vicio do sangue em qualidade, porque naõ era podre, nem seroso, ou mordaz; o que me pareceo mais verdadeiro, e mais conforme à razaõ, foy, que a origem do dito fluxo era por vicio das veas, ou por se abrirem, ou por resudarem, ou por se roerem: se o sangue sahir, porque as veas se roem, o conheceremos se virmos que he pouco, ou q̃ vem com dor, ou com acrimonia, ou que he sanioso, ou muito sereso: se o sangue sahe por refundarem as veas, ou por raridade dellas, o conheceremos se virmos que a contextura do corpo he rara; que as carnes saõ brandas, e molles; e que os mantimentos que a doente tem comido, saõ capazes para multiplicar os soros: finalmente se o sangue sahe por se abrirem as veas, o conhecermos, se virmos que sahe em muita quantidade, com boa cor, e consistencia: e nos confirmaremos mais nisto, se precerem quedas, saltos, gritos, cantos, pesos, contusoes, clamores, iras, exercicios grandes, ou muito violentos, partos trabalhosos, espirros fortes, ou alguns excessos nos actos veneros; porque qualquer destas cousas he capaz de fazer esquentar o corpo de maneira, que se abraõ as bocas das veas, e se siga hũa effusaõ de sangue inexhausta, e della huma grandissima sima perda de forças, com que enfraquecidas as officinas naturaes, e debilitado o figado, se gèraõ precisamente humores serosos, e cruezas, donde se segue fazeremse os doentes cacheticos, ou hydropicos.

3. Nem he precisamente necessario, que para aver hydropesia, aja scirrho, ou dureza no figado, como erradamente cuidàrão muitos; (1.) porque a hydropesia póde nascer de vicio da sanguificação, de vicio do baço, de relaxaçaõ dos vasos lymphaticos, deixando xando cahir no abdomen muita quantidade de soros, das muitas sangrias, da demasiada evacuação do sangue mensal, ou hemorrhoidal, como succedeo à presente enferma, a qual por hum excesso dos referidos purgou mais de quarenta dias tanta copia de sangue, que já estava hydropica.

4. Neste grande perigo nenhuma cousa fiz mais que applicar remedios para suspender o fluxo, e naõ achei outro mais efficaz (conforme diz Galeno,) (2.) que revellir o humor para a parte contraria, não por sangrias dos braços, como os barbeiros, ou os Medicos cos novatos fazem, porque isto seria enfraquecer mais a natureza, e augmentar a enfermidade; mas por medicamentos vomitorios preparados de vinte grãos de quintilio desatados em tres onças de agua de tanchagem, tomando-os em dous dias successivos, e dous interpolados; porque a experiencia de muitos annos me tem ensinado, que os pós de quintilio, por serem vomitivos, não só tem grandissima propriedade de suspenser os fluxos de sangue hemorrhoidal, ou menstrual; mas tem uma notavel excellencia de curar as hydropedias, (3.) de revellir, e tirar a mayor parte do humor colerico, o qual em quanto está misturado com o sangue, o fermenta, aquece, estimula, e faz sahir sem a natureza o querer. Tambem me animou muito, para dar o vomitorio, o conselho de Hippocrates, (4.) que manda revellir, e chamar para a parte contraria os humores, quando elles vaõ para onde naõ convem ir. Dado q̃ foy o sobredito remedio, se seguirão logo varios vomitos de humor colerico tão copiosos, e proveitosos, que no mesmo dia quasi se suspendeo o fluxo; e para o parar de todo, e fixar de maneira que a doente ficasse segura, lhe mandei que seis dias successivos sivos pela manhãa, tres horas antes de comer, e à noite, tres horas antes de cear, tomasse huma oitava dos meus castelinhos de estancar sangue, polvorizados, e misturados com huma onça de xarope de mortinhos, ou de rosas secas, e que em cima lhe bebesse meyo quartilho de agua de tanchagem, em que ouvessem estado de infusaõ por doze horas vinte folhas de salva verde, taõ pizadas em gral de pedra, que naõ fique final algum de que foy salva, e desta agua coada da com fortissima expressaõ bebesse o dito meyo quartilho tilho, e que do mesmo modo preparasse logo outra agua para tomar à noite sobre outra oitava dos ditos castellinhos, e que deste modo fosse continuando seis, ou oito dias pela manhãa, e à noite, porque este he o mais efficaz remedio que tenho visto para estancar sangue de qualquer parte que sahir, como os curiosos o poderaõ ver na minha Polyanthea da segunda impressaõ no cap. ultimo desde a fol. 853. até a fol. 855. aonde refiro os nomes de innumeraveis pessoas, que com o dito segredo livrei da morte.

5. Advirto porèm, que ainda que o sobredito remedio he a mais efficaz medicina, que no discurso de muitos annos tenho achado para curar todos os fluxos de sangue, naõ tira isso que possa faltar alguma vez; porque he remedio humano: porque assim como huma mesma terra, por boa que seja, não produz todas das as ervas, nem todos os frutos, porque saõ de differentes naturezas; da mesma sorte hum só remedio, por mais efficaz que seja, póde naõ aproveitar a todos os doentes, porque saõ de differentes temperamentos, (5.) e naturezas; pela qual razaõ se os ditos trociscos faltarem algum dia com o seu costumado effeito, o que rarissimas vezes succederà, porque rarissimas vezes o tenho visto, podem apellar para o seguinte remedio, que tambem tenho nelle muita confiança.

6. Tomem uma rola depenada, e limpa de todas as entranhas, lavese muito bem com vinho vermelho, e na sua cavidade metaõ huma onça de almecega da India, e cozendose com uma linha se asse no espeto a fogo lento, e depois se meta a dita rola em huma panela bem tapada, e se mande ao forno para que se torre, de modo que a carne, e os ossos se possaõ fazer em pò, e deste daraõ pela manhãa em jejum hua colher, mandando que lhe bebão em cima quatro onças ças de agua de tanchagem; e tenhaõ entendido que certissimamente pararà o fluxo.

7. se o xarope que se faz do succo do esterco de burro acabado de sahir do animal, naõ fora cousa taõ asquerosa, nenhuma duvida tenho, que estanca bem as camadas de sangue, e os fluxos brancos da madre.

8. Huma rãa verde, que naõ vive na agua, mas anda da entre silvas, e vallados, e lhe chamão rela, seca ao fogo, e metida em huma bolsa de tafetá, e trazida ao pescoço, estanca os fluxos de sangue da madre, como se fosse obra de milagre; o que me consta por algũas experiencias minhas, e de soriano, e do grande de Medico de santarem Diogo Rodrigues.

9. Alguns fluxos uterinos, sanguinolentos, e variegados curei dando os pós de quintilio tres dias alternados, e dando trinta dias a beber agua cozida com duas oitavas de raiz de tormentila machucada, alterada com tantas gottas de oleo de vitriolo, quantas forem necessarias para que fique bem azeda, porque que naõ ha remedio melhor fixe, e enfrosse o sangue quando está fervente, ou muito solto, e arrarado, que o dito oleo; e he isto tanto assim, que se a quantidade do dito oleo for muita, fixará, e engrossará sará o sangue de maneira, que se naõ poderá circular, e será causa de se fazer uma apoplexia, como succedeo a hum homem, que comendo uma celada de doze limões azedos, lhe deu huma apoplexia taõ forte que o matou; o que procedeo de que com o muito azedo dos doze limões se fixou, e coalhou o sangue de tal modo, que naõ se pode circular. Tambem a agua de tres claras de ovos frescos muito bem batidas e misturadas com tres onças de agua de almeiraõ, bebida da em jejum muitos dias successivos, tempera o fervor do sangue de tal sorte, que muitas vezes basta para curar as febres, por ardentes que sejaõ: assim o diz Hippocrates pocrates, (6.) e eu o tenho experimentado tambem assim em huma Ingleza; criada da serenissima senhora Dona Catherina, Rainha da Graõ Bretanha, a qual estandose abrazando com febre, me disse que lhe applicasse quantos remedios quizesse, como naõ fossem sangrias ; mandandolhe fazer este remedio por quatro tro dias successivos, sarou, e ficou totalmente livre da febre, e das sangrias, que ella muito recusava.

OBsERVAÇAM LXXV.

De huma dysuria, ou repetidos desejos de ourinar, com grandes dores, e ardores, que certo homem padeceo dous annos, em cujo espaço de tempo se lhe fizeraõ innumeraveis remedios, e se consulàraõ muitos Medicos, sem conseguir alivio; e sendo eu chamado, curei ao dito enfermo com os vomitorios de quintilio repetidas vezes tomados, com foros de leite muito purificados, e ultimamente com mercurio doce sublimado doze vezes com ouro.

1. CErto homem de idade de setenta annos, morador junto às portas de santa Cathrina, padeceo dous annos cruelissimas dores, e difficuldades de ourinar. Para este taõ enfadoso mal chamou a dous Medicos de boa nota, os quaes o sangráraõ muitas vezes; deitáraõlhe varias ajudas refrigerantes, & anodynas; receitàraõlhe purgas brandissimas feitas de huma onça de polpa de canafistula fresca, desatada em meyo quartilho de caldo de frangaõ cozido primeiro com meya oitava de alcaçuz, & hu͂a onça de conserva de flores de violas; outras vezes o purgàraõ com tres onças de mannà desatado em hum quartilho de soro de leite de burra; porque em achaques da ourina só se admittem purgas taõ brandissimas, como estas; porque as mais fortes são muito para temidas, applicàraõlhe repetidas vezes sanguisugas, abriraõlhe fontes, deraõlhe ptisanas adoçadas com lambedor da tintura de violas, e amendoadas de caroços de ginjas, e sementes de alface feitas em agua cozida cõ alcaçuz; usáraõ muitos dias de caldos de avea alterados com meya oitava de coral bem preparado; mas tudo sem alivio: e vendo o enfermo que tantas diligencias foraõ infructuosas, consultou a outros Medicos mais antigos, entendendo que nos seus conselhos, e experiencia acharia remedio ao seu mal; porém como os Medicos novamente chamados seguissem os passos dos primeiros, e lhe applicassem as mesmas medicinas, experimentou muito peyor successo; porque as dores se augmentáraõ tanto, que passava os dias, e as noites em continuas ancias, e suspiros. Neste estado achei ao enfermo, taõ debilitado de forças, e prostrado de animo, que estava mais capaz para entregarse aos Religiosos q͂ o ajudassem a bem morrer, q͂ aos Medicos para o averem de curar; comtudo porque seria impiedade ensurdecerme aos rogos, e deprecações de hum affligido, me resolvi a fazer o que pudesse, e a experiencia me ensinasse, e porq͂, como diz Hippocrates, (1.) isso basta para que o Medico cumpra sua obrigaçaõ; e assim dei principio à cura, examinando primeiro qual era a doença, e a sua causa; porque se os Medicos as desconhecem, tambem ignoraõ os remedios, de que resultaõ grandes erros. (2.) Chamase pois a doença do sobredito enfermo, Dysuria, que val o mesmo que huma continua vontade de ourinar com grandissima dor, e trabalho, deitando a ourina humas vezes gotta a gotta, outras vezes em mayor quantidade. Procede a Dysuria, ou de causas interiores, ou de exteriores. Entre as causas exteriores a primeira he, o estar o doente muito tempo assentado em alguma pedra, ou terra fria, ou estar muitas horas metido em agua fria, por cuja causa a bexiga, e o seu colo adquiriraõ huma frialdade tal, que a faz padecer esta doença. A segunda causa exterior, he alguma grande queda, ou pancada nas costas, com que se deslocou alguma vertebra do espinhaço, ou se offendeo algum musculo da bexiga. A terceira causa pode ser, o uso dos remedios muito acres, ou muito diureticos, que depois de moverem as ourinas com muita força, deixàraõ a bexiga taõ irritada, que naõ póde reter as ourinas, como succedeo ao Visconde General, Pedro Jaques de Magalhães, que por occasiaõ de humas sezões rebeldes, tomou seis canadas de agua de Inglaterra; e como a tal agua seja muito diuretica pelo vinho de Rim com que he feita, moveo de forte as ourinas, que cahio em huma incontinencia dellas, que lhe durou em quanto viveo. Entre as causas interiores, huma dellas póde ser a intemperança quente do figado, dos rins, ou do todo; da qual se póde gérar grande copia de colera, ou de phlegma acre, & salgada, que misturandose com a ourina, faz desesperar aos enfermos com dores, como diz senerto. (3.)

2. A segunda causa interior da Dysuria pode ser a muita secura dos vasos parastatos, ou das glandulas, que estaõ pegadas às ureteras, contrahida do excessivo uso dos actos venereos, ou de alguma febre muito antiga, ou magreza excessiva de carnes, ou de outra qualquer causa, pela qual faltando nas ditas partes a humidade, que avia de retundir, e moderar a acrimonia da ourina, a faz mais mordaz, e irritante, e neste caso servem os leites de burra, a carne dos cágados, e caracois, e o manjar branco de arrans.

3. A terceira causa interior da Dysuria, principalmente nos velhos, diz Hollerio, (4.) que he a grossura da pelle, ou a constipaçaõ dos póros, que naõ deixando transpirar, nem exhalar os excrementos fuliginosos, & serosos, adquirem pela demora tal podridaõ, & acrimonia, que fazem a Dysuria, para cujo remedio servem muito os banhos, & as esfregações do hydreleo, porque ambos estes remedios abrandaõ a pelle, abrem os póros, e fazem exhalar as sobreditas fuligens salgadas que causaõ os ardores. Tambem póde ser causa da Dysuria, como dizem Hollerio, e Zacuto, (5.) alguma destillaçaõ, ou rheumatismo que da cabeça desce pela espinal medulla, e cahe na bexiga, cujo remedio costumaõ ser as fontes dos braços, porque derivaõ, & divertem muito as taes destillações; e eu o tenho experimentado assim em hum neto de Antonio Ximenes, q͂ padecendo largos tempos huma Dysuria procedida de fluxo cerebral, e naõ obedecendo a quantos remedios lhe applicàraõ, só com as fontes altas, que abrio por meu conselho, se livrou da tal doença.

4. A quarta causa interior póde ser alguma pedra, ou areas encalhadas nas ureteras, ou no collo da bexiga, no qual caso, depois dos vomitorios de quintillo repetidas vezes tomados, e de algumas sangrias altas, he unico remedio dar ao doente, tres, ou quatro vezes em dias alternados, quinze grãos de tartaro vitriolado em agua cozida com resta boy, ou com pimpinella, e quando não deite a pedra, ou areas, se pódem valer do meu grande segredo das suppressoe͂s da ourina, do qual fallo na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 81. fol. 509. desde o num. 36. atè 42. aonde os curiosos acharáõ nomeados os doentes, a quem livrei da morte com o tal remedio. E se acontecer que a pedra, ou areas, que fazem a Dysuria, naő possaõ sahir, porque a bexiga pela muita dor que a pedra lhe causa, se fecha, aperta, e contrahe, neste caso he presentaneo remedio dar ao tal doente huma pilula de tres grãos de laudano opiado, ou tres gottas de laudano liquido, porque tirada a dor se naõ convellirá a bexiga, nem se fechará, e fahirá a pedra, & consequentemente se tirará a Dysuria.

5. A quinta causa interior póde ser a fraqueza da bexiga, e a copia de humores; assim o diz Hollerio, (6.) e outros muitos: mas porque de nosso instituto he referir sómente os successos particulares de qualquer enfermo, e não das regras universaes; por isso deixo as mais causas de que póde proceder a Dysuria, e os differentes remedios, com que se deve curar, à curiosa indagaçaõ dos Medicos estudiosos.

6. Chamado, como disse, para o miseravel doente, considerei assim o modo da dor, como a substancia da ourina; e observei que era turva, e que vinha misturada com alguma materia purulenta. Tambem fiz particular reparo que a dor era grande no tempo de ourinar, e que no fim da ourina era muito mayor; donde vim a conhecer que a continua vontade de ourinar, e a excessiva dor, e ardor que padecia, quando ourinava, procedia de ferida que tinha sphinter, ou collo da bexiga, por cuja causa, como estes lugares sejaõ muito sensitivos, e a ourina seja salgada, e mordicante, de tal sorte pica, aggrava, e estimula a parte ferida, que a mesma natureza trata cada instante de deitar fóra de si o que a molesta, e por esta razaõ ourinaõ a cada passo, e na passagem pelo orificio ferido, e principalmente no fim, quando o meato se fecha, e aperta, faz dor, e ardor excessivo, e muito mais na ponta, e orificio da glande. A razão disto acharaõ os curiosos na minha Polyanthea da sengunda impressaõ cap. 83. da Dysuria fol. 530. num. 28.

7. Comecei pois a cura abrandando primeiro o ventro com ajudas emollientes, feitas de caldo de frangaõ cozido com malvas, violas, mercuriaes, alfavaca de cobra, raiz de malvaisco, e ameixas passadas, ajuntando a cinco onças deste cozimento tres onças de lambedor violado, e meya onça de canafistula; e como me pareceo que o ventre estava brando, e facilitado, lhe dei dous dias successivos, e dous interpolados quinze grãos de pòs de quintilio misturados com tres onças de agua ordinaria; porque, como dizem, gravissimos Doutores, (7.) nos achaques da ourina, rins, e bexiga, saõ os vomitorios o mayor remedio, que tem a Medicina; porque revellem, e divertem efficacissimamente os humores da parte queixosa, de que se segue notavel alivio, como succedeo a este enfermo, que melhorou de maneira, que entendi estava saõ; mas porque a chaga permanecia, e eu por essa razaõ temia que as dores continuassem, lhe mandei que usasse de alimentos de boa substancia, como saõ fragãos, vitela, e cabrito, aconselhandolhe que usasse de alfaces, de malvas cozidas, e esparragos com pouco vinagre, e azeite, e que se abstivesse de iguarias azedas, salgadas, oleosas, manteiguentas, ou muito adubadas; porque se, como diz Galeno, (8.) os máos alimentos saõ damnosos aos sãos, muito mais damnosos seraõ aos doentes da ourina, porque lhes angmentaõ a mordacidade. Depois disto, para mitigar as dores, preparei hum lambedor de çumo de folhas de bardana, ordenando que o tomasse varias vezes no dia; e para alimpar a chaga, fiz que em dias alternados tomasse tres oitavas das seguintes pilulas. Tomai de bom rhabarbaro tres oitavas, de canafistula dez oitavas, de pó de alcaçuz meya onça, de terebinthina de beta lavada em agua de malvas, huma onça, tudo se misture, e se formem pilulas, para se darem como fica dito. Acabadas que foraõ de tomar as pilulas, mandei q̃ tomasse quatro meses successivos hum quartilho de leite de burra acabado de mungir, ferrado com pederneira, e adoçado com lambedor de flores de papoulas, com o qual remedio teve consideravel melhoria. Porèm porque ainda perseveravaõ alguns vestigios da dor, lhe ordenei o seguinte xarope, que he mui decantado, e appropriado à tal doença. Tomem de semente de malvaisco, de malvas, e de pevides de marmelos, de cada cousa destas meya onça, de alquitira branca duas oitavas, tudo se machuque, e se deite de infusaõ em tres quartilhos de agua quente, que primeiro fosse cozida com huma raiz de malvaisco, e outra de alcaçuz, oitava e meya de dormideiras brancas, e vinte alquequenges, e espremendose as mucilagens de todas estas cousas, se tomem duas onças dellas, e se misturem com seis onças do sobredito cozimento, e com o assucar necessario se faça xarope. E continuando doze dias em jejum, conseguio taõ consideravel melhoria, que se deu por saõ. Mas naõ succedeo assim, porque antes de passarem tres semanas, se enfureceo a doença de modo, que cuidei succedesse ao miseravel doente o mesmo; que a muitos, que rendèraõ a vida aos repetidos assaltos de taõ indomavel enfermidade. Neste ultimo conflicto me lembrou ter dado (em casos semelhantes) soros de leite muito purificados, misturando a cada hum meya oitava de coral bem preparado, por ser grande absorbente dos humores acidos, e corrosivos, por isso lhos dei trinta dias successivos: e se em Portugal tiveramos o oleo doce de mercurio, o anteporia eu a todos os remedios humanos, porque só elle he capaz de curar radicalmente as chagas dos rins, e da bexiga; (9.) mas porque neste Reyno naõ temos quem o saiba preparar, me accommodei seguindo o conselho de Valesio, (10.) querendo o que pude, já que naõ pude o que quiz; dandolhe por tempo de hum mes meya oitava de mercurio doce sulimado doze vezes com ouro, até que fique quasi fixo, e naõ fuja do fogo, como aconselha Riverio, (11.) formando-o em pilulas com doze grãos de pò de alcaçuz, e dous escropulos de terebinthina de beta. Ultimamente lhe ordenei que (depois de feitos os sobreditos remedios) bebesse por continuaçaõ a seguinte agua, que aproveita muito assim para as chagas, e dores da bexiga, como para tirar dos rins as areas, ou pedras, ou os humores obstruentes, e viscosos, que nas taes vias se estabulaõ, e se prepara desta sorte. Tomem de aço preparado com enxofre, e alcoolizado o mais que for possivel, duas onças, deitemse em hum frasco com duas canadas de agua commua, e se vascoleje tres, ou quatro vezes no dia, para que a dita agua receba em si a virtude do aço ; e da dita agua coada por papel mataborraõ, ordenei que bebesse o enfermo, até que conseguisse a saude que desejava; e succedeo assim, porque escapou do perigo, e escusei de appellar para o balsamo sulphuris terebinthinado, que nas dysurias, e ardores da ourina, em que ha sinaes de aver chaga, ou ferida na bexiga, ou no sphinter della, se tem por remedio soberano, com tanto que se dem quatro, ou seis gottas duas vezes no dia, em agua cozida com pimpinella, ou com alguma erva vulneraria: e se o dito balsamo se puder deitar com seringa na bexiga, ainda fará melhor effeito, por que chega com toda a sua virtude ao lugar enfermo.

8. Algumas vezes usei nas dores, ardores, e achaques da bexiga, de cozer sempre com a gallinha huma mão chea de folhas de malvas, e de dar a beber (em lugar de agua) amendoadas feitas de pevides de melaõ, melancia, abobora, semente de alface, e algũas amendoas doces, pisando todas estas cousas muito bem, e desfazendoas em huma canada de agua commua fervida com huma maõ chea de farelos de trigo lavados primeiro em quatro aguas ; porque esta tal amendoada he muito detergente, abranda muito as dores, e facilita muito a camara, o que he utilissimo para remedio desta enfermidade.

OBsERVAÇAM LXXVI.

De hūa Asthma taõ rebelde, que em muitos annos se naõ rendeo às diligencias de grandes Medicos, & sendo eu o menor de todos, a curei felizmente, dandolhe quatro vezes a agua Benedicta vigorada em dias alternados, usando, depois disto; de humas pilulas, que inventei, e lhas fiz tomar por nove dias interpolados dandolhe finalmente, em quinze dias successivos, sobre huma onça de xarope de hyssopo, tres onças de agua de bosta de boy destillada em Mayo, e alterada com quatro grãos de castoreo, e doze de pò da unha da graõ besta, por serem estes remedios antispasmodicos, e antepilepticos, e por consequencia especificos da Asthma, que he huma gotta coral do bofe, como diz Vanelmonte. (1.)

1. ENtre as partes, que residem dentro no peito, naõ tem menor nobreza o bofe; d qual como fosse creado para ser instrumento da respiraçaõ, e para attrahir o ar necessario para a fabrica dos espiritos vitaes, e para moderar os incendios do coraçaõ, era conveniente que fosse leve, raro, cavernoso, e cheyo de arterias asperas, e leves; donde se o tal bofe, e arterias na sua individual nutriçaõ cozem, e digerem bem os alimentos com que se sustentaõ, e apartaõ bem os excrementos que dahi resultaõ, ou de outras partes se mandaõ, naõ padece o doente achaque, ou enfermidade alguma do bofe; mas se pelo contrario, no sobredito bofe, ou nas arterias asperas, ou leves, se fazem máos cozimentos, ou màs separações dos excrementos que ahi se criaõ, ou de outras partes se mandaõ, logo as arterias asperas, e leves padecem obstrucçaõ, ou compressaõ, das quaes obstruidas, ou apertadas resultaõ pessimas enfermidades, como saõ Peripneumonias, Vomicas, Tuberculos, Hydropesias, Hemoptyses, Abscellos, durezas, e Asthma. Pondo pois de parte os sinaes, as causas, e os remedios com que se curaõ as sobreditas enfermidades pertencentes ao bofe, na presente Observaçaõ tratarei só da Asthma, como doença mais frequente entre as do peito.

2. He a Asthma hūa respiração cansada, e apressada, causada, na opinião de Vanelmonte, (2.) de huma aura, ou vapor maligno, que tem certa antipatia, e inimizade com o bofe, da mesma sorte que as cantaridas tem com a bexiga, que naõ só applicadas sobre qualquer parte do corpo, mas só trazidas na fazem ardores, e picadas insoportaveis na ourina. Porém na opiniaõ dos Galenistas, he a Asthma causada de excrementos tartareos, viscosos, e endurecidos, reteùdos nos bronquios do bofe, e nelle com o calor natural se engrossaõ algũas vezes de modo que se convertem em pedra, ou materia gypsea, que tapando, ou enchendo os orgãos da respiração, saõ causa da Asthma suffocante.

3. Desta condição era a que, por tempo de quatro annos, padeceo Manoel Martins, official de çapateiro, morador à Portagem velha, o qual teve hũa Asthma taõ grande, e huma falta de respiração tão apertada, que o obrigou muitas vezes a levantarse da cama no rigor das noites de inverno, e porse à janela para tomar ar, e ter alivio na suffocação, que padecia. Para vencer a huma doença taõ terribel, & quasi incuravel, usou nos sobreditos quatro annos do conselho de algũs Medicos bem opinados sem conhecer alivio, nem com sangrias, purgas, ou sanguisugas, nem com remedios peitoraes, nem com os abstergentes, nem com os attemperantes, nem com os especificos: não perdoou a fontes, nem a causticos, nem a cauterios feitos na nuca; usou dos pòs da coruja queimada viva; tomou os bofes da raposa, e os pòs dos Mille-pedes em caldo de gallo velho; appellou para os banhos das caldas, tomou suores, e unturas; finalmente não ficou remedio de Medico letrado, nem de barbeiro simplez, ou velha benzedeira que deixalle de fazer, ainda que tão desgraçadamente, que cada dia se augmentava mais a enfermidade.

4. Neste aperto me chamàraõ, e discursando eu sobre a causa da dita Asthma, conheci por huma inducçaõ negativa, que não procedia por consentimento do cerebro, porque nem de presente, nem de preterito tinhaõ precedido sinaes de catarrho, ou quaesquer outras queixas da cabeça: nem procedia de inchação, ou dureza do figado, do baço, ou do pancreas, que comprimindo com o seu pezo o diaphragma, ou o mediastino, (a que os bofes estaõ ligados) fossem causa da tal doença; porque palpando eu com as mãos as ditas partes, naõ achei inchaçaõ, nem dureza alguma nellas: nem procedia de hydropesia, ou flatos do abdomen, ou dos hypocondrios, que apertando o diaphragma impedissem o seu movimento, e dessem causa à Asthma; porque não avia rugidos de ventre, nem eructações pela boca, nem inchaçaõ leucophlegmatica, ou tympanitica no ventre, ou estomago: nem procedia de inflammaçaõ do mediastino, nem do diaphragma, nem dos musculos intercostaes; porque nem tinha febre, nem tosse, nem pontada, e necessariamente avia de ter algum symptoma destes, se qualquer das sobreditas partes tivesse algũa offensa: nem procedia das veas, que mandaõ para o bofe a materia sorosa pela arteria venosa; porque pela mayor parte averia estertor, e cessaria certamente o accidente tanto que sangrassem ao enfermo algumas vezes.

5. Nem nascia de resicação do bofe, porque o doente naõ tinha officio capaz de produzir tanta secura, pois não era ourives, nem chymico, nem ferreiro, nem fundidor de sinos, ou de artelharia, para que se pudesse suspeitar que pela assistencia do fogo teria a tal resicação: nem procedia de abundancia de materia phlegmatica embebida na substancia espongiosa do bofe, porque teria respiraçaõ difficultosa, mas sem estertor, ou sonido, e entaõ se chamaria a tal falta de respiraçaõ Dyspnea. Mas como tivesse grandissimo sonido, e eftertor, conheci era verdadeira Athma causada de materia viscosa embebida nas asperas arterias do bofe; a qual materia com a continuaçaõ do tempo se augmentou de sorte, que o doente naõ podia respirar sem levantar a cabeça, e então se chama a tal falta de respiraçaõ Orthopnea, a qual de todos he a em que a respiraçaõ he mais difficultosa, e em que os enfermos não podem respirar menos que estando assentados, ou com a cabeceira muito alta: certificado pois que a Asthma deste enfermo tinha o seu assento nos bronchios do bofe, comecei a curallo com huma ajuda commua emolliente; e porque passadas tres horas lhe sobreveyo huma grande falta de respiraçaõ, que o apertou muito, lhe dei a beber quatro colheres de oximel simplez misturado com a quarta parte de goma ammoniaca, e doze grãos de canela finissima feita em pò subtil, e com o tal remedio aliviou de tal sorte, que tive lugar (nas tregoas que o accidente deu) para ir inscindindo, attenuando, e cozendo os humores viscosos, para que obedecessem melhor às purgas, fazemndolhe beber muitos dias, em lugar de xaropes, a seguinte agua.

6. Tomem doze cabeças de oregãos, e outras tantas de hyssopo, trinta maçans da Nafega, hũa maõ cheya de avenca, outra tanta de escabiosa, tudo se coza em panela de barro com tres canadas de agua da fonte, e depois de ter gastado hum quartilho lhe ajuntem duas onças de bom mel, com hum escropulo de açafrão, e meya oitava de erva doce, e coandose a dita agua se guarde para beber della quando tiver sede.

7. Preparada a materia viscosa, e tartarea com o uso desta agua, mandei lançar nas tres noites seguintes tres ajudas muito mollificantes, para purgar felizmente na fórma seguinte.

8. Tomem de malvas, violas, borragens, e ortigas mortas, de cada cousa destas huma mão cheya, de passas sem grainha duas onças, tudo se coza em quatro canadas de agua com hũa cabeça de carneiro com sua lāa, muito bem machucada, até ficar o cozimento em quantidade de meya canada, e coandose, tomem deste cozimento cinco onças com tres de lambedor violado, e quatro onças de assucar mascavado; se deitem estas ajudas mornas, e faça o doente muito pelas sustentar, porque deste modo obrão melhor; mas se se deitaõ quentes, ou levão sal, ou saõ grandes, nada aproveitão, porque não se detem dentro quanto convem para fazerem o effeito defejado; isto digo a favor dos barbeiros, que cutão nas Aldeas, onde não ha Medico.

9. Tomadas estas ajudas, dei no dia seguinte ao doente dezaseis grãos de pós de quintilio desfeitos em tres onças de caldo de gallinha; o qual remedio tomado quatro vezes em dias alternados obrou tão maravilhosamente, e com tanto alivio, que he impossivel poder explicalo, e por esta razão na mayor parte das doenças rebeldes uso da agua benedicta, e dos pòs de quintilio, porque com o tal remedio tenho curado algumas doenças de que jà não avia esperança; por que, como diz Trincavelo, (3.) as doenças rebeldes, e antigas não se podem curar sem remedios muito efficazes.

10. Passados dous dias depois de tomado o quintilio, lhe mandei preparar as seguintes pilulas, que costumão obrar muito bons effeitos nas Asthmas, com duas condições; a primeira, que o doente esteja bem purgado; a segunda, que se repitão oito, ou nove vezes em dias alternados.

11. Tomem de azebre sucotrino huma onça, de goma ammoniaca preparada quatro oitavas, de açasfraõ bom oitava e meya, de flores de enxofre duas oitavas, tudo se misture com o que for necessario de terebinthina de beta, e se formem pilulas para tomar quatro escropulos de cada vez.

12. Com estas pilulas conseguio o doente grande melhoria; mas porque nas conjunções da lua, e mudanças do tempo sentia hum tal embaraço na respiraçaõ, que o obrigava a sentarse na cama, e tomar hűa cachimbada de tabaco de fumo; que supposto o dito tabaco no actual aperto alivia muito, como naõ tira a causa da doença, ordenei que em dias alternados tomasse cinco onças do seguinte xarope magistral, de que tenho muita confiança.

13. Tomem de passas sem graìnha duas onças, de folhas de sene, & de raiz de mechoacaõ, de cada cousa destas meya onça, de folhas de marroyos, de cabeças de ouregãos, e de hyssopo, de cada cousa destas, duas oitavas, de açafrão meya oitava; de flor de nòz noscada hum escropulo, de figos passados, e de maçãs da Nafega, de cada cousa destas hűa duzia, tudo machucado se deite de infusaõ em cinco quartilhos de hydromel, e passadas vinte e quatro horas se dé a tudo hũa fervura, ajuntandolhe tres onças de assucar cande, e então se clarifique por manga hypocratica; e desta potagem, como já disse, lhe mandei beber em jejum cinco onças, com que purgou benignissimamente; e conseguiu a boa saude que desejava.

14. Innumeraveis saõ os doentes de Asthina, que no discurso de muitos annos tenho curado por este estylo; sem embargo que tive alguns, a quem os sobreditos remedios, postoque excellences, e experimentados, naõ aproveitàraõ, aos quaes curei dandolhes tres vezes os pòs de quintilio, e fazendolhes tomar depois disso doze vezes (em dias alternados) dous escropulos dos seguintes pós, que saõ mui efficazes, e louvados. Tomem de folhas de cardo santo colhido em Junho, e seco à sombra, duas oitavas, de mostarda duas oitavas, de pimenta longa dous escropulos, de folhas de sene de Lapata meya onça, de erva doce huma oitava, de diagridio bem preparado hum escropulo, tudo se faça em pò, e se misture com meya onça de xarope de hyssopo, ou com huma gema de ovo mal assado, ou feito em pilula, com dous escropulos de terebinthina de beta. Alguns asthmaticos depois de bem preparados se livràraõ de taõ terribel doença, só com tomarem por tempo de dous meses, em dias successivos, doze pingas de balsamo de Cupaiba, misturado com huma gema de ovo molle.

15. Finalmente, se todos os remedios sobreditos naõ aproveitarem, podem recorrer para o uso do xarope de hyssopo, e agua de bosta de boy destillada em Mayo, dando por quinze dias successivos duas onças do dito xarope, e bebendolhe em cima tres onças da dita agua, em que misturem quatro grãos de pó de castoreo verdadeiro. Com esta agua curei radicalmente a muitos asthmaticos depois de estarem deixados ao arbitrio da fortuna, como os curiosos poderáõ ver na minha Polyanthea Medicinal da segunda impressaõ trat. 2. cap. 44. fol. 294. do num. 22. até 27.

16. Huma advertencia muito necessaria quero fazer aos Medicos modernos, e he, q̃ àlem das Asthmas ordinarias, ha outra casta de Asthma chamada Convulsiva, ou espasmodica, a qual procede de certa aura maligna, como Epileptica, que fixa, e congela o sangue de tal sorte, que o não deixa circular, e ficando o sangue estagnado, e parado muito tempo póde martar ao doente.

17. Os sinaes por onde se conhece esta sorte de Asthma convulsiva, ou espasmodica, saõ faltar a respiraçaõ, ou respirar com grandissima difficuldade, sumiremse totalmente os pulsos, esfriarse o corpo com excesso; o remedio desta arriscadissima doença consiste em meter os pès do doente em hũa bacia de agua taõ quente, que o doente a naõ possa sofrer, para deste modo se adelgaçar o sangue, e poder circular; applicarlhe pela boca remedios volatilizantes, e antipasmodicos, como saõ os espiritos cornu cervi succinado, os espiritos de sal armoniaco, a tintura do açafraõ, a agua theriacal, os pós da unha da graõ besta, os pós dos mille-pedes, o esperma ceti, misturando qualquer cousa destas em caldo de gallinha bem açafroado, ou em agua cozida com hum punhado de cerfolio, ou com huma onça de raiz de vincetoxico, ou com folhas de hera terrestre, ou de ungula cabalina, porque todas estas cousas adelgaçaõ o sangue, e o ajudaõ a circular, e tem virtude antipileptica, e antispasmodica, o que nesta doença he taõ necessario, que será impossivel curarse de outra sorte.

18. Esta Asthma convulsiva, e espasmodica teve algumas vezes Dom Francisco Mascarenhas, filho do Conde de santa Cruz, e em todas esteve quasi morto, e suffocado: o mesmo caso, em termos identicos, succedeo duas vezes em minha casa com minha mulher, a qual chegou a estar sem pulso, sem respiraçaõ, sem falla, fria como neve, e sem poder confessarse; e foy Deos servido, que com lhe meter os pès em agua muito quente, com os remedios volatilizantes, e antepilepticos, com os pós da unha da graõ besta, e com os de guteta, dados em agua de cerejas negras, livrou da morte por misericordia de Deos, a quem dou muitas graças.

OBsERVAÇAM LXXVII.

De huma dor de colica taõ violenta, que chegou a hum doente às portas da morte, e depois de infinitos remedios baldados, estando o enfermo quasi agonizante, lhe dei vinte grãos de pós de quintilio, misturados com quatro colheres de caldo de gallinha; e foy o effeito deste maravilhoso remedio taõ presentaneo, que dentro de duas horas se tirou a dor, e o doente ficou saõ com admiracaõ dos que o tinhaõ visto em taõ grane perigo.

1. A Dor de colica não afflige a todos com igual força, e crueldade; a huns atormenta mais, e a outros menos, conforme a diversidade das causas de que procede; algumas vezes procede das fezes endurecidas, e reteùdas no intestino Colon, as quaes estendendo-o, ou alargando-o mais do que he justo, fazem dor: conheceremos que as fezes duras, e reprezadas saõ a causa da dor, se virmos que o doente deixou de fazer camara muitos dias, ou se comeo algum mantimento adstringente, e engrossante, como saõ marmelos, sorvas, nesperas, arroz, biscouto, mãos de carneiro, carne assada, queijo, ou outras iguarias semelhantes; porque avendo algum sinal destes, serão da tal colica as ajudas emollientes feitas de meyo quartilho de cozimento de borragens, malvas, mercuriaes, alfavaca de cobra, raizes de malvaisco, figos passados, e ameixas, a que mando ajuntar seis oitavas de diaprunis, tres onças de lambedor violado, e huma oitava de salgema. (1.) Outras vezes procede a colica de humores nas tunicas dos intestinos, os mordem, e vellicaõ; o que conheceremos, se virmos que o doente he muito dado ao descanso, e vida sedentaria, e regalona, ou que bebe muito vinho, ou he demasiado nos actos venereos, ou se virmos que com a camara vem algũas phlegmas pegadas, porque avendo algum destes sinaes, seraõ remedio da tal colica os inscidentes, assim tomados pela boca, (quaes saõ as pilualas de terebinthina, e os cremores de tartaro) como por ajudas; a cuja cozimento devemos ajuntar huma onça de mel rosado, e outra de terebinthina com huma gema de ovo. Outras vezes procede a colica de flatos, que distendendo a cavidade dos intestinos, e do ventre, fazem a dor, a qual devemos curar com remedios emollientes, e carminativos de flatos, como saõ as ajudas de ourina de menino fervida com cabeças de marcella, palhas alhas, e oleo de endros; ou com ajudas de caldo de gallinha cozida com ortelãa, alfavaca de cobra, e raiz de aristoloquia, ou de parreira brava; applicando tambem por fóra huma filhó de estopa ensopada em gema de ovo, e levemente frita em oleo de marcella, e banha de flor, polvorizada a dita filhó com pòs de marcella; ou com meter os pés, e os testiculos em vinho taõ quente, que o enfermo mal o possa sofrer. Outras vezes finalmente procede a colica dos humores colericos, acres, ou acido-salinos; o que conheceremos pela vehemencia da dor, grandeza da sede, amargor de boca, e continuos desejos de vomitar, ourinar.

2. Desta condiçaõ era a colica, que teve Domingos Coelho, official de cirieiro, morador em esta Cidade, junto à Igreja da Misericordia; deu a este homem huma dor de colica taõ violenta, que entendeo não poderia escapar della com vida, e por isso pedio que, com toda a pressa, lhe chamassem a hum confessor, antes de cuja vinda se lhe tinhão applicado muitos remedios interiores, e exteriores.

3. Mas como visse, que nenhum lhe aproveitàra, perdeo a esperança da vida, e estando com a morte na garganta, me mandou chamar, como muitos fazem, do que já me naõ queixo, assim porque a frequencia destas sem-razões me tem facilitado o sofrimento dellas, como porque assentei comigo, que o chamárem-me nos grandes perigos, era credito, e naõ offensa; porque se venço a enfermidade, cunde a vitoria em mayor horna minha; e se a não posso vencer, salvase o meu credito na taboa de que me chamàrão, quando mayores Medicos que eu, tinhaõ largado o leme, e desemparado a embarcaçaõ, porque a vião sumergir na tormenta. Chamado, como disse, para ver ao enfermo, entrei no seu aposento, e achei toda a casa revolta, sem nella se ouvirem mais que lagrimas, e suspiros; de huma parte andava o doente a tembos, confessandose a vozes, e a gritos, porque a crueldade das dores lhe naõ permitia fallar manso; de outra parte estava a mulher (pejada de nove meses) assaltada com muitos desmayos, porque via a seu marido em tanto perigo; confesso que me achei muito embaraçado sobre resolver a quem avia de acudir primeiro; escolhi acudir ao marido, o qual olhando para mim me disse, que elle conhecia muito bem o grande perigo em que estava, mas que morreria desconsolado se eu lhe não applicasse algum remedio dos que eu preprava, e com que fazia algumas curas de credito, que esperava do meu bom zelo, quizesse acudirlhe em taõ apertado conflicto.

4. Tomeilhe o pulso, palpeilhe o ventre, e os hypocondrios, via lingua, observri a ourina, e conheci da vehemencia da dor, da grande propensaõ, e grandes desejos que tinha de vomitar, e das repetidas vontades de ourinar, que a enfermidade tinha sua origem nos humores biliosos, e mordazes, que picavaõ, e estimulavão aos rins, intestinos, e estomago, e erão causa de tão acerrimas dores, que avaliei por Nephriticas, e assentando nesta maxima como cousa verdadeira, o animei muito, prometendolhe que na tarde do mesmo dia ficaria sem dores, e se acharia com saude tão perfeita, que iria ver os touros, que então se avião de correr; mas com huma condiçaõ, que se avia de sujeitar a tomar hum vomitorio de tres onças de agua benedicta vigorada, porque depois que Deos creou a Medicina, não avia remedio tão infallivel, nem tão prompto para as taes dores Nephriticas, como era a agua benedicta; o que me constava por infinitas experiencias, porque tinha visto doentes, que dandolhe as dores pelas seis da manhãa, tomàrão a dita agua, e antes do meyo dia estavão bons; e outros que dandolhes as dores pelas duas horas da tarde, antes do sol posto se acháraõ sãos.

5. Não he possivel explicar a alegria, com que o doente se preparou para tomar a tal agua, porque logo me pedio, que sem detença alguma lha applicasse. Deilhe pois tres onças della preparada por minhas mãos, porque na preparação dos remedios consiste a vida, ou a morte; e foy o effeito tão maravilhoso, e tão copiosa a descarga que fez por ambas as vias, que antes de duas horas esteve saõ, e capaz de ir ver os touros, como lhe tinha prometido, fiado na maravilhosa virtude, e promptidão do remedio. Nem he para admirar, que o successo fosse tão feliz; porque como os pòs de quintilio, de que a dita agua se prepara, tem grande virtude para purgar os humores colericos, de que procedem naõ só as ditas dores; mas talvez ancias como de veneno; (2.) daqui vem que purgados elles por ambas as vías, se alcança a saude, como succedeo a este doente; e supposto que esta cura, e outras semelhantes erão capazes de fazer honorifico por toda esta Corte, ficáraõ sepultadas na pequenhez de hum cerieiro, de hum soldado, e de outras pessoas tão humildes, e desconhecidas, que naõ sendo bastantes para dar credito em milhões de calos felices, sobejaõ para tirallo em hum só caso desgraçado.

6. Advirto aos Medicos principiantes, que para as colicas Nephriticas não ha remedio: mais presentaneo, que os vomitorios de agua benedicta, e quando estes naõ bastarem, (o que tenho por impossivel) saõ maravilhosos os banhos de agua cozida com hum arratel de amendoas doces bem pizadas; e quando nem estes aproveitem, recorraõ para o uso das ajudas feitas de meyo quartilho de caldo de rim de vacca cozido com malvas, alfavaca de cobra, a que ajuntem huma onça de terebinthina de beta, desfeita em huma gema de ovo crua, e seis oitavas de diaphenicaõ.

7. Porèm se a dor de colica for intestinal, a que chamamos colica ordinaria, se a causa for fria, naõ ha remedio mais excellente, que meter os pès em vinho fervido com alfazema quente, quanto sepuder sofrer, e fomentar o ventre com oleo de alfazema, ou applicar sobre o embigo huma cabeça de alhos assada bem quente, ou tomar meya oitava de pò de raiz da bicha, ou de calumba, ou de esterco de ratos, e melhor que tudo, huma oitava de pò de intestino de lobo, de que Pedro Pacheco (3.) diz milagres.

8. E se a dor for de ventosidade, he remedio presentaneo deitar sobre o embigo huma ventosa com muito fogo; do qual remedio diz Galeno (4.) que obra por modo de encantamento. Tambem fervem as ajudas de caldo de gallinha cozida com hum punhado de cabeças de macella, e ortelãa, huma oitava de pò de enxofre, ou ajudas de caldo de gallinha, com meya onça de agua da Rainha de Ungria, ou com duas onças de oleo de nozes.

9. E se a dor for de muita quentura, e de humores colericos, e mordazes, aproveitaõ muito as ajudas de cinco onças de caldo de frangão, misturada com duas onças de agua de claras de ovos, bem batidas, dando repetidas ptisanas com os seus cremores, porq̃ estas retundem efficazmente a mordacidade dos humores que estes, e biliosos, como diz Traliano. (5.)

10. Ultinamente, quando todas as diligencias da Arte naõ bastem para curar a dor de colica, podem asar confiadamente dos remedios narcoticos, com tal condiçaõ, que os humors estejaõ purgados; assım o ensina Ætio. (6.)

OBsERVAÇAM LXXVIII.

De huma excessiva dor de estomago, que a excellentissima senhora Dona Maria de Noronha, Condeça da Calheta; teve em vinte de Abril de 1691. a qual dor a apertou de sorte, que a obrigou a mandar me chamar, sendo alta noite, porque entendeo que naõ poderia viver até o outro dia; e chegando eu à presença da dita senhora; a achei toda fria, sem pulfo, e quasi agonizante; appellei logo para o mais presentaneo remedio que tenho alcançado com a experiencia de muitos annos; e foy meterlhe os pés em hũa bacia de agua tão quente, que mal a podia sofrer, e em meya hora se tirou a dor taõ promptamente, que estando ainda com os pés dentro em o banho começou a dormir com tal descanso, e suavidade, como se estivesse na mais branda, e bem adereçada cama.

1. sEria eu reo de hū grande crime, e me pediria Deos estreita conta, se sabendo por innumeraveis experiẽcias a maravilhosa virtude, e presentanea efficacia que tem os pediluvios para soccorro de muitas enfermidades, passasse em silencio huma noticia de hum remedio, que sendo mui facil de fazer, he efficacissimo em obrar, jà em dores de ventre, ou de estomago, já em ancias do coraçaõ, já em suffocações da madre, e faltas de pulso, já em colicas convulsivas, e espasmodicas, já em dores de cabeça, já em dissolver o sangue grosso, e facilitar a circulação delle, já em outras mil offensas, ou ellas procedaõ de causa quente, ou fria, ou tenhaõ a sua origem de intemperança simplez, ou composta, ou sejaõ idiopathicas, ou sympathicas: e como este remedio sobre ler taõ facil, que a toda a hora do dia, ou da noite, e em qualquer casa rica, ou pobre, se possa fazer com a mesma brevidade, e he juntamente mui benigno, e seguro, daqui procede, que naõ só o estimo, e o use frequentissimamente; mas que he justo dallo a conhecer a todos, para que de hoje por diante não só os professores da Medicina, mas os pays de familias, e os que moraõ nos campos, e Aldeas aonde naõ ha Medicos, se possaõ aproveitar delle com grande confiança, pois lho inculca hum Medico, que no discurso de muitos annos o tem usado infinitas vezes nos casos referidos, e sempre com prosperos successos; hum dos quaes (que valerá por muitos pela grandeza da pessoa em quem succedeo) foy o que observei na excellentissima senhora Dona Catherina de Noronha, Condeça da Calheta; tinhase a dita senhora recolhido na sua cama com perfeitissima saude, e querendo pegar no somno, a assaltou repentinamente huma dor de estomago taõ insoportavel, que lhe fez recolher todo o calor ao coraçaõ, e entranhas, ficando toda fria, e desemparada de espiritos vitaes, e amortecida; e quanto as dores eraõ mayores, tanto mais crescia a frialdade, e as afficções do coraçaõ. Nesta angustia, e perturbaçaõ géral da casa, tudo eraõ clamores, e deprecações a Deos, e porque se persuadiraõ que as armas da morte hiaõ prevalecendo contra a vida, me chamáraõ pela meya noite, e como eu visse a dita senhora em taõ grande perigo, entendi que dores tão acerrimas, e desfalecimento tão repentino, procediaõ de grande causa, e que sem eu saber qual era a doença, e a causa della, seria impossivel applicar remedio que aproveitasse.

2. Assentei pois comigo, que a doença era huma Cardialgia, e que como esta tem differentes causas, pede differences remedios: huma das causas podem ser as lombrigas, que subindo ao estomagos, e picando o seu orificio, que he muito sensitivo, o enfurece, e rompe em desesperadas dores; cujo remedio será a hiera de Pachio, tomando huma ou duas vezes quatro escropulos della em fórma de pilulas; nem he menos efficaz remedio beber de quatro em quatro horas huma chicara de agua cozida com ortelãa, e losna: outra causa podem ser as phlegmas acidas, e humores mordazes conteudos na cavidade do estomago, que repentinamente se exaltáraõ com hum tal furor, e braveza, que não só produzem dores mortaes, mas provocaõ vomitos, e enjoos repetidos, no qual caso não convem parar os vomitos, nem applicar confortativos no estomago; mas sim a hiera sobredita, ou hum vomitorio de meya oitaya de gila de Theophrasto, ou duas onças de agua benedicta, usando depois disso dos remedios absorbentes, como saõ os aljofates, os coraes, os olhos dos caganguejos, e o que he melhor absorbente de todos, as minhas pilulas antacidas, cujas virtudes podem ver os curiosos na minha Polyanthea da segunda impressaõ no trat. 3 cap. 4. desde a folha 847. até 850. e se os vomitos forem tantos, e tão horrendos, que possaõ matar aos doentes, poderemos usar dos remedios antispasmodicos, como saõ a unha da graõ besta, os pòs da guteta, a agua de cerejas negras; ou dos narcoticos, como do laudana opiado: e se o humor que faz a Cardialgia for viscoso, ou tartareo, como massa asma, e mal fermentada, seraõ convenientissimos (depois de purgado) os remedios volatilizantes, como saõ os espiritos cornu cervi sucinado, os mille-pedes preparados, o esperma ceti. Outra causa podem ser os flatos, ou humores frios; o que conheceremos pelos, muitos arrotos, e rugidos de ventre, ou porque o doente comeo, ou bebeo algũas cousas frias, e ventosas; o seu remedio será beber huma chicara de agua cozida com macella, e ortelãa, e applicar sobre o estomago huma filhò de estopa remolhada em duas gemas de ovos batidas, e frita em partes iguaes de oleo des almecega, macella, e losna, polvorizado com alfazema, ou cominhos.

3. Finalmente, outras cousas me occorrèraõ donde podiaõ proceder as dores da illustrissima Condeça; mas como o aperto era excessivo, e as boticas (por ser alta noite ) estivessem fechadas, me vali de hum banho de agua quentissima cozida com alfazema, e alecrim; porque tinha lido em Boneto, e observado em muitos doentes meus, que os pediluvios, obraõ effeitos quasi milagrosos em mil accidẽtes do corpo humano; e fiado nestas experiencias, fiz preparar o banho, em que a sobredita senhora meteo os pés, e em espaço de meya hora aqueceo o corpo, tiràraõse as ancias, e as dores, e adelgaçouse o sangue, que pela frialdade estava como coalhado, e hia faltando a circulaçaõ, com evidente risco de lhe vir huma apoplexia, e foy Deos servido que por virtude dos ditos pediluvios se tirassem as dores, e dormisse o restante da noite com taõ grande sossego, como se tal queixa naõ ouvesse tido.

4. Outra cura semelhante a esta fiz em hum Fidalgo chamado Francisco Correa Baharem; o qual teve as mesmas dores de ventre, e estomago tão desmedidas, e extremosas, que temi se mortificasse todo o corpo; porque tenho observado que as dores demasiadamente excessivas, nisso vem a parar, como observei em hum criado do Doutor Joaõ Bernardes de Moraes, em hũa molher de hum mercador da rua Nova, em hum Frade da Trindade, e na mulher de Estevaõ soares; e porque estas pessoas tiveraõ dores acerrimas em diversas partes do corpo, se mortificàraõ em quarenta e oito horas, e morrerão. Demais das dores sobreditas, teve o doente pulsos imperceptiveis, e taõ grande perturbaçaõ no juizo, que nem se pode confessar, nem apertar a maõ ao confessor; e quando se naõ cuidava mais que do funeral ( porque já naõ avia esperanças da vida) lhe fiz cozer huma pouca de alfazema, e alecrim em seis canadas de vinho, e metendolhe os pés neste banho quentissimo por espaço de huma hora, obrou com taõ grande felicidade, que antes de se acabar o dito tempo, estando ainda com os pés dentro no banho, fallou, conheceo a todos, confessouse, e escapou da morte; e viveo por beneficio deste quasi milagroso remedio passante de cinco annos.

5. Advirta o Leytor duas cousas. A primeira, que os pediluvios, ou banhos dos pés se fazem de agua, ou de vinho sómente, ou se podem fazer misturandolhe algumas ervas que tenhão virtude para a doença, em cujo respeito se fazem: se forem para dor de colica, ou de estomago, se cozerá o vinho, ou agua com alfazema, macella, alecrim, e folhas de loureiro; se forem para dores da madre, ou para faltas de sangue mensal, ou dores de ventre, que no tal tempo costumaõ succeder às molheres, por ser o sangue taõ grosso, que não pòde transcolarse pelas veas, ou taõ acre, e mordaz, que as vellica, e convelle, fazendo dores acerrimas, se cozerá o vinho, ou agua com alfazema, macella, alecrim, folhas de loureiro, folhas de neveda, artemija, montãa, e poejos; se forem para dores, ou queixas da cabeça; se fará o banho do cozimento de alfazema, rosas, mangerona, betonica, segurelha, e salva.

6. A segunda advertencia he, que qualquer banho destes ha de durar ao menos meya hora, estando sempre taõ quente, que o doente mal o possa sofrer; e para esse fim se deve ir cevando de quando em quando com outra agua, ou vinho quentissimo; porque fiado na bondade de Deos, e na minha experiencia posso assegurar, que tomandose os ditos pediluvios do modo que digo, conseguiráõ melhorias taõ presentaneas, que se equivocaráõ com milagres, como tenho observadoem tantos casos, que seria necessario largo tempo para referillos, e muito papel para escrevellos.

7. Finalmente, se algum dia fucceder que as dores do estomago, ou fejão Cardialgicas, ou, outras quaesquer, se naõ vençam com os pediluvios, nem com os remedios acima apontados, podem dar ao doente hum copo de vinho branco, em que deitem de infusaõ duas oitavas de boa quinaquina, e observaráõ hum effeito maravilhoso, com tal condição que cada doze horas se repita o mesmo remedio; porque pela experiencia me consta, que a quinaquina fixa, a ebullição, e orgasmo dos humores, que fazem não só as sezões intermittentes, e outras muitas enfermidades, mas as dores de ventre, e estomago que procederem de humor colerico; como tambem cura as camaras, que de colera procederem.

OBsERVAÇAM LXXIX.

De huma dureza do baço taõ grande, que incapacitou a certo homem de servir o seu officio , e estando o doente desconfiado da vida, e o mal taõ arreigado, que queriaõ mandar ao enfermo para os ares naturaes, pondo mais nelles a esperança da vida, que em todos os remedios da Arte, lhe appliquei (depois de purgado oito vezes com as pilulas estrumosas que saõ segredo meu) huns pannos preparados com as escumas grossas de sabaõ, e foy o effeito destes remedios taõ feliciffimo, que no discurso de hum mes se desvaneceo a dureza, e ficou o doente com perfeitissima saude.

1. TAõ grande he a multidaõ de humores, que muitas vezes se ajũta nos nossos corpos, q̃ não cabendo todos nos lugares, e receptaculos, que a natureza destinou para isso, descarrega grande parte daquelles, que aviaõ de offender ao figado, baço, e estomago, nos lugares visinhos, principalmente no Pancreas, e Mesenterio, que saõ como emunctorios de todo o corpo, e progenitores de gravissimas doenças, por cuja causa chamaõ muitos Doutores ao Mesenterio, riqueza, e thesouro dos Medicos, porque dalli procedem as mais das enfermidades, cujas caras saõ as que daõ de comer aos professores da Medicina, como podèra confirmar com mil exemplos; baste por todos o que observei felizmente em casa do Excellentissimo senhor Marquez de Arronches, de quem sou Medico ha mais de trinta annos. Adoeceo em sua casa hũ criado em o mes de Abril de 1688. e sendo eu chamado para o curar, achei que tinha hűa grande dureza, e obstrucçaõ no baço, por cuja causa estava reduzido a hũa tal fraqueza, que naõ podia servir a seu senhor; e considerando eu qual seria a causa daquella dureza, e obstrucçao, achei que eraõ humores grossos, e tartareos procedidos ou de algũs erros commetidos nos máos alimentos, ou da falta de exercicio, porque a occupaçaõ do sobredito criado era estar sempre em casa; ou (o que tive por mais certo) de algũa má disposiçaõ das entranhas naturaes, que gérando grande copia de humores crus, e tartareos, e naõ podendo deitallos fóra pelas vias commuas, os deitou a próvida natureza para o baço; e como este seja raro, espongioso, e cheyo de glandulas, facilmente absorbèraõ estas aos taes humores, e com a demora que ahi tiveraõ, se foraõ engrossando, e endurecendo de maneira, que fizeraõ hum tumor duro, que nem tinha dor, nem sentia a compressaõ dos dedos; e como da obstrucção, ou dureza do mesenterio, do baço, do figado, ou de qualquer parte procedaõ infinitas doenças, que em tanto perseverão, em quanto as taes durezas, ou obstrucções se naõ tiraõ; por tanto puz todo o empenho em curar a obstrucçaõ, dando para isso tres dias successivos os seguintes xaropes. Tomem de passas sem graìnha huma onça, ameixas passadas vinte, avenca huma maõ cheya, tudo se coza em meya canada de agua, esta se reparta em tres partes iguaes, ajuntando a cada parte duas onças de xarope de borragens; acabados de tomar os ditos xaropes, purguei ao doente com quatro onças de xarope Rey, delatado em tres onças de cozimento cordeal, com duas oitavas de sene ; purgado que foy, lhe dei as seguintes tres apozemas. Tomem de passas sem graìnha huma onça, de entrecasta de páo de tamargueira duas oitavas, de cascas de raizes de almeiraõ, lingua de vacca, e de espargos, de cada cousa destas meya onça, de folhas de epatica, tragaria, douradinha, e avenca, de cada cousa deftas huma maõ chea, tudo se coza em panela de barro com dous quartilhos de agua commua, e a cada seis onças deste cozimento ajuntem onça e meya de xarope de Nicolao com oitava e meya dos trociscos de Fioravanto que eu preparo por minhas mãos. Acabadas de tomar estas tres apozemas, ordenei q̃ descancasse tres dias, e tornasse a tomar outras tres feitas do mesmo modo, seguindo nisto o conselho de Galeno, (1.) que manda continuar os remedios muitos dias quando a parte onde está a doença for muito distante, ou profunda; porque só deste modo se podem curar doenças rebeldes, e antigas.

2. Deposta com estas apozemas boa parte dos humores; e descansando o doente tres dias, lhe fiz tomar oito dias alternados as seguintes pilulas de Turbith mineral (q̃ he o mercurio precipitado com oleo de enxofre) seis grãos, formei huma pilula com huma migalha de confeiçaõ de jacintos; porque não ha palavras que bastem para louvar a estupenda virtude que este remedio tem, assim para adelgaçar a grossura, e viscosidade dos humores tartareos, viscosos, e glaciaes, como para evacuar todas as materias, que por estarem reconcentradas em lugares mui distances, naõ obedecem aos remedios vegeraveis, q̃ como saõ mais fracos, naõ chegaõ com toda a sua virtude aos aonde estaõ as doenças: o que não succede ao Turbith mineral, e aos remedios metallicos, que conservaõ toda a sua virtude até chegar aos lugares aonde está a enfermidade; porque o nosso calor não he taõ activo, nem taõ poderoso, que baste para rebater, e enfraquecer as suas virtudes; e por esta razão curão doenças, que os remedios ordinarios naõ pódem curar. Bem conhecèraõ Massaria, (2.) e Jaquino, (3.) quam necessario era que os remedios fossem efficazes para curar as doenças rebeldes, pois se queixàraõ dos Medicos, dizendo que por isso não curavão doenças grandes, porque se naõ atreviaõ a passar dos remedios pequenos. Naõ o fazia assim Joaõ Ingolstetero, (4.) que nos corpos cacochymos, nas sarnas contumazes, usava com felicissimo successo do seu Turbith mineral, se porque he remedio grande, e a quem o calor natural naõ póde vencer, nem levar debaixo.

3. Depois que entendi que o corpo estava bem evacuado, lhe dei vinte dias continuos, pela manhãa em jejum, caldos de frangaõ cozidos com raizes de grama, espargos, lingua de vacca, falsa das hortas, nos quaes desatava doze grãos de sal de aço, ordenandolhe que fizesse meya hora de exercicio. Finalmente mandei que por tempo de hum mes puzesse cada dia sobre a dureza do baço hum panno de linho preparado do modo seguinte. Ordenei que cortassem trinta pedaços de panno de linho do tamanho da dureza, e que os ensopassem em escumas bem grossas de agua de sabaõ, e que à sombra os tornassem a enxugar, repetindo esta diligencia nove vezes, e que entaõ puzessem cada dia hum panno destes sobre a dureza, ou tumor do baço, enfaixandose com huma toalha; porque esperava em Deos, que este remedio havia de desempenhar bem a minha esperança. Pontualmente executou o doente o meu conselho, e foy elle taõ felizmente succedido, que se tirou a inchaçaõ, e teve a saude que desejava.

4. Os que naõ tiverem paciencia para preparar os trinta pannos com as escumas bem grossas da agua do sabaõ, ou desconfiarem que o tal remedio faça o effeito defejado, por ser eu o seu Author, podem recorrer ao celebre unguento, que o Monteiro mòr dà por amor de Deos aos que lho pedem, porque he verdade constante, que o dito unguento obra effeitos maravilhosos nas durezas, e oppilações do baço; mas he necessario advertir aos que ouverem de usar do tal remedio tres cousas muito importantes, que faltaõ no roteiro impresso que se costuma dar naquella casa com o dito unguento. A primeira cousa he, que a agua de lingua de vacca em que o roteiro manda molhar o panno azul para por sobre o unguento, seja quente, e naõ fria, como alguns poderáõ cuidar, pois o roteiro o naõ fria, como alguns poderáõ cuidar, pois o roteiro o naõ adverte. A segunda cousa he, que este panno molhado na dita agua se deve espremer moderadamente de tal sorte, que nem se applique taõ ensopado que desconsole ao doente, ou esfrie a parte, nem taõ espremido que naõ tenha virtude; porque qualquer excesso destes será damnoso à saude; endurecerá mais o tumor e ficará a doença peyor que dantes.

5. A terceira advertencia he, que sem embargo que o roteiro diga que o unguento tem curado muitas doenças do baço dentro de tres, ou quatro dias, ao que não ponho duvida, se a dureza for pequena, ou de pouco tempo, mas se for grande; ou muito antiga, será necessario applicar o tal unguento, quarenta, ou cincoenta dias. Digo isto, por acudir pelo credito do sobredito unguento, porque algumas pessoas desconfiaõ delle, tanto que naõ conhecem melhoria dentro de tres, ou quatro dias; e naõ tem razãos; porque algumas durezas do baço saõ taõ empedernidas, e antigas, que necessitaõ de muita continuaçaõ dos remedios para se curarem; & porque fóra de Lisboa naõ se achará o unguento do Monteiro mòr, quero ensinar outro remedio, que se póde fazer em toda a parte, e obra effeitos maravilhosos por hũa virtude magnetica, e transplantatoria. Appliquem sobre o baço do doente hū baço de vacca quente como se tira do animal, e o deixem estar atado tempo de seis horas, e entaõ se pendure o baço na chaminè, e ao passo que o fumo, e quentura do fogo o for secando, se irà desfazendo a dureza que o doente tem no seu baço.

6. Bem sei que as pessoas, que (como corujas estaõ cegas na luz do meyo dia) reprovaràő este remedio, e como juizes injustos daráõ sentença contra elle, porque o naõ conhecem, devem advertir com Poterio, (5.) que quando as doenças saõ contumazes, e naõ obedecem aos remedios ordinarios, se haõ de buscar outros fóra daquelles, que andaõ commummente na pratica; porque muitas vezes tenho visto, que com remedios que parecem ridiculos, e cujas sympathias naõ alcançamos, se curaõ algumas doenças, que pelas regras commuas naõ podemos vencer: vejaõ os curiosos a minha Polyanthea da segunda impressaõ no cap. 10. da Transplantaçaõ das doenças, desde a folha 85. até 91.

OBsERVAÇAM LXXX.

De huma dor Nephritica taõ violenta, que no espaço de feis horas prostrou a hum homem robustissimo, e o chegou às portas da morte; neste aperto me chamàraõ, e vendo eu que nenhuma Medicina lhe aproveitàra, lhe dei tres onças de agua benedicta vigorada, entendo que só ella podia ser remedio a tanto mal; porèm como a natureza pela excessiva dor estivesse taõ fóra de si, que naõ obrasse cousa alguma com hum remedio taõ efficaz, meti ao doente em hum banho de agua tibia, naõ obstante ter dentro no corpo huma purga taõ poderosa, e valentona como he o antimonio; e foy o effeito do banho taõ feliz, que logo aplacàraõ as dores, e aplacadas ellas fez oito cursos, e alguns vomitos estando dentro na agua, e ficou saõ, como se fosse obra de milagre.

1. EU me persuado, (e com muita razaõ) que o Medico, que tem mais prudencia, excede com grande ventagem a todos os outros; porque vemos cada dia doēças acompanhadas de symptomas taõ differentes, e queixas taõ novas, que raras vezes as achamos escritas em os livros com os proprios sinaes, e circunstancias, e se acaso as achamos, nem por isso será licito applicar os mesmos remedios a todos, como naõ será acerto fazer çapatos a todos por huma mesma forma: porque assim como os bons Mi nistros naõ derrogão as leys; mas conforme os delitos, os delinquentes, e as circunstancias dos casos mudaõ o premio, que se deve à virtude, ou o castigo que se deve ao vicio, acrescentando-o, ou diminuindo-o; da mesma sorte o Medico prudente deve limitar, e diffinir as regras do curar conforme as circunstancias da idade, do sexo, do temperamento, da regiaõ, do costume, das forças, e symptomas: estes dictames costumo eu guardar pontualmente, como pela seguinte nova, e quiçà naõ ouvida Observaçaõ farei manifesto.

2. Lucas Rodrigues, fundidor de sinos, e morador aos Cubertos, sem q̃ fizesse erro, ou desordem no comer, ou beber, nem commettesse outro qualquer excesso, teve na madrugada de vinte e dous de Janeiro de 1697. humas dores de colica taõ vehementes, que o fizeraõ romper em taõ altos clamores, que presumio a visinhança que se lhe abrazavaõ as casas, ou lhe tinha succedido algū sinistro acontecimento. Para curar a este doente me chamaraõ, e ouvindo eu a informaçaõ, e conhecendo por ella, que o estomago nem tinha carga de humores, nem sentia pezo, ou dureza nelle, entendi, que semelhantes dores procediaõ, ou dos excrementos resecados dentro nos intestinos, ou de phlegmas viscosas; e acido-salinas pegadas nas suas paredes; e levado desta racional conjectura me persuadi, que nenhum remedio seria mais conveniente para abrandar as fezes, e adelgaçar as phlegmas, que deitarlhe duas, ou tres ajudas emollientes, preparadas do modo seguinte.

3. Tomem de alfavaca de cobra, de macella, ortigas mortas, ameixas, e uvas passadas, de cada cousa destas hũa mão chea, tudo se ponha a cozer com hum rim de vacca feito em talhadinhas, ou em falta delle, com hum frangaõ em huma canada de agua da fonte, até que se gaste a metade, e a este cozimento mandei ajuntar huma maõ chea de farelos de trigo, lavados primeiro em quatro aguas, e depois de darem huma leve fervura se coe este cozimento com forte expressaõ, e a cinco onças delle fiz ajuntar onça e meya de lambedor de violas, e huma onça de oleo violado, cinco oitavas de terebinthina de beta batida com hũa gema de ovo crua, seis oitavas de diatenicaõ, e hũa oitava de salgema; e naõ obstante que este clyster costuma obrar maravilhosos effeitos em semelhantes dores, foraõ eftas taõ obstinadas, que desprezando as diligencias da Arte, crescèraõ ao galarim; neste aperto me lembrou, que para semelhantes dores era excellentissimo remedio meter os pès em agua bem quente, porque com os taes pediluvios tinha eu curado muitas pessoas de dores de ventre, e de colicas commuas; mandei pois, que em seis canadas de agua se puzessem a cozer huma maõ chea de alfazema, e outra de macella, e que neste cozimento bem quente metesse os pès por tempo de meya hora, cevando de quando em quando a dita agua com outra bem quente, porque com a quentura actual se fortificasse a natureza, e se dissipassem os vapores nocivos, chamandose para baixo: tudo se fez com grande promptidaõ, e brevidade, e só as dores se obstinàraõ de maneira, que o doente entendeo que morria. Neste desalento, e prostraçaõ de animo o confortei muito, promettendolhe que o naõ avia de deixar em quanto naõ estivesse restituido à sua perfeita saude, assegurandolhe que antes de duas horas ficaria livre de taõ cruel tormento, se fizesse o q̃ eu mandasse. Deume por esta boa nova mil agradecimentos, promettendo que guardaria, e obedeceria pontualmente a tudo quanto eu lhe quizesse. Lembroume entaõ q̃ em toda a Arte naõ avia remedio mais prompto, seguro, e efficaz para curar a sobredita dor, como he o vomitorio, principalmente o de quintilio, pois naõ só os Medicos Chymicos, mas tambem os Galenicos lhe chamão tesouro desta cura; e assim lhe dei logo a beber tres onças de agua benedicta bem vigorada: mas estava a natureza taõ distrahida, e alheya de si por causa das vehementissimas dores, que nem sentio aballo, nem alivio algum com o dito vomitorio. Grande foy a desconfiança, e tristeza que o doente recebeo, vendo baldado o effeito de taõ maravilhoso medicamiento, e frustrada a promessa que eu lhe tinha feito, de que estaria saõ antes de duas horas.

4. Porèm ainda que o vi mui temeroso, e desanimado, o alentei novamente, dizendolhe que algũa traça se avia de dar à vehemencia das dores, porque quando eraõ taõ excessivas, naõ deixavaõ obrar aos remedios com tanta brevidade, e dependiaõ de tempo mais largo, e que conforme a isso deviamos esperar mais huma hora. Mas como o doente visse, que tambem este prazo se tinha acabado, sem que a agua benedicta fizesse effeito, nem sentisse alivio nas dores, recorreo só a Deos pedindo que lhe acudisse. Neste comenos me occorreraõ dous remedios, dos quaes se podia esperar toda a melhoria. O primeiro, foraõ as sangrias da vea d'Arca. O segundo, os banhos da agua morna: mas como as dores eraõ grandes, e cresciaõ cada vez com mais excesso, naõ davaõ lugar a que se fizessem as sangrias, nem com ellas podia melhorar o doente com a brevidade que o aperto pedia, e por esta razão obrigado da necessidade, vendo que hũ vomitorio taõ efficaz naõ fazia effeito, me resolvi (1.) a fazer o que a razão, e a caridade me dictavão, que era metello em banho de agua morna, sem embargo de estar antevendo, que se o successo naõ correspondesse ao desejo, aviaõ os praguentos de accusarme por homicida, dizendo, que em tempo taõ frio como he Janeiro metèra em banho de agua a hum doente, tendo huma purga de antimonio dentro no corpo; e naõ obstante saber muito bem, como dizem muitos, (2.) que naõ ha acçaõ taõ boa, nem obra taõ justificada, que a desaffeiçaõ naõ converta em veneno, comtudo como a razaõ, e o sofrimento saõ dous valentões mui poderosos, quem os tiver da sua parte, naõ se perturba com os ludibrios da maldade, e por isso animosamente usei do banho, porque em casos semelhantes tinha feito com elles maravilhosas curas. Nem me sahio baldada a esperança; porque antes de estar ineya hora na agua, se desvanecèraõ as dores a modo de milagre, e recreada a natureza, e livre do tormento, começou o vomitorio a fazer o seu effeito, e a obrar taõ copiosamente por huma, e outra via, que ficou o doente saõ no mesmo dia, com grande gosto meu, gloria da Arte, e confusaõ daquelles, que julgàraõ a minha resoluçaõ por temeraria.

5. Desta Observaçaõ aprendaõ os Medicos modernos, que quando as dores, quaesquer que ellas sejaõ, forem excessivas, ainda que sejaõ symptomaticas, se haõ de curar primeiro que a principal doença, porque algumas vezes ha symptomas taõ urgentes, e perigos que arrastaõ apoz si toda a intençaõ do Medico: assim o diz Valesio (3.) pelas seguintes palavras: se a dor que proceder de huma fluxaõ, for causa de se augmentar essa fluxaõ, por nenhũ caminho se aplacará melhor, que aplacando a dor; principalmente se as forças naõ puderem sofrer grandes evacuações, porque podendo as tolerar, por ellas se tirarà a fluxaõ, e com ella a doença, e a dor; mas se as forças forem taõ poucas, que naõ possamos fazer as evacuações que eraõ convenientes, contentemonos com mitigar as dores.

6. semelhante cura a esta fiz no Principe de Ligni, o qual tendo outra dor Nephritica vehementissima, em que foy necessario purgallo com humas pilulas de calomelanos, e receando eu que naõ purgasse com ellas, por estar a natureza divertida com a grandissima dor que o affligia, misturei com as taes pilulas tres grãos de laudano opiado, & quatro de castoreo, que como diz Baglivio; (4.) para q̃ mediante a sua virtude narcotica, anodyna, e estupefactiva se aplacasse a dor, e depois de aplacada fizesse o remedio purgativo o seu effeito; e foy o meu discurso tambem succedido, que tomando a sobredita purga se tirou logo a dor, e depois della tirada teve lugar o remedio purgativo para fazer o effeito desejado, purgando taõ felizmente, que no mesmo dia ficou saõ.

7. No Convento do salvador curei de outra dor de colica pictonica a hũa Religiosa, sobrinha de Luis de Bem-salinas, dandolhe, depois de mil remedios baldados, trinta grãos de calomelanos, misturados com tres de laudano opiado, pertendendo mitigar as dores com o remedio narcotico, e purgar os humores com o calomelanos solutivo; e foy o successo taõ feliz, que me deu grande credito.

8. A vista destes casos taõ bem sucedidos, já naõ teraõ desculpa os Medicos, que naõ ousaõ a dar o laudano opiado, já separado, já misturado com os purgativos; porque a experiencia mostra, que com elle fazem os Medicos doutos curas, que parecem milagrosas: vejaõ o que diz Poterio (5.) sobre os remedios opiados; vejaõ a Baglivio (6.) sobre a grande virtude, que tem a macella para as dores de colica de qualquer qualidade que seja .

OBsERVAÇAM LXXXI.

De huma purgaçaõ da madre, que certa mulher padeceo trinta meses, deitando grande quantidade de humores já verdes, já amarellos, já ensangoentados; por cuja causa emmagreceo de maneira, que parecia imagem da morte; e estando deixada ao desemparo fuy chamado, e no espaço de oitenta dias a curei com grande credito da Arte, e admiraçaõ dos que a tinhaõ visto em taõ miseravel estado.

1. DIsse bem Hippocrates, (1.) quando disse que todas as doenças das mulheres procediaõ da madre: nem he fóra da razaõ entendello assim, pois consta que ella tem grande parentesco, e communicaçaõ com todas as partes do seu corpo: com o cerebro se communica pelos nervos, e membranas da espinal medulla, e daqui procedem algumas vezes as dores na parte dianteira, e trazeira da cabeça: com o coração se communica pelas arterias espermaticas, e hypogastricas, e daqui procedem as palpitações do coraçaõ, as mordicações ; e desfalecimentos da boca do estomago, os desmayos, os syncopes, as anxiedades, e as faltas dos pulsos: com o bofe, e com o diaphragma se communica mediante certos vapores perversos, que commettendo as ditas partes, as convellem, e causaõ huns affectos espasmodicos, donde resultaõ humas vezes faltas de respiraçaõ, e suffocações perigosissimas; outras vezes accidentes uterinos, e epilepticos, como tenho visto algumas vezes, e os curei com remedios antispasmodicos, e antipilepticos, como saõ a unha da graõ besta, os pòs de guteta, o cinabrio nativo, a agua das cereijas negras, e outros especificos semelhantes: com os peitos se communica, e daqui procedem os caroços, as durezas, e os tumores das suas glandulas: com o figado se communica, e daqui procedem as hydropesias, e as cachexias: com os rins, e veas lumbares se communica, e daqui procede que algumas mulheres casadas, e donzellas tem muitas vezes grandes dores de costas, e de barriga, principalmente nos tempos da conjunçaõ mensal: finalmente com a bexiga, e intestino recto se communica, porque inflammandose ella se seguem logo puxos, ardores, e destillicidios de ourina.

2. Esta doutrina que he de muitos Authores insignes, naõ só a sabem, e aprendem todos na escola da experiencia; mas tambem eu a posso confirmar como testemunha de vista pela seguinte Observaçaõ.

3. Certa mulher, que depois de muitos annos de casada viuvou, e desejando servir a Deos com mayor perfeiçaõ, e sossego de espirito, se meteo Religiosa em certo Convento, aonde ou pelas mortificações, e penitencias que fez, ou por algũas reliquias de humor galligo, que contrahio de seu marido, começou a queixarse de huma purgaçaõ uterina de humores variegados, e muito differentes na cor, e na substancia; da qual purgaçaõ posto naõ sentisse molestia nos primeiros meses de clausura, andando o tempo, e cor sendo os annos, veyo a cahir em huma taõ grande debilidade de forças, e magreza de corpo, que se achoa obrigada a sugeitarse aos preceitos dos Medicos, os quaes uniformemente concordàraõ, que taõ grande, e antiga purgaçaõ naõ podia proceder de outra causa, senaõ da faculdade expultrix da madre irritada por causa dos humores peccantes em qualidade, ou quantidade, e que estes corriaõ em tanta abundancia, porque se géravaõ continuamente em todo o corpo, e por esta razaõ resolvèraõ, que se lhe applicasse o seguinte remedio purgativo, que para alimpar a madre, e o corpo todo he maravilhoso.

4. Tomem de salsa parrilha fendida, e machuca da meya onça, de polipodio de carvalho machucado onça e meya, de raizes de helleboro negro tres oitavas, de folhas de sene de Lapata seis oitavas, de semente de carthamo machucado onça e meya, de conserva Persica cinco onças, ameixas sem caroço numero vinte, e de erva doce huma oitava; todas estas cousas se deitem de infusaõ em panela de barro por tempo de dous dias com cinco quartilhos de agua ordinaria, alterada com hum escropulo de oleo de enxofre, e passados os ditos dous dias se lhe dé huma leve fervura, e coandose com forte expressaõ, ordenàraõ se desse à sobredita Religiosa todos os dias em jejum cinco onças desta bebida; porém como a doença naõ aliviasse coufaalguma com este remedioapplicado seis dias, sem embargo de purgar com elle com muita sua vida de, antes cada vez se fosse angmentando, e lançando mayor quantidade de humores, se desanimou a enferma de tal modo, que chamou outros Medicos; esperando ter melhor fortuna; examinaraõ elles a causa da enfermidade, e entendèraõ que a resistencia, que avia feito às diligencias dos primeiros Medicos, era porque o mal tinha raizes mais fundas, e que estas se naõ poderiaõ arrancar sem os alexipharmacos antivenereos mais efficazes, e assim lhe receitàraõ os xaropes magistraes de Dom Fernando, para tomar oito vezes em dias alternados, tomando de cada vez duas onças desatadas em meyo quartilho de caldo de frangaõ, tendo por infallivel que com taõ decantado medicamento levavaõ a vitoria conseguida; mas pelo pouco alivio, que com os xaropes conseguio, conheceraõ que naõ se póde fazer confiança nas cousas humanas: confusos, e admirados ficàraõ os Medicos, vendo que as suas diligencias naõ aproveitàraõ.

5. Nesta afflicçaõ fuy chamado, e pondome a discorrer qual seria a causa de hũa purgaçaõ taõ continuada, e rebelde, que naõ obedeceo aos remedios taõ especificos, e bem ordenados ; me occorreo huma duvida, e foy, se por ventura os Medicos, que começáraõ a fazer esta cura, cõmetteraõ aquelle erro, (em q̃ muitos cahem) evacuando sómente os humores peccantes, sem se empenlharem em prohibir, q̃ não se gerassem outros; mas como de varões tão doutos, quaes erão os que tinhão assistido na cura, não se podia presumir que ouvesse tal descuido em hum negocio taõ importante, como he a vida de hum doente, depuz este cuidado; e vim a entender que a madre pela duraçaõ da queixa tinha adquirido hum temperamento habitual taõ ocioso, e depravado, que convertia em materias venenosas, e eterogeneas aos bons, e alimenticios humores, de que ella se avia de sustentar; assentei, seguindo o conselho de Hippocrates, (2.) que para curar ao dito fluxo, era necessario revellir, e desviar os humores da madre, e para isso lhe dei em dous dias successivos tres onças de agua benedicta vigorada, e em outros dous dias interpolados outras tres onças; porque não ha palavras que bastem para encarecer a grande virtude que tem este remedio, naõ só para curar os fluxos uterinos brancos, e de outra qualquer cor, e qualidade, mas tambem para os fuxos de sangue mensal, quando saõ demasiados, como me consta por repetidas experiencias que tenho feito em casos semelhantes com felicissima fortuna. Nem esta minha resoluçaõ careceo de padrinhos de grande authoridade, entre os quaes naõ merece o ultimo lugar o doutissimo Mercado, (3.) o qual diz que elle vira a muitas mulheres, que padecendo esta doença, se curàraõ com os vomitorios repetidas vezes tomados, porque com elles se faz huma diversaõ, e evacuaçaõ dos humores, para que naõ corraõ para a madre.

6. Descansando depois dos vomitorios quatro dias, lhe receitei as pilulas seguintes, das quaes posso affirmar que saõ a clava de Hercules, e medicamento verdadeiramente policresto, e de muitas, e maravilhosas virtudes, o qual se prepara do modo seguinte. Tomai de Turbith mineral, que he o mesmo que de azougue precipitado, ou preparado com oleo de enxofre campanado, hum escropulo, de cremor de tartaro legitimo duas oitavas, de azevre succotrino quatro escropulos, de trociscos de Alandal subtilissimamente polvorizados hum escropulo, de flor de nòz noscada, ou em falta della, de noz noscada quinze grãos, misturemse todas estas cousas muito bem com confeiçaõ de Jacinthos, e se faça huma massa, da qual se formem pilulas pequenas, e se repartaõ em seis partes iguaes, para se tomarem de quatro em quatro dias huma vez.

7. Acabados que foraõ os seis dias das pilulas, determinei naõ me afastar das seguintes tres indicações. A primeira, moderar a agua que bebesse, e preparalla appropriada para a doença. A segunda, abrir os póros cutaneos para dirivar, e chamar para a superficie do corpo os humores, que correm para a madre. A terceira, adoçar, e fixar a acrimonia das materias salinas, e corrosivas, para que naõ estimulem, nem offendam o utero. Ordeneilhe pois, que a agua para beber fosse cozida do modo seguinte.

8. Tomai de lasquinhas de pào de aroeira duas oitavas, deitemse por vinte e quatro horas de infusaõ em hũa panela de barro com quatro canadas de agua ordinaria, e entaõ se cozaõ por tempo de huma hora, e depois que o dito cozimento estiver frio se coe, e com elle se misture huma onça das minhas pilulas Antifebriles subtilissimamente polvorizadas, e duas oitavas de pò subtilissimo das cascas das avelans; e desta agua bem mexida, e revolvida, ordenei que bebesse a doente, mas com moderação, não usando de outra por tempo de quatro meses.

9. Para abrir os póros fechados, e divertir os humores para a superficie do corpo, ordenei que se esfregasse todo com hũ panno aspero molhado na agua seguinte. Tomai de agua ordinaria dous quartillos, de bom mel outros dous, tudo junto se deite em huma panela com huma onça de salitre polvorizado, e dandolhe huma leve fervura se guarde esta agua, para com ella quente se esfregar muito bem o corpo todas as noites antes de cear. Finalmente para adoçar, e fixar a acrimonia dos humores peccantes, ordenei que por espaço de quarenta dias continuos usasse do seguinte remedio absorbente alcalico, para que absorbidos os azedumes, e dulcificados os corrodentes, se enxugassem as superfluas humidades, se confortasse a madre, e se conseguisse a saude desejada.

10. O remedio se preparou na forma seguinte. Tomem de crocus martis, preparado em corrosivo por mãos de bom artifice, vinte oitavas, de diarrhodaõ Abbade, de osso de veado preparado, e de coral bem alcoolizado, de cada cousa destas seis oitavas, tudo bẽ misturado com o que for necessario de terebinthina de beta se faça massa, e della se formem pilulas de mediana grossura, e se repartaõ para tomar os sobreditos quarenta dias em jejum, fazendo sobre ellas exercicio moderado por tempo de huma hora.

11. Com este remedio curei naõ só a esta mulher do fluxo uterino, mas a outras muitas, e o que mais he, curei até fluxos de almorreimas, a que nenhum remedio tinha aproveitado .

12. Outros fluxos, e purgações da madre inveterados curei, dando (depois de varios vomitorios antimoniaes) a beber por tempo de dous meses a agua seguinte. Em quatro canadas de agua da fonte mandei cozer huma pinha verde machucada, ajuntando a sobredita agua duas oitavas de pò de pedra hume crua, aconselhando que não bebessem outra em todo o tempo da cura; & se acontecer que todos os remedios sobreditos não aproveitem, recorrão aos meus castellinhos de estancar sangue, tomando-os duas vezes no dia em quantidade de hũa oitava para cada vez, misturados com hũa onça de xarope de murrinhos, bebendolhe em cima cinco onças de agua de tanchagem, fervida com hum escropulo de limadura de pào santo das antilhas, da maravilhosa virtude que tem o meu segredo de estancar sangue da madre, e de outras partes, vejaõ os curiosos a minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 3. cap. 4. da folha 853. até fol. 856.

13. Finalmente se o fluxo for taõ rebelde que a nenhum destes remedios queira obedecer, molhem hum panno na dica purgaçaõ, e o pendurem no fumo da chaminè, porque ao passo que o panno se for secando, se irá suspendendo o fluxo; ou molhem o miolo de hum paõ na dita purgaçaõ, e a dem a comer a huma porca parida, ou a huma cadela, e se transplantará a purgaçaõ na dita porca, ou cadela. Nem pareça que este conselho he livremente dito; porque demais de que gravissimos Authores (4.) certificaõ com muitas experiencias aver transplantaçaõ de doenças, eu o tenho tambem experimentado. Vejaõ os curiosos a minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 10. fol. 85. até fol. 91. aonde acharáõ muitos exemplos abonadores desta verdade.

14. Algũs Authores da mayor grandeza (5.) aconselhão o uso dos remedios que divertem as purgações uterinas pela via das ourinas, dando para isso a beber agua cozida com huma maõ cheya de erva cerfolio, e cascas de raiz de aipo: eu louvo o conselho, com tal condiçaõ que se applique depois do corpo bem evacuado.

15. Os banhos das Caldas de pedra hume, ou sejaõ naturaes, ou artificiaes, saõ mui louvados para confortar a madre, e desecar os fluxos uterinos. Os que naõ tiverem posses para ir às Caldas, podem depois de bem purgados pòr todos os dias sobre a barriga, e regiaõ das costas hum panno ensopado em vinho tinto, cozido com pò subtilissimo de escorias de ferro, e pedra hume.

Observaçam LXXXII

De humas alporcas, que cercavaõ toda a garganta de hum menino desde os primeiros meses de seu nascimento, & sem embrgo de que até a idade de oito anos lhe fizeraõ quantos remedios inventou o engenho dos homens, naõ foraõ bastantes para curallo; & tendo seus pays noticias que eu preparava certos segredo com que curava o dito mal, me buscàraõ, & soy Deuos servido que no discurso de dous meses o livrei de semelhante doença com grande credito da Arte, & gosto meu.

Como seja impossivel curar alguma doença sem a conhecer, & a causa donde procede; digo que os tumores duros, & quasiscirrhoso que humas vezes vemos na garganta, outras vezes os vemos nas partes glandulosas dos sovacos, das verilhas, das curvas, dos peitos, & de todo o mesenterio, se chamaõ alporcas: estas se dividem em benignas, & em malignas: as benignas saõ aquellas, que naõ tem dor, nem inflammaçaõ, nem estaõ metidas em bolsos, ou folliculo, & saõ mais faceis de curar: as malignas saõ aquellas que tem dor, tem inflammaçaõ, & estaõ metidas em bolsinhos, ou folliculo, & estas saõ difficultosissimas de vencer.

A causa material desta enfermidade saõ as phlegmas, as quaes, quando se lhes ajunta grande quantidade de succos azedos, se engrossaõ, & coalhaõ do mesmo modo que o leite se coalha, & engrossa com o vinagre, & ficando as taes flegmas coalhadas, & grossas não podem circularse, & por esta razão detidas,& represadas dentro das glandulas, crescem cada vez mais, & fazem os tumores, ou alporcas que vemos.

são pois as alporcas huma doença prolongada, nojenta, difficultosa de curar, & mais propria dos meninos, que dos homens; & a razão he; porque os meninos comem a cada passo sem guardar regras, nem ordem comer, & por isso geraõ muitas cruezas capazes de se fazer dellas esta doença, & sobre tudo saõ os membros dos meninos mais raros, & mais capazes de receber, o que a natureza descarrega nelles; o que não succede taõ facilmente nos homens, que comem com melhor regra, & tem os póros mais densos, & capazes de resistir aos insultos das enfermidades.

Muito tem escrito os Authores sobre as causas de que procedem as alporcas, provera a Deos, que tivessem posto o mesmo cuidado sobre inquirir, & examinar algum remedio certo, com que se curassem, (pois isso he o que os doentes desejão, & o de que necessitão; mas porque alguns Medicos se disvelaõ mais para bem argumentar, que para bem curar, daqui procede que muitas enfermidades, que podiaõ ter remedio, estão postas no rol das incuraveis; & se algum Medico movido da curiosidade, ou do desejo de valer aos enfermos se emprenha em saber preparar algũs medicamentos mais eficazes para vender estas, ou outras doenças difficultosas, (ò Deos eterno!) quantos precipícios lhe maquinaõ, & com quantas injurias o offendem! huns lhe chamaõ mezinheiro, outros chymico, & outros dizem delle que os remedios que prepara, naõ he por zelo da saude dos próximos, nem por credito da Arte, mas pelo interesse de os vender, & sem remorderlhes a consciencia, desacreditaõ ao author, & aos taes remedios, sem embargo de lhes constar, & de terem visto os efeitos maravilhosos que fazem; mas já s. Optato se queixava de aver entre oshomens o vicio da maledicencia.

Esstimàra eu muito, que os desprezadores dos medicamentos singulares me dissessem, que proveito tirão os doentes de que o Medico saiba se as alporcas, & as estrumas differem entre si, ou se as alporcas saõ doença in depravata figura, ou em via, ou se saõ doença, ou saõ symptoma; se o saber o Medico estas siligranarias basta para curar, doume por convencido; mas eu vejo que naõ basta, pois consta que muitas pessoas, que padecem esta enfermidade, se entregàraõ nas mãos de Medicos grandes especulativos, & que depois de muitos anos de cura, tiràraõ em lugar da saude grandes dispendios, & trabalho, & que entregandose a Medicos que sabiaõ remedios especificos, em pouco tempo, & a pouco custo se livraraõ do mal que padeciaõ.

5. Esta he a total razão, porque desde que comecei a ser Medico, me desvelei por saber preparar remedios se curão os enfermos, & a Medicina se desquita das injurias, & pouca estimaçaõ que hoje se faz della, chamandolhe Arte escusada, falsa, mentirosa, & que não he outra cousa mais que huma quimera, & estrategema para roubar os homens; o que he falsissimo, & injustamente proferido, pois experimentamos que por meyo dos remedios efficazes fazem os Medicos curas prodigiosas.

6. Em confirmação desta verdade, quero referir o que observei em casa de silvestre de Arvelos morador a Valverde; nasceo a este homem hum filho, & a poucos meses de idade lhe apparecèrão varios caroços, & tumores na circunferencia da garganta: sentio o pay amargamente ver ao innocente menino com tão terrivel enfermidade, & com o desejo de o livrar della, naõ ficou Cirurgiaõ, nem estrangeiro, nem velha mezinheira, nem viandante, ou embusteiro, a quem naõ chamasse para curar ao dito filho: oito annos gastàrão todos elles em applicar remédios, que foraõ mais no numero, doque eraõ os dias que o enfermo tinha de idade; mas como o tempo lhe mostrasse que nada aproveitàraõ as suas diligencias, me consultou no mes de septembro de 1668. & foy Deos servido que logrou bem a sua diligencia, porque dentro de dous meses o curei tão perfeitamente, que até o presente dia não tornou a padecer a sobredita enfermidade & saõ passados trinta & oito annos, & vive ainda com perfeita saude.

7. Comecei pois a curar o dito menino, não com sangrias, ou purgas costumadas, nem com ajudas, ou sanguisugas, nem com ventosas sarjadas, nem com fontes, ou outros semelhantes tormentos, mas com varios remedios especificos, que até este dia não quiz communicar a alguem, mas em serviço do bem commum os quero ensinar agora.

8. O primeiro remedio foy o vinho emetico tomado tres vezes em dias alternados, dando para cada vez onça & meya.

9. Duas razões tive para usar deste vomitorio, mais que de outro qualquer remedio; a primeira foy, o saber que o estomago; & o mesenterio, saõ as fontes donde esta doença procede pelos muitos humores crassos, & feculentos que nelles se ajuntão; a segunda foy, o ter lido em gravissimos Authores, (2.) q quando as alporcas apparecem na garganta ; ou em outras partes do corpo, he porque já naõ cabem no mesenterio; & como esta parte seja profunda, nenhum remedio tão efficazmente podia arrancar os humores que nele estão arreigados, como o vinho emetico, & estribado nestes fundamentos, me revolvi a dallo tantas vezes, & com elle evacuou tanta quantidade de humores por ambas as vias, que entendi tinha feito huma grande parte da cura. Descansou entaõ o seguinte electuario, que he mui especifico para esta doença, & se prepara do modo seguinte.

10. Tomai de mechoacaõ escolhido onça & meya, de Turbith branco hua onça, de gingibre tres oitavas, todas estas cousas se façaõ em pò subtil, & se misturem com o que for necessario de mel de enxame novo, ordenando que duas vezes na semana dessem ao doente oitava & meya deste electuario, & que em quanto durasse o achaque, bebesse agua cozida do modo seguinte. Em huma panela de barro deitem duas canadas & meya de agua da fonte, com hua onça de raiz de vincetoxico, ou em falta della raiz de soldanella, & se deixe cozer até que fiquem nove quartilhos, & desta agua beberá, porque qualquer destas raizes tem admiravel virtude de adelgaçar, & descoalhar os humores viscosos, & enqueijados, deitando por curso, & ourina os humores sorosos, & lymphaticos, que por estarem estagnados, & incrassados nos vasos pancreaticos, & grandulosos, & faltos de circulaçaõ, saõ causa das alporcas: & porque me naõ fiei só dos remedios interiores, appliquei sobre as durezas, & caroços o seguinte ungento, que para dissolver, & descoalhar os humores, que fazem as alporcas, tem grandissima propriedade, & se faz do modo seguinte.

11. Tomem de diaquilaõ iriado, de goma amoniaca, & de galbano, de cada cousa destas meya onça, de pòs de flor barbasco meya onça, de saccharum saturni duas oitavas, tudo se misture com hum pouco de oleo de nozes fervido com hua oitava de flores de enxofre, até que o oleo se faça vermelho, & desta massa se faça emplastro para trazer no lugar queixoso. Mas como as alporcas eraõ de oito annos, foraõ mais poderosas que o remedio, sem embargo de ter feito grandes proveitos em casos semelhantes. Foime entaõ preciso appellar para os mayores dous medicamentos, que com o meu estudo, & experiencia tenho alcançado O primeiro foraõ as minhas pilulas estrumosas, que lhe fiz tomar doze vezes em dias alternados, em quantidade de quatro esproculos cada vez: de cujas admiraveis virtudes se podem certificar os curiosos, vendo a Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 4. fol. 857. do num. 70. até 73. O segundo remedio foy o emplastro segunte, q em desfazer scirrhos, durezas, & alporcas, excede com ventagem infinita a todos os remedios exteriores, & se faz deste modo.

12. Tomem de raizes de norça, de pepino de saõ Gregório, & de lirio, de cada cousa destas huma onça, tudo se coza com partes iguaes de vinho branco, & vinagre, pizese esta massa, & se coe por cedaço, ajuntandolhe de myrrha, incenso, almecega, açafraõ, & de aristoloquia redonda, de cada cousa destas oitava & meya, de flor de macella, coroa de Rey, & de barbasco, de cada cousa desta meya maõ chea, de opoponaco, fagapeno ; amoniaco, bdelio, & galbano preparados em agua ardente, de cada cousa destas tres oitavas, de euforbio cinco oitavas, de semente de estaphisagaria duas oitavas & meya, de azougue amortecido com saliva de homem duas onças, de oleo de ovos, de lirios, & de hyssope humido, de cada cousa destas cinco oitavas, de enxundia de pato, de adem, de porco, de tutano, de perna de vacca, de cada cousa destas huma onça, de mucilagens, de semente de linho, de alforvas, & de malvaico, de cada cousa destas huma onça, misturemse, & com cera bella, & terebinthina se faça emplastro, que tem huma virtude quase divina.

13. Finalmente curei a muitos alporquentos, só com os purgar duas vezes, & darlhe vinte vezes as minhas pilulas estrumosas em dias alternados, dando para cada vez quatro escropulos, & fazendolhe trazer ao pescoço hum acolchoado, a modo de hum colarinho, de largura de cinco dedos, estofado de flor de barbasco, o qual trará sempre de dia, & de noite; & sem mais farragem, nem multidaõ de remedios tiveraõ a saude que desejavaõ.

14. As condições com que as minhas pupilas estrumosas se haõ de tomar, & o regimento que se he de ter com ellas, & outras particulares circunstancias para lograr bem o intento da cura, naõ escrevo aqui, porque minha Polyanthea da segunda impressaõ digo tudo com muita clareza, aonde os curiosos o poderàõ ler no trat. 3. cap. 4. fol. 857. num. 70. 71. & 72.

OBsERVAÇAM LXXXIII.

De outras alporcas que se naõ puderaõ curar em onze annos, s6 com as minhas pilulas Antistrumaticas se venceraõ.

Difficultosamente se achará no mundo pessoa alguma, que logre saude taõ perfeita que viva sem molestia, ou enfermidade; vemos a huns yrannizados com dores; vemos a outros my hados com febres; vemos a outros lançando sangue pela boca, & a vida com elle; a outros vemos ardendo em Vesuvios de fogo; estes se queixão de gotta, outros de pedra, aquelles de afthma huns de zunimento de ouvidos, outros de ardores de ourina; finalmente vemos a outros consumidos com tanta variedade de doenças, que justamete podemos duvidar se para elles he mãy, ou se ho madrasta a natureza.

Hum alfayate natural, & morador na Villa da Azinhaga, padeceo por tempo de onze annos huns tumores, & caroços em todo o pescoço taõ duros, & obstinados, que não ouve remedio que não fizesse, nem trabalho a õ não se sugeitasse para curallos. Mas vendo o pobre homem que a doença crescia, & que as medicinas se applicavão sem fruto, determinou passar a França, esperando achar remedio na milagrosa bençaõ daquelle Monarca; para este fim deixou a mulher, os filhos, os parentes, & a mesma patria, & partio para Lisboa a contratar com hum Piloto Francez que o levasse a Franca; & como casualmente ouvisse dizer que eu tinha hum especial remedio, com que tinha curado semelhantes doenças, mudou de parecer, & não quiz proseguir a viagem sem fallar comigo, & pedirme encarecidamente quizesse compadecerme delle, & curallo da efermidade que tinha: & como a obrigaçaõ de hum homem catholico he fazer bem a todos, pois, como diz Cicero, creou Deos aos homens para que huns soccorraõ aos outros; tomei por minha conta fazer por sua saude tudo o que coubesse na esfera do pedir humano, & com semblante agradavel lhe disse, que eu tinha (para a sua doença) hum segredo de que fiava tanto, que esperava lograr bem o meu trabalho, se elle observasse os meus preceitos. Prometteome que se naõ apartaria do que eu lhe ordenasse grossura de hum cabello. Com esta segurança entrei a curallo, & porque me pareceo que naõ bastava fó conhecer que os tumores duros, indolentes, & quasi scirrhosos do pescoço, dos sovacos, das verilhas, do mesenterio, & de outras partes do nosso corpo eraõ alporeas; mas que tambem era necessario saber q a causa material dellas era a phlegma, & humor lymphatico reteudo, & reprezado nas mesmas glandulas, chamadas salivaes, & lymphaticas, por estar impedida a circulação, & transcolaçaõ desses mesmos humores. E se alguem perguntar porque causa se naõ circula a lympha, ou porque engrossa de tal forte nas glandulas, que as faz mayores, & mais duras, do que costumaõ ser naturalmente; responderei que isto procede de se misturar algum humor azedo, ou austero com a lympha, & humores sorosos, & por isso os coalha, & retem, & dà occasiaõ a esta doença, do mesmo modo que o vinagre misturado com o leite o coalha, & engrossa, & he a causa de se fazerem os queijos. Isto assim presupposto, julguei que para curar as taes alporcas era necessario primeiro adelgaçar, & inicindir os humores, abrandar as durezas, & evacuar as materias, & para conseguir estes effeitos mandei fazer os seguintes xaropes.

Tomem de betonica, de avenca, & de marroyos de cada cousa destas huma mão cheya, de cabeças de hyssopo huma oitava, passas sem caroço huma onça; silipodio de carvalho bem machucado dez oitavas, tudo se coza muito bem em panela de barro com seis quartilhos de agua commua, & a quatro onças deste cozimento ajuntai de xarope bizantino, & de mel rosado coado, de cada cousa destas huma onça, de pó do gengibre quatro grãos, misturese tudo, & tomem este xarope por quatro dias pela manhãa em jejum, & à noite tres horas antes de cear. Depois q tive os humores bem preparados com os sobreditos xaropes, purguei ao doente no modo seguinte. Tomem do sobredito cozimento cinco onças, & nellas se infudaõ duas oitavas de folhas de sene, huma oitava de agarico trocifcado , dous escropulos de Turbith, seis grãos de gingibre, & seis de salgema; & a este cozimento coado se ajuntem tres onças de xarope Rey, & passados dous dias repeti a mesma bebida, & descansando entaõ quatro dias, ordenei tomasse a seguinte massa duas vezes na somana. Tomem de Turbith escolhido duas oitavas, de hermodactiles brancos oitava & meya, de folhas de marroyos meya onça, de folhas de fene tres oitavas, de gingibre hum eseropulo, tudo se faça em pò fubtil, & se misture com o que for necessario de terebinthina de beta, & entaõ ajuntai de diagridio preparado huma oitava, & quando quiz usar deste remedio, tomei huma oitava desta massa feita em pilulas, & depois que as repeti as vezes necessarias, fiz descansar o doente oito dias, & dandolhe depois delles quinze vezes as minhas pilulas estrumosas em dias alternados, & em quantidade de quatro escropulos por cada vez, reconheceo com ellas taõ consideravel melhoria, que entendeo feriaõ escusados outros remedios, mas porque avia ainda alguma grossura nos caroços, lhe fiz tomar sobre elles os bafos de vinagre forte, em que mandei apagar duas pedras perites feitas em braza, (em falta das taes pedras, podem usar de pederneiras) cobrindo a boca da panela com hum funil ajustado, para que pelo cano delle tocasse todo o bafo nos lugares em que avia alguma grossura; porque he indizivel a efficacia que tem os bafos desta pedra para dissolver os tumores por mais duros, & scirrhosos que fejaõ; & depois de repetir estes bafos muitas vezes no dia, puz sobre a parte da queixa o seguinte remedio. Tomem de emplastro de rans cõ mercurio meya onça, de galbano preparado duas oitavas & meya, de espirito de sal armoniaco meya oitava, tudo se misture com huma colher de oleo de nozes, ou, o q tem mayor virtude, com o oleo de lagarto metido vivo em huma panela com meya canada de azeite commum, & assado no forno até se fazer em carvaõ, ordenando ao doente que troaxesse muito tempo o tal emplastro: & como a origem das alporcas consiste na falta da circulaçaõ da lympha incrassada, & reteùda, & nenhuns remedios tenhaõ tanta virtude para a adelgaçar, descoalhar, & fazer circular como os saes volateis; entendi faria grande bem dar ao doente todos os dias em jejum oito gottas de espirito de sal armoniaco em duas onças de vinho branco, ou quatro grãos de sal volatil de vibora; & para acabar a cura, ordenei que em quanto ella durasse bebesse a agua seguinte. Em tres canadas de agua commua mandei cozer huma onça de raiz de vincetoxico em panela de barro, & se não acharem o vincetoxico, por ser erva estrangeira, mas admiravel para as alporcas, & hydropesias, como certifica Theophilo Boneto, usaremos em seu lugar de huma onça de flores de barbasco, ou de cascas de raizes de engos cozidas na mesma forma; a que ajuntaremos hum escropulo de gingibre, porque tem estas raizes notavel propriedade de adelgaçar os humores, de os fazer circular, & de os purgar pela ourina; & com este remedio, & os mais referidos, ficou o doente saõ, & eu com o gosto de ter vencido huma doença de onze annos. Por este estylo curei não só ao enfermo de quem fallo nesta Observaçaõ, mas a outrso muitos, como foraõ o Padre Antonio Gorjaõ da Motta, o qual por naõ ter melhoria com muitos remedios que se lhe fizeraõ no discurso de quatro annos, veyo de Peniche a Lisboa, para passar a França a buscar a saude na bençaõ daquelle Monarca, & porque naõ achou embarcaçaõ prompta para fazer viagem, se dilatou algũs dias em casa de seu tio Joaõ de sousa Ciabra; este lhe deu noticia que eu sabia varios remedios particulares, que era factivel tivesse algum para a sua doença, & buscandome me deu conta do que padecia, & eu lhe disse que o curaria sem se ausentar da sua casa; & foy assim, porque dentro de tres meses ficou saõ. O segundo doente que curei de alporcas, foy o Padre Domingos Jorge, morador em Bucelas, o qual depois de padecer esta doença sete annos, estando ja sem esperança de remedio me consultou, & dentro de dous meses & meyo venci hũa doença, q outros naõ puderaõ vencer em taõ largos tempos. O terceiro foy D. Francisco de Castro, Almeirante de Portugal, o qual depois de padecer esta doença cinco annos, não avendo remedio humano que naõ tivesse feito, mas sem utilidade, sarou nas minhas mãos em menos de tres meses. O quarto foy o Padre Frey Pedro do Cenaculo, Religioso Franciscano; este padeceo alporcas desde a idade de tres meses, até a de oito annos, & naõ lhe aproveitando todos os remedios que se lhe fizeraõ, sarou com os meus segredos em sessenta dias. O quinto foy a mulher de Manoel Fernandes Diamante, moradora em santarem, qual teve hum peito cheyo de alporcas, & depois de mil remedios baldados, sarou com o meu segredo em menos de dous meses. O sexto doente foy hum escravo de Golfo Amarelo relogeiro, morador ao Corpo santo. Finalmente se quizesse nomear aqui os muitos doentes, que curei de alporcas, naõ bastaria hum grande livro; & se alguem me arguir, dizendo, que estes meus taõ louvados remedios tem faltado algumas vezes, responderei que assim he, mas que nem por isso se devem desprezar, nem infamar, sede pois de muitos casos felicemente succedidos faltarem huma, ou duas vezes. Por ventura será bem, que as abelhas deixem de fabricar o seu mel, porque as aranhas fazem algumas vezes sel delle? será razão que o lavrador naõ semee o trigo, porque algũas vezes se perde a sementeira com a inundação das aguas. será justo que o marinheiro deixe de navegar, porque alguma vez se perdeo a nào com a tormenta? será acerto que os febricitantes se não deixem sangrar, porque viraõ morrer a alguns depois que se sangràraõ? Por nenhum caso; porque não ha remedio algũ por mais excellente que seja, q aproveite igualmente a todos; basta que as mais das vezes aproveite, para que se louve, se estime, & se use. He necessario advertir, que supposto naõ nego que os meus remedio faltaõ algumas vezes; que muitas vezes a causa porque faltaõ he, porque naõ saõ verdadeiramente meus, mas muitos saõ falsificados, & vendidos com o meu nome, como os curiosos poderaõ ver no Manifesto que mandei imprimir por preceito do meu Consessor para descargo da minha consciencia, & desengano dos doentes, que cuidado compraõ os remedios verdadeiros, os compraõ contrafeitos, & adulterados.

Naõ faltaõ Doutores gravissimos que para a cura das alporcas louvaõ muito beber a agua das caldas, principalemente das sulphureas, & com grande razaõ; porque se (como muitos dizem) nesta doença todo o mesenterio, & glandulas pancreaticas, & lymphaticas estaõ obstruidas, & cheas de humores grossos & viscosos, & naõ circulados; & as aguas mineraes, & sulphureas os adelgaçaõ, & fazem circular, & sair fóra do corpo pelas vias da ourina, necessariamente seraõ utilissimas para a tal doença; com tanto que se bebaõ em grande quantidade, porque bebendose pouca, taõ longe está de aproveitar, que fará damno, como certifica AbHeers.

E se me perguntarem que quantidade he necessaria beber cada dia para aproveitar, digo que ao menos tres quartilhos, ou huma canada tomada dentro de huma hora, passeando sempre, com tal advertencia, que se o doente (que tomar a tal agua) naõ ourinar dentro de essa hora, ao menos outra tanta ourina, quanta foy a agua, não use mais della, porque he sinal que naõ passa, nem abre os ductos obstruidos.

OBsERVAÇAM LXXXIV

De huma febre terção continua procedida de qualidade gallica, contrahida do leite, que certa menina mamou; & supposto que até a idade de nove annos teve perfeitissima saude , tanto que adoeceo, se obstinou de forte a febre, que lhe durou quatro meses, & sem embargo de que no discurso delles lhe appliquei excellentes remedios, os desprezou a natureza; donde vim a entender que na dita menina avia qualidade gallica, & naõ me enganei; porque depois de bem purgada com os meus trociscos de Fioravanto, lhe dei oito vezes em dias alternados o Turbith mineral, & sarou radicalmente.

He a Medicina Arte taõ grande, & tem tanto que aprender que naõ fara pos co o Medico , que no fim de huma larga vida souber alguma cousa della, porque verdadeiramente he mui difficil em idade taõ curta, como he a nossa, comprehender cabalmente qualquer das artes. Quem avia de crer que huma donzella robusta, carnosa, & bem corada, que até idade de dez annos logrou perfeitissima saude, estava taõ chea de humor gallico, como se ouvesse sido a mais depravada, & exposta mulher do mundo? Nem era crivel que hum corpo inficionado com huma qualidade taõ perversa pudesse ter saude perfeita tantos annos; com tudo mostrou a experiencia que bem podia occultarse a dita qualidade, em quanto as forças estiveraõ em seu vigor, & natural estado; porque como diz Galeno, Anatureza forte a tudo resiste. Mas tanto que as forças fraqueaõ, & se debilitaõ por causa de algum achaque, logo a malicia feminal das doenças, que está escondida, & enterrada, resuscita, & se manifesta. Esta verdade se deixa ver nos mordidos do caõ danado, cujo pernicioso veneno se esconde muitas vezes no corpo vinte, & trinta annos depois da mordedura curada, porque como a qualidade venenosa do caõ danado seja fria, & seca, se retunde, fixa, & se encarcera pela quentura, & humidade do temperamento da idade de mancebo; porèm chegando a velhice, começa a reynar o temperamento frio, & seco da idade velha, que obra a favor da mordedura venenosa, & por isso entaõ revive, & brota a tal qualidade, & faz os perniciosos effeitos, que até aquelle tempo naõ pode fazer, porque o temperamento contrario da idade moça lhos impedia.

Não de outra sorte me succedeo na doença desta donzella; a qual padeceo por tempo de quatro meses huma febre terçãa continua, que naõ obedeceo às sangrias, nem às purgas, nem às ajudas, nem aos remedios alterantes, nem aos especificos antifebriles, nem aos amuletos ; antes vendo eu, que a doença tomava cada dia novas forças, vim a suspeitar que na tal menina reynava alguma qualidade gallica, mayormente vendo que a febre, as dores, as afflicções, & os mais symptomas referidos se exasperavão com mayor crueldade desde o sol posto até a madrugada; por outra parte faziame grande repugnancia a idade taõ nova da enferma, que parecia maldade execranda suspeitar mal della, & mayormente vendo que nos annos atrazados lográra sempre saude perfeitissima.

Naõ obstante porèm, que estes embargos pareciaõ dignos de receber, naõ quiz ceder da minha suspeita, principalmente quando me consta pela experiencia de largos annos, que naõ tem numero as doenças, assim gallicas, como outras muitas, que sem culpa dos doentes se grangeaõ do leite que mamáraõ, & que em tanto estaõ occultas em quanto a natureza he taõ forte, & robusta, que não dá lugar para que a qualidade gallica se manifeste; mas tanto que as forças cahem, & se debilitaõ por occasiaõ de algum achaque, ou larga enfermidade, logo se manifesta a qualidade adormecida, & produz os seus effeitos.

Presuppostas assim estas razões, tive por sem duvida, que a febre da sobredita donzella procedia de qualidade gallica, & que precisamente se avia de curar com algum alexipharmaco de mercurio, ou de salsa parrilha, & assim me resolvi a purgalla duas vezes com os meus trociscos de Fioravanto, dandolhe depois disso oito vezes em dias alternados huma pilula de Turbith mineral formada de quatro grãos do dito Turbith, & seis grãos de confeiçaõ de jacintos, & por beneficio destes remedios vive ha mais de trinta annos.

Deste caso aprendaõ os Medicos modernos a não ser teimosos, nem por fiar obstinadamente contra as doenças rebeldes; antes à imitaçaõ dos grandes pilotos, que vendo a tormenta desfeita naõ proseguem a viagem, antes encolhendo as velas deixão passar as tempestades, por naõ se arriscarem a algum naufragio. Nos casos pois semelhantes a este, em que os Medicos virem baldados os remedios, devem informarse com toda a miudeza da vida passada do enfermo, examinando muito bem se mamou leite suspeitoso, se seus progenitores foraõ sãos, & robustos, se teve tratos illicitos com mulheres expostas, ou de vida mal opinada, se vestio, ou calçou algũa cousa de pessoa enferma desta infame qualidade, se nas horas da noite se augmentaõ todos, ou aguns symptomas, que andaõ annexos aos que tem esta doença, se sentem dores nas juntas, & principalmente nas canelas das pernas; porque que destes finaes, ou da grande resistencia que a doença faz aos remedios especificos, poderá o Medico entender que a tal doença he gallica, ou que está taõ complicada com ella, que he necessario curar, & extinguir primeiro a tal qualidade, se quizermos curar a outra doença, que com ella se acompanha. E se aos homens doutos lhe parecer temerario arrojamento, o dizer eu que bem se pode presumir que no corpo ha qualidade gallica com mais certeza que pela resistencia das doenças, leaõ a Pedro Poterio, & a Mercurial, & a outros muitos Doutores, & acharaõ que nem he novo, nem he materia de duvida, que da qualidade gallica; como de fonte, possaõ proceder muitas, & mui differentes enfermidades, como saõ dores de cabeça, estillicidios, febres, faltas de respiraçaõ, Asthmas, fastios, cruezas de estomago, opilações, hydropesias, azedumesde boca, magreza, hectiguidade, camaras de sangue, puxos, tisiquidade, gotta, parlesia, & mil outras doenças, a que o corpo humano esta sujeito; as quaes doenças se virmos que resistem aos remedios mais selectos, devemos (conforme a approvaçaõ dos referidos Authores) curallas, como se certamente soubessemos que eraõ gallicas, & ainda que naõ vejamos final algum manifesto de aver gallico no corpo; porque como mostrei nesta Observaçaõ, esta donzella estava chea de gallico pelo leite que tinha mamado, & esteve occulto em quanto a natureza pela sua robustidaõ o teve sopeado; mas como pela doença se debilitaraõ as forças, pode dar sinaes desi, aggravandose todos os symptomas desde o sol posto até a madrugada; mas quando faltataõ taõ evidentes indicios, bastaria a toymosa perseverança, & inflexivel resistencia da febre, para entender que era gallica, como o mostrou a experiencia, pois só com tomar o azougue bem preparado sarou radicalmente da febre.

OBsERVAÇAM LXXXV.

De um homem que para se livrar da comichaõ que certos bichos lhe faziaõ nas partes pudendas, as untou muitas vezes com unguento de azougue, o qual lhe enfraqueceo tanto as ditas partes que ficou incapaz de casar estando contratado para isso; neste aperto lhe aconselhei fomentasse muitas vezes as ditas partes do corpo com o oleo de espica, em que tivessem infundido cincoenta formigas que tem dzas* (?); ou que em falta dellas fomentasse algumas noites as partes pudendas com hum pouco de vinho fino, servido com meya onça de grão de pimenta machucados, que para os damnos que o azougue causa nestas partes he grande remedio. Tambem lhe aconselhei que muitas noites atasse algumas folhas de ouro sobre as mesmas partes; & foy Deos servido, que com estes taõ facei remedios cobrasse a virilidade antiga, & ficasse capaz de effeituar o casamento que pertendia.

1. Certo homem, cujo nome he razão encobrir por modestia, se achou taõ perseguido, & mordido de piolhos ladros, que tinha nas partes pudendas, que passava noites inteiras sem dormir, & vendose atormentado, & perseguido de semelhante bicharia, consultou a hum barbeiro taõ ignorante como presumido, pedindolhe quizesse darlhe algum remedio para se livrar de semelhante enfado. Taõ grande era a presumpçaõ, & taõ elevados eraõ os fumos, que o ignorante barbeiro tinha, que chegou a dizer sem pejo; & à boca chea, que para semelhante achaque sabia elle alguns segredos, que nem os Medicos

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de mayor nota lhe tinhaõ dado alcance; & como os homens de bom coraçaõ de ninguem cuidaõ mal, creo o miseravel enfermo o que o idiota lhe disse, & abraçou de tal forte o remedio, que todas as noites untou as partes offendidas dos bichos com o unguento de azougue que lhe ensinàra; mas foy o effeito do tal unguento taõ infeliz, que antes de oito dias sentio o membro viril muito frio, languido, & incapaz para os actos conjugaes; & como ‘o sobredito homem estava apalavrado para casar, & se achasse impotente, cobrou huma ira, & furor taõ grande contra o barbeiro, que esteve tentado a tirarlhe a vida.

2. Nesta desinquietaçaõ de animo me buscou o pobre enfermo, & me manifestou a grande afflicção, & tristeza q o acompanhava; a que respondi dizendo. se a seara da Medicina naõ andàra taõ cheya de cizania, espinhos, & abrolhos, nunca os doentes experimentáraõ tantos infortunios à custa das proprias vidas; mas estamos em hũ seculo taõ cheyo como ( exclava Carvino) (1.) de ambiçaõ, & de ignorancia, q naõ ha velha remelosa, nem remendaõ, nem mariola, ou estrangeiro saltimbanco, que naõ se atreva a curar, & applicar remedios com tanta ousadia, como quem joga da bolsa alheya; comtudo naõ vos desanimeis, nem percais as esperanças de ter saude, porque se o pensamento me não engana, espero certamente que hei de ser o instrumento de recobrardes com grande brevidade as vossas forças, & virilidade antiga. E assim mandei que todas as noites fomentasse as partes relaxadas, & amortecidas com o seguinte banho, que para confortar a fraqueza; & relaxaçaõ das partes pudendas, naõ tem segundo, & se faz do modo seguinte. Tomai meya onça de pimenta levemente machucada, & a cozei em huma canada de bom vinho tinto, & coandose este vinho se faça com elle o banho no membro viril; acabada esta obra, untareis as mesmas partes com o seguinte lenimento, de que tenho grande conceito. Tomai huma garrafa de vidro grosso, lhe deitai dentro cincoenta

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formigas grandes de humas que tem azas, & fechandolhe a boca com huma rolha de cortiça se enterre a tal garrafa em hum monte de esterco de cavallo quente, & depois de seis dias se tire a garrafa, & com este oleo quente se somente o membro relaxado, & se cubra com folhas de ouro: & foy cousa digna de de admiraçaõ o maravilhoso effeito destes remedios, porque em oito dias se tirou a fraqueza, & todo o impedimento que o azougue tinha causado.

3. Desta Observaçaõ aprendaõ os doentes a naõ confiar o precioso thesouro das suas vidas de qualquer velha ignorante, ou homem idiota, porque se os Medicos mais doutos se enganão a cada passo, duvidando sobre o conhecimento das doenças; que se póde esperar de hum barbeiro simplez, ou de hũa velha benzedeira? Tambem advirtaõ os Medicos principiantes, que nunca appliquem unguento de azougue sobre a cabeça, nem sobre os membros que a natureza destinou para a geraçaõ, a fim de matar os bichos que se criaõ nella, ou de curar as bostelas, que delles procedem; porque supposto que o sobredito unguento tenha para o dito achaque grande efficacia; comtudo como a cabeça, & o membro viril constem de muitos nervos, aos quases he damnosissimo o azougue, de nenhũa forte devemos usar delle, porque naõ he justo que por curar huma queixa em que naõ ha perigo, falamos hum damno de tantas consequencias, como à sua custa experimentàraõ muitos. Eu posso testemunhar que vi algumas mulheres, que por naõ cortarem o cabello para sararem de bostelas, puzeraõ sobre a cabeça o dito unguento misturado com unguento rosado; & supposto que brevissimamente conseguiraõ o seu intento sem se tosquiar, andando os annos cahiraõ em tantas dores, & queixas capitaes, que naõ puderaõ livrarse dellas em toda a vida, pelo estrago que o azougue deixou impresso em os nervos. Eu conheço a huma mulher, que pela applicação do dito unguento perdeo a vista daqeuelle olho, em cuja correspondencia se applicou.

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4. Mas se algũ dia succeder que algum Medico novato por salto de experiencia, ou por pouco cuidadoso da vida dos enfermos fizer semelhante erro, pondo unguento de azougue sobre a cabeça, a fim de curar bostelas, que procedem dos bichos, ou sobre o membro viril para o mesmo intento, (o que muito condemno) nem por isso desconfie da vida, & saude do enfermo, antes confiadamente o anime, pondolhe sobre a cabeça, raspada à navalha, hum casquete, ou barrete de ouro finissimo, mandando que se traga por tempo de hũ anno, & pòde estar certo, que com o tal remedio se tiraràõ as dores, ou quaesquer outros damnos que o azougue tiver feito; porque naõ he dizivel a virtude, & singular dominio que o ouro tem para curar todos os symptomas, & damnos que o azougue causa.

5. Muitas Observações pudera referir em confirmaçaõ dos poderes que o ouro tem sobre o azougue, & achaques delle procedidos; mas por naõ ser enfadoso aos Leytores, referirei o que me passou pelas mãos ha poucos dias nesta fórma.

6. Antonio Gonçalves de Carvalho, morador na rua da Fé, por causa de grandes dores que tinha na cabeça, nos braços, & nos joelhos, entendendo que procediaõ de qualidade gallica, porque naõ obedeciaõ aos muitos remedios que se lhe tinhaõ feito, se resolveo a tomar unturas de azougue; porque desde a idade de menino ouvira dizer, que o azougue era só o valentaõ, que rendia a semelhante inimigo; preparouse para tomar o tal remedio, mas com taõ mào sucesso usou delle, que nem cuspio, nem babou, nem suou, nem teve alguma outra evacuaçaõ, ou alivio; antes de dia em dia crescèraõ as dores de tal forte, que ficou tolhido, principalmente de huma perna; neste aperto me chamàraõ, (como muitos fazem quando se vem deixados ao desemparo,) & porque entendi certamente que todas as queixas do sobredito enfermo procediaõ do azougue que tinha no corpo, lhe aconselhei que em toda a agua, caldo, ou vinho que bebesse, deitasse quatro folhas de ouro, & que sobre as partes dolorosas

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applicasse todos os dias folhas de ouro, ao que obedeceo, & antes de passarem dous mezes, reconheceo tanta melhoria, que moveo a perna, & teve saude aquello mesmo homem, que cada instante esperava a morte.

7. Vejaõ os curiosos o q~ digo na Observaçaõ quarenta & nove fol.

301. daquella mulher que tendo por officio dar unturas de azougue a quantos gallicados necessitavaõ dellas, veyo a tolherse, & entrevecerse de maneira, que nem hum dedo podia mover, & depois de deixada ao desemparo me chamaraõ, & entendendo eu que todo o damno procedia do muito azougue que os nervos tinhaõ recolhido em si, porque nunca babou, lhe fiz tomar quarenta dias folhas de ouro nos caldos, applicandolhe juntamente sobre varias juntas do corpo muitas folhas do mesmo ouro, as quaes attrahirão, & chamàraõ a si todo o azougue de tal forte, que se tomàraõ lividas; & dentro de quarenta dias sarou radicalmente com grande credito meu, & consulaõ de quem no fim de seis meses adargou, ou por falta de caridade, ou de conhecimento da causa da doença.

8. Perguntaráõ algũs Medicos modernos: E que remedio avemos de fazer, a quem se queixar de semelhantes bichos, nascidos nas partes vergonhosas, se vós cond~enais o unguento de azougue? Respondo que o primeiro remedio he fazer beber aos taes doentes dous escropulos de caparrosa branca desatada em duas onças de bom vinho, para desta forte alimpar o estomago das phlegmas, & oruezas, que saõ a causa material de que se geraõ os ditos bichos; purgado que for o estomago com a dita caparrosa, ou com agua benedicta, fomentaremos as partes em que estaõ os bichos com o seguinte cozimento. Tomas de de aristodóquia redonda huma onça, de elleboro branco meya onça, de losna, marroyos, & de ortelãa, de cada cousa destas huma maõ cheya, de tremoços crus, & de ¨staphisagria, de cada cousa destas meya onça, de salitre duas oitavas, tudo se coza, & se coe com forte expressaõ,

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& e a meya canada deste cozimento se ajuntem quatro onças de vinagre squilitico, & todos os dias se banhem as partes em que estiverem os bichos com este cozimento quente, & enxugandose com brandura, se unte o lugar enfermo com o seguinte lenimento. Tomai de semente se staphisagria meya onça, de raizes de elleboro branco, & de pedra hume crua, de cada cousa destas huma oitava, de solimão hum escropulo, de sabaõ ordinario duas oitavas, de unto de porco sem sal meya onça, tudo se misture muito bem em hum gral de pedra, & com este unguento se cure todos os dias, que brevemente se achará livre de taõ enfadonha molestia. Alguns se acharaõ bem esfregando a parte com salsa verde bem pizada. se sem embargo de que naõ approvo o unguento do azougue posto nas partes pudendas, tiver algum enfermo tal crença nelle que o queira usar, doulhe de conselho, que nem o repita muitas vezes, nem o deixe estar muitas horas, porque só deste modo lhe naõ será prejudicial.

9. E porque póde aver algum censor, que tenha por apocrifos, & suspeitosos os louvores, que attribuo ao ouro, dizendo que he metal muito solido, & fechado, & que por esta razão naõ tem o calor do estomago poder para o digerir nem soltar das fortissimas cadeas, que o prendem, & consequeentemente que naõ póde fazer taes proveitos; a isso respondo que contra o que mostraõ as experiencias, & vemos com os nossos olhos, he teima, ou cegueira o porfias: bem duro he o aço, & o ferro, & sem embargo que o estomago o naõ gasta, nem póde digerir, nem cozer, ele cura por modo de milagre as oppilações profundas, as camaras rebeldes, & as sistulas novas do interfemineo, como se observou em Antonio de Prado. Nenhum poder tem o calor do estomago para cozer, nem diminuir o antimonio, & se o tomarem dous mil doentes, fará sempre os mesmos vomitos, & cursos, sem perder hum argueiro do seu pezo, nem da sua virtude; logo parece razaõ que o que concedemos ao aço, ao ferro, ao antimonio, que saõ metaes invenciveis do nosso calor, o

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naõ neguemos ao ouro, principalmente quando vemos as maravilhas que obra.

OBsERVAÇAM LXXXVI.

De huma vertigem causada de grande fraqueza da cabeça, & do estomago.

AInda que as doenças antigas das pessoas velhas ordinariamente saõ incuraveis, como a experiencia ensina; comtudo a piedade catholica persuade que nem por isso desemparemos aos doentes, antes os aliviemos, quanto for possivel, porque succede cada dia que quaesquer remedios leves aproveitaõ muitas vezes de modo, que livraõ da garganta da morte aos que estavaõ agonizando, como observei felizmente em hum çapateiro de setenta annos, cujo nome passo em silencio por modéstia.

2. Padecia este homem huma vertigem taõ continua, & teimosa, que lhe não dava lugar a sahir de casa, nem a dar huma passada, porque perpetuamente lhe andava a cabeça à roda. Para vencer a huma doença taõ penosa foraõ chamados varios Medicos de boa nota, & sem embargo que estes lhe applicàraõ muitos, & bons remedios, foraõ dados em ora taõ infeliz, & em horoscopo taõ infausto, que nenhum alivio teve com elles; desanimouse muito o doente, assim por se achar ern idade taõ grande, como pela rebeldia, & frequencia dos taes accidentes. Nesta grande afflicçaõ me chamàraõ; & como para a boa cura das doenças nenhuma cousa importa tanto, como o conhecimento dellas, porque faltando este, logo desfalece toda a esperança da vida, porisso com toda a ponderaçaõ, & advertencia me puz a discursar donde procederia huma doença taõ porfiada, & desprezadora dos remedios mais especificos; & depois que o examinei com toda a circunspecçaõ, & miudeza, vim a entender que este homem devia de ser muito inclinado aos actos venéreos, & sensuaes, pois a grande prostraçaõ de forças que tinha, sem febre, sem dor, & sem alguma evacuaçaõ, ou causa manifesta, o davaõ assim a entender: nem me sahio enganoso o pensamento; porque achei era a quinta essencia da lascivia, & que de tal maneira se abrazava nos amores de sua consorte, que naõ havia hora, nem dia, em que naõ pagasse tributo à deosa Venus; em cujo serviço gastou de sorte as forças, & enfraqueceo os nervos de maneira, que não podia governar a cabeça, & lhe andava em coutinuo gyro. E se me perguntarem a razaõ porque o muito uso de Venus enfraqueça tanto as forças, que he causa de que os homens cayaõ nesta, & em outras muitas enfermidades; responderei, que isto succede, por quanto as partes generativas (nos repetidos congressos venereos) ficaõ empobrecidas da purissima substancia feminal, & para averem de gerar outra, he necessario q̃ os testiculos tornem a attrahir, & chamar de todo o corpo, grande quantidade de sangue purissimo. Daqui procede ficarem as partes sem o seu nutrimento necessario, por cuja falta se arruinaõ pouco a pouco todas as potencias, & espiritos; & como entre os membros do corpo he o cerebro o que mais sente este damno, por ser mais laxo, mais frio, mais falto de sangue, & mais capaz de se resolverem nelle os espiritos, daqui procede fazerlhe tanto estrago os actos da luxuria; ao que se ajunta, que como o dito miolo seja a parte que naõ tem sobre si outra donde possa repararse da falta, que lhe faz o sangue, & os testiculos continuamente estejaõ sugando, & attrahindo para si do dito cerebro, daqui vem a debilitarse tanto com o uso venereo; & por isso naõ he para admirar, que a vertigem succeda aos que saõ taõ luxuriosos como este homem era.

3. Resolvi pois, que estes accidentes se naõ aviaõ de curar com sangrias, (I.) nem com purgas ordinárias, ou remedios communs, mas com medicamentos especificos de superiores virtudes, & sobre tudo com restaurativos das forças, & com o total retiro dos actos sensuaes, & por isso ordenei que logo se apartasse da vista, & companhia de sua mulher, porque como estava rendido das armas da sua belleza, com facilidade se deixaria vencer sem resistencia, & conquistar sem violencia, para se despenhar em novos precipicios.

4. Feita esta primeira, & mui importantissima diligencia, aconselhei que (depois de hũa ajuda dispositiva) tomasse tres onças de agua benedicta vigorada, como remédio muito louvado (2.) para os vágados, que tiverem a sua origem dos máos cozimentos do estomago, como era factivel fossem os do sobredito doente, pelos excessos da sua luxuria; & descançando dous dias lhe fiz tomar, seis vezes em dias alternados; as pilulas de hyera de Pachio, em quantidade de quatro escropulos, & que para recobrar forças, & reparar os espiritos usasse de caldos restaurativos, & bezoarticos feitos de gallinha, perdigaõ, vitela, & limaduras de osso de veado, a que ajuntasse duas gemas de ovos frescos; & que pela manhãa em jejum tomasse huns poucos de dias huma chicara de bom chocolate, em que ensopasse huma fatia de paõ de lò; porque naõ se pódem encarecer as virtudes que o dito chocolate tem para cobrar forças, confortar o estomago, ajuda os cozimentos, vencer as dores de barriga procedidas de frialdade, facilitar as conjunções mensaes reprezadas por viscosidades grossas, soccorrer aos esfalsados, & gastados de muito trabalho, estudo, ou luxuria, remediar as dores de cabeça, que procederem por causa do estomago, & sobre tudo curar as febres, as tosses, & os vágados, que de qualquer das sobreditas causas, ou excessos procederem, como tenho experimentado muitas vezes, assim em varias pessoas, como no presente enfermo, porque tomando elle (depois da agua benedicta, & pilulas sobreditas) o chocolate, teve taõ grande melhoria, que pode exercitar o seu officio de que estava privado avia muitos meses.

5. Finalmente puz fim a esta cura, dando ao enfermo, vinte dias successivos, dous escropulos do seguinte remedio, que em serviço do bem commum quero fazer publico. Tomem de esterco de pavaõ macho sete oitavas; das tunicas, que dividem as pernas das nozes humas das outras, seis oitavas, de prata que naõ tenha liga, ou a mais fina que se puder achar, calcinada sem cousas corrosivas, tres oitavas, todas estas cousas peneiradas pelo tamisso mais tapado que se puder achar, se misturem, & cada dia se dem dous escropulos encorporados com huma colher de xarope de hyssopo; & dando-o deste modo sarou o doente taõ firmemente, que nunca mais padeceo semelhante queixa, & saõ passados mais de trinta annos.

6. E se alguem duvidar, ou disser, que dos excessos da luxuria naõ pòde vir taõ grande damno à cabeça, naõ perderei o somno por isso, nem me vestirei de luto, porque naõ faltaráõ soldados voluntarios, que sem esperar soldo meu se ponhaõ em campanha, & pelejem, em defensa da minha verdade, & com proprias experiências, & alheyas confirmem, & certifiquem ao mundo, que he taõ grande o parentesco, & taõ reciproca a communicaçaõ, que as partes pudendas tem com a cabeça, que he impossivel que ellas tenhaõ o menor achaque, sem que a cabeça o sinta: sahirá pois à campanha, & tomaráõ armas em favor meu, & por esta verdade, Antonio Ximenes, o qual em differentes quadras do anno padecia suppressoẽs de ourina, a que logo se seguiaõ fortissimos accidentes de gotta coral, mas no mesmo instante em q̃ ourinava se lhe tiravaõ os taes accidentes, nem os tornava a ter senaõ quando a ourina se tornava a suprimir: sahirá tambem a campo em defensa da minha verdade Manoel Gonçalves Campello, o qual tendo em certa occasiaõ hũas chaguinhas gallicas no membro viril, & querendo o Cirurgiaõ limparlhes a sordicie que tinhaõ, deitou sobre ellas huns pós de Joannes, os quaes (como sabem todos) saõ feitos de azougue, & de improviso lhe inchou toda a cabeça, & rosto, ficando todas as mais partes do corpo na mesma fórma, & figura em que estavaõ de antes. Tomará tambem as armas em defensa da mesma verdade Francisco sardinha, soldado de cavallo, & natural da Villa de Olivença, o qual estando affligido sem poder ourinar por causa de huma grande çarnosidade, meteo violentamente pela via da ourina huma agulha de prata, & sahindo hum pouco de sangue ensurdeceo repentinamente. Puxará tambem pela espada em abono da verdade Gonçalo de sousa, requerente de causas, o qual pelo muito que andava, & pelo exercicio continuo que fazia, cahio em hum fluxo de sangue pelo nariz taõ copioso, q̃ naõ ouve remédio com que se suspendesse, & por meu conselho, q̃ aprendi de Hippocrates,. ( 3.) meteo as partes pudendas em huma pouca de agua de cisterna muito fria, & bastou que os testículos se resfriassem, para que o sangue da cabeça se suspendesse. Finalmente sahirá a campo em meu abono o grande Doutor Valhes, (4.) o qual diz q̃ difficultosamente se achará doença de que naõ tenhaõ a culpa os excessos da luxuria; porque do uso venereo se seguem malignas podridões dos humores, fraqueza de todas as partes principaes relaxaçaõ de nervos, diffluxões, & cruezas. Destes successos, & effeitos que vi com meus olhos, se deixa conhecer claramente a grande, communicaçaõ, & parentesco, que as partes pudendas tem com a cabeça, pois offendendose huma, se offende logo a outra. Aquelles que duvidarem desta verdade, calem as bocas, & naõ queiraõ infamar com o amargoso fel da calumnia as experiencias taõ verdadeiras; antes advirtaõ, & tenhaõ entendido que o uso de Venus he mais damnoso que o proprio veneno, para os que tem vágados, para os que padecem gotta coral, & arthetica, para os paralyticos, para os que tem dor de olhos, ou vista fraca, & finalmente para todas as doenças do peito, & da cabeça.

OBsERVAÇAM LXXXVII.

De huma febre ardente acompanhada com grande enchimento de estomago, e excessivo fastio, para cujo remedio chamàraõ a hum barbeiro, o qual sem respeitar que o doente era menino de quatro annos, lhe deu doze sangrias, com as quaes se enfraqueceo a criança de tal modo, que perdeo o somno, e cahio em huma hydropesia, e sede invencivel; e vendo o barbeiro o erro que tinha feito, pedio que chamassem a algum Medico; e sendo eu chamado para caso taõ perigoso, assim pela fraqueza do doente, como pela grandeza da enfermidade, me favoreceo Deos de maneira, que dentro de poucos dias o livrei da morte.

1. HE a febre huma doença, a que a nossa vida he muito sogeita; porque esta cruel fera corre todas as Provincias, e Regiões do mundo, sem respeitar idades, temperamentos, ou condições dos homens; antes com tanta ousadia entra pelos Palacios dos Reys, como pelas cabanas dos pastores.

2. Bem sei, que para evitar os estragos de hum inimigo taõ commum, e taõ poderoso, se tem cançado grandes Medicos, e escrito hum numero sem numero de livros; mas nem por isso vejo as sepulturas desoccupadas, e vazias, porque assim os barbeiros, como alguns Medicos modernos se persuadem, que todas as febres (tendo taõ differentes causas) se haõ de curar com sangrias, sem levantar a lanceta do corpo, até naõ tirarem o calor febril, ou a vida, (1) quando deviaõ pòr grandissimo cuidado, para q̃ naõ se enfraquecessem as forças, nem se rendesse a natureza a hum tyranno taõ inexoravel, ou a obrigassem a cahir em mayores perigos, gérando muitas cruezas, e deftas as opilações, cachexias, e hydropesias; pois, porque Galeno (2.) antevia, e temia todos estes damnos, naõ sangrou aos meninos antes de terem quatorze annos.

3. Deume occasiaõ o fazer esta queixa o caso de hũ menino, cujo nome quero passar em silencio, porque se naõ venha a saber quem foy o barbeiro, que commetteo taõ execrando erro. Naõ tinha o dito menino quatro annos de idade, quando o assaltou huma febre ardentissima; acompanhada com grande pejo do estomago, e cruel fastio. Para curar estas queixas chamaraõ a hũ sangrador, (como he costume da gente pobre, ou ignorante,) e como, no presente tempo, a este, e a outros semelhantes homens leigos seja permittido jugar da vida dos enfermos, como de bolsa alheya; lhe deu doze sangrias, das quaes se seguio huma inchaçaõ, ou hydropesia leucophlegmatica de todo o corpo, e vendo o dito barbeiro, que nem a febre, nem os symptomas diminuhiaõ cousa alguma da sua fereza, se ausentou temeroso; e visitando eu ao delicado enfermo, o achei posto em campo, e a peito descuberto batalhando com taõ poderosos combatentes, que era impossivel deixar de renderse ao seu dominio.

4. Naõ he explicavel a compayxaõ, e lastima que tive da desgraçada sorte do innocente menino, vendo que para vencer a huns inimigos taõ grandes, tinha por escudo, e defensor a hum barbeiro simplez; porèm animado eu com a authoridade de Galeno, (3.) e de Hippocrates, (4.) que nos grandes males nos aconselhaõ usemos de grandes remedios, quiz ver até onde chegavaõ as virtudes das medicinas Chymicas, como mais efficazes, e poderosas ; e considerando eu que o doentinho (por sua pouca idade, e falta de discurso) naõ avia de querer tomar remedios de ruim sabor, e desagradaveis ao palato, nem tambem os tomaria se fossem em grande quantidade; e tendo eu tambem respeito, a que a doença procedia do estomago, como se conhecia pelo grande fastio, e amargor de boca que tinha, me pareceo preciso dar lhe onça e meya deagua benedicta bem vigorada, com a qual evacuou taõ copiosamente por vomito, e curso, que no mesmo dia teve grandissimo alivio; mas porque no corpo reyna vaõ ainda muitos humores ferosos, e phlegmaticos, e o figado estava offendido, como se deixava conhecer pela mà sanguificaçaõ, e hydropesia que tinha, me resolvi a darlhe em oito dias alternados, quatro grãos de Turbith mineral, preparado com oleo de enxofre cãpanada, (5) e misturado com meyo escropulo de confeiçaõ de jacintos; como qual remedio se foy pouco, e pouco repurgando toda a copia de humores, e se foy juntamente desvanecendo a hydropesia; e depois que entendi estava deposta muita parte dos humores, tratei de confortar o figado, e entranhas naturaes, assim para que acabassem de vencer algũ humor restante, como para que naõ gerassem outro de novo, e para isso ordenei tomasse, quinze dias successivos pelas manhãs em jejum, e às noites tres horas antes de cear, cinco grãos de ouro diaphoretico, misturado com vinte grãos de crocus martis alcoolizadissimos, feito sem corrosivo, misturando tudo com hum garfinho de assucar rosado.

5. Tambem ordenei, que dessem a beber ao doente pouquissima agua, cozendo duas canadas della com huma oitava de cascas de mirobalanos citrinos machucados, e que nesta agua depois de coada desatassem tres oitavas de tintura de ferro, e que desta bebesse com grande moderaçaõ ao jantar, e à cea, e nenhũa outra em todo o dia; porque se a Medicina tem espada de mais da marca, e capaz de render a hum inimigo taõ poderoso como a hydropesia, he só a tintura do ferro, e o ouro diaphoretico; assim o dizem Pedro Poterio, (5.) e Joaõ Hartmano, (6.) e eu o digo tambem, porque o observei em muitos doentes, cujos nomes nomearei mais abaixo, e neste menino, pois com os ditos remedios recuperou a saude que desejava.

6. Como os principaes remedios com que curei a estes vágados saõ metallicos, e preparados por Arte Chymica, da qual eu tenho mais alguma noticia que os Medicos Portuguezes, lhes quero fazer duas advertencias muito importantes, pois por falta deconhecimento das virtudes dos metaes, se deixam de fazer grandes curas, e talvez se precipitaõ os doentes em muitos perigos. A primeira he, que o ouro diaphoretico, chamado tambem ouro volatil, ou fulminante, sendo bem preparado, e por bom artifice, encerra em si raras virtudes para muitas enfermidades, e faz os seus effeitos mais por qualidade occulta, que por qualidade manifesta; porque o tal ouro nem faz purgar, nem vomitar, nem ourinar, nem resfria, nem aquenta, nem seca, nem humedece; mas obra insensivelmente, fortificando a natureza, corroborando as officinas, e entranhas, abrindo os póros, facilitando a transpiraçaõ; assim o tenho visto, e observado, principalmente nas hydropesias do peito, e nos que se naõ podem deitar de ambos os lados sem suffocarse, como vi em Antonio Paes de sande, na senhora Marqueza de Alemquer, em Maria Nunes, em Manoel Borralho, e outros, que todos livràraõ de hydropesias mortaes por beneficio do sobredito ouro volatil.

7. A segunda advertencia he, que àlem das tres sortes de hydropesias que vemos cada dia, chamadas Tympanitica, Ascitica, e Anasarca, ha mais sete hydropesias; a primeira do cerebro, a segunda dos bofes, a terceira do coraçaõ, a quarta do folle do fel, a quinta do figado, a sexta do baço, a septima dos rins; e cada hũa destas hydropesias tem seus sinaes differentes por onde se distinguem humas das outras. A hydropesia da cabeça se conhece pela inchaçaõ, e pezo nella, e em todo o rosto, e palpebras dos olhos; a hydropesia do peito, ou do bofe se conhece, porque o doente tem tosse, inchaçaõ de pès, e pernas; naõ podem estar deitados, porque se comprime o bofe, e lhes falta a respiraçaõ de sorte, que se suffocaõ; naõ escarraõ, ou muito pouco, e alguma vez com máo cheiro; a hydropesia do coraçaõ se conhece por hũa total fraqueza, mollidaõ, e preguiça para todas as accões, huma grande diminuiçaõ de carnes em todo o corpo, e huma inchaçaõ assim sobre a teta, e lado esquerdo, como inchaçaõ dos pés, e dos joelhos; a hydropesia do fel se conhece pela cor citrina, e amarella dos olhos dos doentes, pelos vomitos amargosos, aperto do peito, respiraçaõ aspera, e apressada, consumpçaõ de todo o corpo; a hydropesia do figado se conhece pelas sizuras da lingua, e dos beiços, e pela inchaçaõ do pé da parte direita; a hydropesia do baço se conhece, porque os doentes sentem dores, e picadas naquella parte, e inchaçaõ do pè esquerdo; a hydropesia dos rins se conhece naõ só pela grande sede, mas pelas titilações, e appetites sensuaes, pela inchaçaõ dos testiculos, e picadas no espinhaço com inchaçaõ nos pés.

8. A cura de todas estas hydropesias naõ descrevo aqui, porque o tempo me naõ dá lugar, e porque a fio dos Medicos doutos, nem eu me escusarei de curar os que se servirem de mim nestes apertos.

OBsERVAÇAM LXXXVIII.

De huma febre terçãa continua maligna, à qual depois de muitos remedios baldados, aproveitou por modo de milagre o meu Bezoartico misturado com quinaquina, & por este modo tenho curado muitas terçans malignas, sem embargo de serem continuas, & naõ entrarem com frio, nem tremor.

1. Como por sentença de Cicero (1.) nascem os homens naõ só para si, mas para a sua patria, para os seus parentes, & para os seus amigos; por esta razão me pareceo naõ só justo, mas preciso escrever para os presentes, & vindouros algumas cousas raras, que na Medicina succedem; por tanto os amadores do bem cõmum ouçaõ os successos seguintes, que me passaraõ pelas mãos, & espero lhes naõ seja pouco proveitoso o sabellos.

2. Em vinte & dous de Junho de 1695. me chamaraõ para curar ao Padre Antonio Barbuda, morador na rua dos Cubertos; tinha o dito enfermo padecido por muitos dias huma febre terçãa continua maligna, acompanhada de symptomas mortaes; para cujo remedio lhe applicaraõ os Medicos innumeraveis medicamentos; porèm era a enfermidade de natureza taõ venenosa, & de malicia taõ refinada, que desprezou as diligencias da Arte, & apertou ao doente com taõ grande excesso, que foy necessario ungillo; neste conflicto fui chamado, (como sou cada dia,) & entendendo eu que o meu Bezoartico cordeal lhe avia de aproveitar muito para rebater a qualidade venenosa, & que naõ lhe seria menos util a quinaquina para vencer os paroxismos tercianarios, me atrevi ajuntar estes dous remedios, & darlhos duas vezes no dia, para que com hũa só bebida, & de hum só golpe se degollassem duas enfermidades juntas; & sem embargo que eu sabia muito bem que naõ haviaõ de faltar homens, que condemnassem a minha resoluçaõ, & me chamassem temerario, não só porque dava a quinaquina em huma febre, que nem era intermittente, nem entrava com tremor de frio, que saõ os requisitos essencialmente necessarios para dar o tal remedio com acerto, & felicidade; mas porque ajuntava o Bezoartico com a quinaquina. Porèm como eu visse ao doente posto em taõ grande perigo, que se lhe naõ acudisse assim a rebater a qualidade venenosa da febre com o Bezoartico, como a extinguir, & fixar a fermentaçaõ febril dos crescimentos, avia certamente de morrer; me resolvi a dar o Bezoartico, & quinaquina juntos, mayormente vendo que huma sezaõ era mayor que a outra, & por consequencia obrigado da extrema necessidade reputei as sobreditas sezões naõ como continuas eraõ, mas como intermittentes, & nesta supposiçaõ pondo de parte o medo, & sem fazer caso da maledicencia, receitei o cordeal seguinte. Tomai de quinaquina verdadeira subtilissimamente polvorizada dez oitavas, do meu Bezoartico das febres malignas subtilissimamente polvorizado cinco oitavas, tudo se misture com duas camadas de agua da fonte, & em hum frasco se revolva, & vascoleje tudo muito bem, & desta bebida tome o doente em jejum meyo quartilho, & ao sol posto outro; & deste modo mandei continuar até que a agua se acabasse; & foy taõ feliz o effeito, que antes de cinco dias livrou do perigo, & sarou radicalmente. seria pouco todo o papel, se ouvesse de escrever aqui os nomes dos doentes a quem curei de terçãs continuas malignas, dandolhes a quinaquina misturada com o meu Bezoartico; baste por testemunha, em lugar de todos, o Eminentissimo senhor Cardeal de souza, o qual no anno de 1694. teve hũa terçãa continua de venenosa qualidade; & porque era continua, & entrava sem frio, nem tremor, me naõ atrevia a darlhe a quinaquina; porèm vendo hũ dia, que a febre, & symptomas, costumavaõ ser menores, cresceraõ, & se exacerbaraõ com tanto excesso, que excederaõ a sezaõ, que era grande, temi, no dia seguinte, que era o da sezaõ mais forte, & formidavel, naõ escapasse della com vida; neste perigo taõ evidente, se me fez preciso valer da consideraçaõ de que as primeiras sezões tinhaõ sido desiguaes, por hũas eraõ muito pequenas, & outras muito grandes, & que neste aperto naõ avia outro remedio mais que reputar as taes sezões, como se fossem intermittentes, & fiado nesta taboa dei a quinaquina cinco vezes naquelle dia, por ser o de menor sezaõ, & para assim poder salvar ao Eminentissimo senhor do perigo que no dia seguinte podia ter, por ser o da sezaõ desmedidamente grande. Este juizo meu conferi com o Doutor João Bernardes de Moraes, que era o unico companheiro, que assistia comigo ao senhor Cardeal, & parecendolhe bom o meu conselho, lhe demos naquelle dia cinco copos da quinaquina misturada com o meu Bezoartico simplez, & foy o successo taõ maravilhoso, que quando veyo o dia seguinte, que era o em que temiamos a morte, escassamente apparecèraõ humas sombras da febre, & de ancias; & continuando com o sobredito cordeal Bezoartico, & quinaquina sarou radicalmente, & viveo depois disso cinco annos.

3. E porque hum só exemplo, aindaque succedido em hum Principe, poderá naõ bastar para convencer a incredulidade dos desaffeiçoados, apontarei dous mais, que em termos identicos me succederaõ no Convento de santa Clara. Estava a Madre soror Antonia Mauricia ungida, & com o officio da agonia rezado quando me chamaraõ; já naõ via, nem ouvia, nem fallava; & informandome eu da doença, conheci pela terribilidade dos symptomas, era febre maligna da mais refinada malicia, & dandolhe quatro oitavas do meu Bezoartico misturado com dez oitavas de quinaquina, desfeito tudo em seis quartilhos de agua da fonte, tomando de cinco em cinco horas hũa chicara de seis onças, escapou da morte; & deste successo taõ glorioso, dou por testemunha a todo aquelle Cõvento.

4. Da mesma sorte estando Dona Isabel Guilherme minha mulher doente com huma febre maligna da mais venenosa qualidade que eu vi depois que sou Medico, lhe dei seis dias o meu Cordeal purgativo, & depois que entendi tinha evacuado grande quantidade de humor , vendo os crescim tos se hiaõ augmentando de dia em dia com notavel excesso, temendo que no quatorzeno, que era o dia da sezaõ mayor, morresse, me resolvi no dia treze, em a sezaõ naõ era taõ cruel, a darlhe sete copos da agua de Inglaterra, esperando que com aquella prevençaõ de sete copos dados em vinte horas, viesse a sezaõ mais branda, de sorte que naõ matasse a doente, como era factivel que succedesse, & eu certamente o temia; & foy Deos servido que sem embargo da sezaõ naõ ser intermittente, nem entrar com frio, nem calafrios, mas só por huma ser mayor outra, livrasse da morte por beneficio destes dous remedios em vinte & oito de Nov bro de 1705. Destas Observações, & casos taõ maravilhosamente succedidos aprendaõ os Medicos principiantes as tres seguintes utilidades.

5. A primeira, que quando virem alguma febre maligna com sinaes de cruezas, ou carga de humores no estomago, (o que poderaõ conhecer pelos amargores da boca, pelo summo fastio, pelos desejos de vomitar, podem misturar remedios purgativos com o meu Bezoartico, dando-o desde a primeira hora da doença; porque com o Bezoartico se vai rebatendo a qualidade venenosa, & com o purgativo se vaõ lentamente descarregando as cruezas, & humores em que talvez se atea a qualidade venenosa; & este he o methodo com que tenho curado infinitas febres malignas de muitos annos a esta parte com taõ feliz successo, que faria grande escrupulo se privasse ao mundo desta noticia taõ proveitosa ao bem commum, como decorosa aos creditos da Arte; & ainda que este meu estylo de curar excitou em algumas pessoas tanto furor contra mim, (3.) que até nas falas mais sagradas retumbaõ ainda hoje eccos injuriosos contra o meu credito, nem por isso deixo de conhecer que ha muitos Medicos doutos, a quem parece bem este methodo de curar; mas saõ affeiçoados à verdade taõ de secreto, raras vezes se atrevem a praticalla, por se naõ fazerem objectos de tantos tiros, quantos contra mim se assestaõ; concedem-me que tenho razaõ, & encolhem os hombros; & se algum dia fazem o mesmo, (por lhes parecer bem o que me vem obrar) tambem os alcança algum açoute da maledicencia. Os que experimentarem o que aqui digo da virtude destes remedios, assim, ou assim misturados, espero que naõ só se arrependaõ de aver dito mal deste modo de curar; mas que acabe em gratificaçaõ, & louvor, o que começou por opprobrio, & descredito da minha pessoa.

6. A segunda utilidade, que eu quero que os Medicos principiantes aprendaõ, he, que para dar a quinaquina misturada com o meu Bezoartico simplez, naõ he precisamente necessario que a febre maligna seja intermittente, nem entre com tremor de frio, basta que huma só vez tivesse qualquer destas duas cousas; & ainda que nenhuma tenhaõ, nem tivessem, basta que huma sezaõ seja mayor que a outra, ou que aja escalafrios, ou extremidades frias ; porque isto basta para dar o tal remedio aos sobreditos doentes, & a outros muitos deixo de nomear, por não causar enfado.

7. A terceira utilidade que eu quero que os Medicos novatos aprendaõ, he, que ainda que o meu Bezoartico se possa misturar com remedios purgativos, como eu o misturo cada dia; & a quinaquina se possa misturar com o Bezoartico, como eu muitas vezes o faço; comtudo a quinaquina naõ se pode misturar com os remedios purgativos, nem dar juntos, salvo quando os doentes estiverem em taõ grande aperto, que necessitem de tomar a quinaquina, & de purgarse, & não aja tempo para dar estes remedios apartados; neste caso se póde a quinaquina misturar com o meu cordeal purgativo; porque, como diz Celso, (4.) Nos casos desesperados fazem os Medicos muitas cousas, que naõ aviaõ de fazer, se o perigo naõ fosse grande. E em outra parte diz o mesmo Author: se naõ achardes outro remedio, & o doente estiver em taõ grande risco da vida, que se lhe naõ acudirem, ainda que seja com medicamento temerario, & desusado, morrer à; neste caso he obrigaçaõ de bom Medico dizer aos assistentes as poucas, ou nenh as esperanças ha, & o grande medo que a doença inculca, & feito este prognostico, acudirlhe com outro remedio, porque he melhor applicar alg a medicina, ainda que seja duvidosa, que naõ fazer nada de pura covardia.

Observaçaõ LXXXIX.

De hum doente que tinha huã febre ardentíssima acompanha com grandes amargores na boca, ancias de coraçaõ & ourinasmui vermelhas; & como por estes indicios entendi que os remedios das sobreditas queixas aviaõ de ser as sangrias, & e essas fizessem mayordamno, vim a conhecer que não o sangue, mas a colera era acausa de tudo o referido, e que o verdadeiro remedio aviaõ de ser as purgas, e naõ me enganei nesta conjectura, porque dando duas ao doente em dias alternados, se desvaneceo logo a febre, se retiràõ as ancias, & as ourinasmelhoraraõ de maneira, q~ o doente ficou saõ.

He cousa lastimosa, & digna de grande sentimento, que sendo sangue o humor.

5 16Observações Medicas Doutrinaes.

mor mais benigno que tem o corpo, & o filho mais amado da natureza, (I.) seja sempre o criminoso,& a quem se attribuem as culpas de quantas doenças padecem os homês (~). Prova seja desta verdade o que vejo, & experimento cada dia no estylo de curar: porque se alguma mulher se queixa de faltas de conjunçaõ, dizem que o sangue tem a culpa, por ser mais grosso do que convem,ou mais vagaroso em sahir, & por issomandaõ logo sangrar: se a mulher se queixa de que lhe baixa muito a conjunçaõ, tornaõ a culpa ao sangue, dizendo que o vir elle com tanto excesso procede de ser muito na quantidade, ou mordaz, & corrosivo na qualidade, & por isso mandaõ logo sangrar: (2) se o doente se queixa de vomitos ou amargores de boca, deitam a culpa ao sangue, dizendo que hecolerico & que regurgita das veasalg~uaporçaõ de succoamarulentopara o estomago, & que por isso faz os amargores da boca, & os desejos de vomitar, & que para remedio de huma, ou outra queixa henecessario sangrar: se o doente tem camaras, culpaõ ao sangue, dizendo que, ou por ser muito, ou muito colerico, deu a causa a ellas, & por isso mandaõ logo sangrar: se o doente se queixar de dores de cabeça, mandaõ tambem sangrar logo, ainda que a tal dor tenha por causa a falta de dormir, ou algum excesso de comer, ou trabalhar: se come muito, tambem he culpa do sangue: se as ourinas estaõ vermelhas, he força de sangue. ValhateDeos, pobre sangue, que de tudo te culpaõ,& como como se fosses o mayor inimigo da vida, & o mais criminoso delinquente te desterraõ, & deitaõ cada dia fóra das veas, que saõ a tua patria; devendo advertir (como diz Valhes) (3.) que as muitas sangrias naõ só enfraquecem mais que qualquer outra evacuação, mais acrescentaõ as cruezas, destroem os cozimentos da mesma sorte, que se tirarem o fogo a huma panela de carne que está cozendo, donde se seguem durarem as doenças mais tempo, & convalescerem os doentes mais devagar, ou fazeremse hydropicos, se antes

Observaçaõ LXXXIX;

tes disso pela falta das forças naõ morrerem; mas como naõ haõ de morrer muitos, se em Portugal reyna a sangria com taõ grande imperio, que naõ ha letígio sobre a saude, aonde a sua authoridade naõ dè a sentença a seu favor? principalmente em Lisboa, aonde se avalia por delito querer coarctarlhetaõ ampla jurisdiçaõ, & se algum Medico quer contrastar a cega fineza dos asseclas das muitas sangrias, se expoem a sofrer nota de ignorante.

2. Deume occasiaõ a fazer esta queixa por parte do sangue,& em favor da vida dos homens, o seguinte successo, que contarei para advertir aos Medicos principiantes, & aos barbeiros que curaõ nas Aldeas; porque como estes saõ huns homens leigos, & sem letras, &aquelles aindaque letrados, naõ tem (nos seus principios) tantas experiencias, nem tanta liçaõ dos livros, como tem os Medicos velhos, facilmente poderaõ commetter muitos erros involutarios por falta destes avisos, & desenganos, como o poderaõ ver pelo seguinte caso.

3. Nesta Cidade conheci a certo homem, que no discurso de humanno esteve oito vezes doente; da primeira doença levou vinte sangrias, passado hum mes teve outra queixa, & levou doze, passados quarenta dias se tornou a queixar, & levou quatorze, passados outros dous meses sentiu huma tosse, & levou dez, finalmente teve outra queixa, & levou nove, até que esgotado de sangue, & de forças se fez hydropico, & morreo. (4.) se o Medico, que mandou sangrar com tãto excesso a este disgraçado enfermo fora vivo, perguntaralheeu porque razaõ sangrou tantas vezes ao dito homem; ou como podia em taõ pouco tempo aver sangue taõ sobejo, que necessitasse de ser tirado cada mes, cada quarenta dias, ou quando muito cada dous meses, já dando vinte sangrias, já doze, já quatorze, já dez, já nove; & se em taõ breve tempo cresce o sangue tanto, como naõ estouraõ, & arrebentaõ os homens que se naõ sangraõ em toda vida, ou taõ de tarde em tarde, que passaõ vinte, & trinta annos sem

518. Observações Medicas Doutrinaes.

sem serem sangrados? como eu conheço alguns, que apontarei sendo necessario. Esta queixa,& pergunta naõ tem facil resposta: o que só diria o sobredito Medico se vivo fosse, que sangrou taõ repetidas vezes, porque em todas ellas achára febre, &ourinas vermelhas, & que levado destes finais mandára sangrar. Hora por serviço de Deos requeiro, & peço muito aos principiantes, que naõ se deixem levar da vermelhidaõ das ourinas para mandar sangrar; porque nem a febre, nem a cor vermelha das ourinas procedem sempre do sangue; muitas vezes procedem de humor colerico, & neste caso taõ longe estaõ as sangrias de aproveitar, que antes tirando o sangue, que he o freyo da colera, se accende mais a febre, & a cor das ourinas se exalta de maneira, que parecem sangue; o que convem he purgar, naõ só huma, mas duas, & tres vezes: já se o sangue for bom, nenhuma desculpa terá com Deos, nem com os homens, quem sangrar só porque acha febre, & as aguas vermelhas; porque com aguas mui vermelhas (quando a cor procede de colera) aconselhaõ Fernelio, (5.) & outros gravissimos Dontores, que purguemos; & se consegue a fraude. Muitos exemplos pudera referir em abono desta verdade; apontarei só hum para acautelar aos principiantes, & desenganar aos teimosos.

4. Em quatro de Outubro de 1702. adoece hum criado do Marquez de Arronches chamado Manoel Velho; tinha este sobre huma grande febre, ourinas muito vermelhas, grandes anciãs de coraçaõ, fastio, & sobre tudo era necessario, & os symptomas cresciaõ, & as ourinas se coravaõ, entendi que a colera era a que fazia a febre, & fava aquella dor, & tintura vermelha às ourinas, & que sendo isto assim, o mataria se o sangrasse

519. Observaçaõ LXXXIX

grasse mais, porque o legitimo, & verdadeiro remedio avia de ser purgallo, naõ com xarope Ray, nem Perfico, ou aureo (como he costume;) porque como neste homem reynavaõ tantos amargores de boca, que saõ indicios certos de haver muita colera no estomago seria erro darlhe quatro, ou cinco onças de huma bebida taõ doce, como saõ os sobreditos xaropes, & seria acrescentas mais os amargores; pois (como todos sabem) os doces nos colericos, nos muito esquentados, & febricitantes se convertem em colera; (6.) por esta razaõ dos meus trociscos de Fioravanto subtilissimamente polvorizados, & desatados em tres onças de caldo de frangaõ sem levar assucar, nem cousa alguma doce; ficando deste modo a purga mais suave por pequena, & mais proveitosa para os colericos, por naõ ter doce; & obrou o remedio com tal felicidade, que desappareco totalmente a febre, tiraraõse as ancias, & as ourinas se fizeraõ alambreadas, & de boa cor, & ficou saõ no mesmo dia com admiraçaõ dos que o tinhaõ visto em taõ grande perigo.

5. Desta Observaçaõ aprendaõ os Medicos modernos a naõ porfiar com sangrias, só por verem as ourinas vermelhas, ou a febre muito ardente; porque hu~as vezes saõ vermelhas por fraqueza, que o figado, & estomago contrahiraõ por algu~a enfermidade larga, como succede nos hydropicos, q~ deitaõ as ourinas mui coradas, sem ser por quentura, nem inflammaçaõ interior; outras vezes fahem as ourinas vermelhas por causa de alguma grande dor colica, que naõ deixando fahir os excrementos, tingem com sua demora, & visinhança as ourinas de modo, que parecem puro sangue; outras vezes saõ as ourinas vermelhas pela grande abundancia de colera, que no corpo reyna, sem ser por causa do sangue, nem inflammaçaõ; & sendo isto verdade, fará hum erro sem desculpa o Medico, que sangrar sem examinar primeiro se o enfermo está hydropico, ou cachetico; se padece grandes amargores de boca; se fez algum excesso com mulher; se teve alguma grande colica; porque qualquer causa destas

520. Observações Medicas Doutrinaes.

tas he capaz de tingir muito as ourinas, & por nenhum modo convem sangrar, como dizem gravissimos Authores, & só será acertado o purgar: creaõme que que fallo com a experiencia de muitos annos, & com aquelle zelo que hei de allegar a Deos pelo serviço que faço às suas creaturas, & no dia do Juizo se pedirá estreita conta aos que depois desta minha advertencia fizerem o contrario, & se ensurdecerem aos brados desde meu aviso, & verdadeiro desengano. Aquelles Medicos, cujo methodos de curar consiste em sangrar muito, vejaõ o aviso q~ lhe faz Vanelmore (7.) sobre as suas consciencias, & causas das viuvas, & dos orfãos.

6.Neste lugar me perguntaraõ os curiosos: & como devemos de conhecer se a cor vermelha das ourinas he procedida de sangue, ou de colera, visto que ambos estes humores lhes daõ a mesma cor, & tintura? porque de conhecer bem qual he o humor que a tinge, saberá o Medico resolver se ha de sangrar, ou purgar. Respondo, que por tres finaes se conhecem as ourinas tingidas por causa da colera. O primeiro, porq~ molhandose hum panno de linho na tal ourina, & deixando-o seçar, apparecera amarello como açafrão, o q~ naõ terá, se a vermelhidaõ for de sangue. O segundo, pelos grandes amargores de boca, porque havendo-os, denotaõ q~ ha no corpo muito humor colerico. O terceiro, porque quantas mais sangrias derem, tanto as ourinas seraõ mais coradas, & a febre mais crescida.

OBsERVAÇAM XC

De huma febre ardentissima taõ obstinada, que desprezou a quantos remedios lhe fizeraõ, até que conheci q a rebeldia della procedia da grande quentura da casa em que o doente estava, porque tinha por baixo hum forno de hum pasteleiro, & mandando eu tirar o doente para casa mais fresca, melhorou quasi de repente.

Huma das cousas que Galeno, (1.) & outros Authores encomendaõ muito, & que he muito necessaria para curar as febres, he que os doentes esstejaõ em casas grandes, & frescas por natureza, ou por artificio, & que tenhaõ janelas; porque se forem pequenas, quentes, ou abafadiças, necessariamente o ar das taes casas ha de ser quente, & incapaz para temperar o incendio do coraçaõ, & para se gerarem delle novos espiritos: & faltando qualquer soccorro destes aos febricitantes, infallivelmente perigaraõ, nem as febres se tiraraõ, sem que tirem primeiro a vida. E porque alguem naõ cuide que isto, he encarecimento, referirei tres casos, que me passaraõ pelas mãos, com que confirmei a verdade, em que se funda o meu conselho.

No fim de Julho de 1668, me chamaraõ para curar ao Padre Alvaro Ferreira, morador ao Remolares: avia muitos dias que este sacerdote padecia hũa febre terçãa continua taõ ardente, & pertinaz, que tinha zombado dos remedios mais efficazes, que inventou o engenho dos homens, & como eu visse a obstinaçaõ da febre, & que a nenhuma diligencia obedecia, comecei a discursar qual seria a causa de taõ porfiada resistencia, & vim a entender, que como o aposento, em que o doente estava, era pequeno, & naõ tinha mais que huma janella sem correspondencia de outra por onde entrasse, e sahisse o ar necessario para refrigerio do coraçaõ, & como juntamente soubesse, que debaixo da cama do enfermo estava hum forno de pasteleiro, facilmente entendi que todas estas cousas concorriaõ para que a febre perseverasse, & o doente naõ tivesse melhoria; pois o ar, que o enfermo respirava, era taõ quente, que parecia fogo, quando (a respeito da febre) devia ser mais frio, que o de que necessitaõ os que tem saude. Milagre pareceo, que hum homem moço atracado com huma febre artentissima em tempo muito caloroso, & deitado sobre hum forno naõ morresse abrazado, tendo contra si tantos inimigos juntos, porèm como Deos tinha antevisto, que aquelle enfermo avia de escolher estado mais perfeito, fazendose Religioso de saõ Jeronymo, se dignou darme luz para que conhecesse, que a resistencia da febre procedia do calor do forno ajudado da pequenhez da casa, & da ardencia das calmas; & assentando eu que estas eraõ as causas, mandei q logo mudassem ao doente para aposento mais fresco, & lavado do ar; & foy esta mudança taõ acertada, que dentro de poucos dias conseguio a saude que desejava, sem ser necessario outro remedio mais que humas ajudas de ameijoada, feitas de quatro onças de caldo de frangaõ cozido com cevada, alface, & farelos lavados, a que fiz ajuntar tres onças de agua de claras de ovos bem batidas, dandolhe ao romper dos dias huns caldos de farinha de avea, feitos em agua primeiro cozida com farelos, & pouquissimo assucar.

Neste lugar me perguntaraõ os curiosos, que razaõ tive para naõ dar a este enfermo agua nevada, sendo eu o mayor, e mais incansavel pregoeiro dos seus louvores para extinguir semelhantes febres, mayormente em hum homem moço, robusto, & em tempo dos caniculares, em cujas circunstancias Galeno (1.) manda dar agua fria com toda a confiança: & Hippocrates (3.) faz tanta estimaçaõ das cousas frias para extinguir as febres, que até as purgas manda dar serenadas, salvo o doente estiver com camaras: & porque razaõ naõ lhe mandei untar as costas com çumo de abobora, & agraço, applicando-os eu a outros muitos febricitantes: & para quando guardei as camas de folhas de golfaõ, de sabugueiro, ou de alface, de que eu muito uso: finalmente porque me naõ vali de deitar ao doente, duas horas no dia, em hũ colchaõ de odres cheyos de agua fria de cisterna, como já fiz a huma filha de Joaõ de Barros, ourives da prata, & a huma netinha de Pedralves Cabral de Lacerda, a hum filho de Pedro de Araujo, & a outros doentes, que ardendo em incendios de fogo, sem que algum remedio os pudesse apagar, só com os deitar nos colchões de agua de cisterna os curei felizmente.

A estas perguntas respondo, que todos estes remedios pudera fazer, porque de todos costumo usar com grande fortuna; mas que naõ me vali delles, porque como o calor da casa, & o ar, que o doente respirava, eraõ os mayores cumplices da febre, & da sua renitencia, importariaõ pouco todos os outros remedios, senaõ mudasse ao doente para casa fresca, como o fiz naõ só a este, mas a hum filho de hum sombreireiro morador ao Tronco, o qual teve hũa febre taõ teimosa, que a nenhum remedio obedeceo, atè que soube que debaixo da sua cama ficava a fornalha em que se fabricavaõ os chapeos, & o mesmo foy mudallo para outra casa fresca, & darlhe a agua nevada, que ter logo saude; & para mayor confirmaçaõ do muito que importa, que os febricitantes estejaõ em casas frescas, & lavadas dos ares, contarei a seguinte Observaçaõ.

Em casa de Antonio Luis Gonçalves da Camara, Almotacel Mòr do Reyno, succedeo, que estando hum seu criado doente com hũa febre ardente, acompanhada com muitos delirios, se levantou da cama, sendo alta noite, & abrindo as portas sem ser sentido, sahio de casa, & guiado pelo seu delirio; sem saber o que fazia, foy dar comsigo em o cano real, & entrando por elle dentro cahio desmayado & porque esteve cinco horas debaixo da abobada, & metido na agua do dito cano, se temperou, & resfriou de sorte o calor febril, que ao amanhecer se achou sem febre, & sem delirio & sahio do cano, causando admiraçaõ aos que o viraõ sahir, sem saber quem alli o levara.

Destas Obserações aprendaõ os Medicos modernos, & os pays de familia cinco cousas muito importantes, & necessarias para curar bem aos seus doentes. A primeira he, que tenhaõ grande cuidado de ter aos doentes de febres ardentissimas em casas frescas, & lavadas do ar, porque se os tiverem em casas pequenas, ou abafadiças, se tirará primeiro a vida, que a febre. A segunda, que nunca deixem aos freneticos sós, nem sem companhia de gente esperta, & cuidadosa, porque se os deixarem sós, os arriscaõ a que se deitem da janella abaixo, como já vi a duas mulheres, moradoras ambas na Tanoeria, que ambas morrèraõ precipitadas, porque estando freneticas as deixaraõ sós, & sem companhia, porque a que tinhaõ estava dormindo. A terceira, que na casa em que estiverem os frenéticos naõ aja espadas, nem facas, nem armas de fogo, porque facilmente pegaõ nellas, & acometem aos que estaõ na sua companhia, & talvez ao Medico q os vai curar, como me succedeo a mim com hum frenetico, que entrando eu no aposento em que estava, se levantou com grande furia a pegar em huma espada, & foy preciso fecharlhe a porta. A quarta he, que as sangrias dos freneticos se assegurem mui bem com duas, ou tres ataduras ; porque com os continuos movimentos, & forças que fazem, se lhes póde soltar o sangue, & amanhecerem esgotados, & mortos, como já succedeo a hum homem morador na Pampulha. A quinta he, que supposto encomendo muito (com os sobreditos Authores) que o ar da casa em que estiver o febricitante seja fresco por natureza, ou por artificio, que isto se deve entender do ar, que o doente ha de respirar pela boca, & ventas do nariz ; mas naõ do ar, que cobrir o corpo; porque se o corpo estiver descuberto em casa de ar frio, se fecharaõ os póros da pelle, & consequentemente se prohibirá a transpiraçaõ, o que seria hum grandissimo impedimento para recuperar a saude; por tanto encomendo muito, que o corpo do febricitante esteja sempre bem cuberto, para q os póros estejaõ abertos, & se continue a transpiraçaõ, pois he mais util que as outras evacuações juntas.

OBsERVAÇAM XCI.

De certo homem a quem o vaibo embebedava de maneira, que veninnitava para querer usar mal de bau fralha donzella, o por meu conselho se deu ao dito homem remedio; com que o aborrecceo máneira, que ficou livre das abominaveis tentações com que muitas tinha sido vexado.

Difficultosos de crer saõ os casos, quecada dia vem à noticia dos Medicos, mas em hum mundo taõ cheyo de miserias, & de huma natureza corrupta com tantos vicios, que se póde esperar, senaõ torpezas, & abominações taõ execrandas, & inauditas, que provocaõ a ira de Deos, & fazem pasrnar aos homens? Certo sujeito ouve nesta Cidade taõ entregue ao vicio da bebedice, que nenhum vinho bastava para satisfazera sua voracidade; naõ havia hora em que este bruto, & miseravel bebado estivesse capaz de conhecer o seu infame, & vergonhoso vicio, para por freyoaos torpissimos pensamentos, que nelle reynavaõ; entre muitos que tinha, eraõ os mais horrorosos, querer usar mal de huma filha donzella, que estava com elle sem outra companhia, nem resguardo, porque a sua pobreza era taõ grande, que naõ podia sustentar huma criada; & como a triste donzella visse muitas vezes a sua honra em tanto perigo, naõ sabia resolverse no remedio, que avia de buscar; porque para fugir da casa, era exporse a que presumissem mal do seu procedimento, & virtude; para declarar os depravados desejos de seu pay; era infamallo, & pollo no risco de ser preso pela inquietaçaõ como criminoso, & salto de fé; para recolherse em hum Convento, (como em arca de Noè) para esperar odiluvio de taõ ardente fogo, naõ tinha dinheiro, nem joyas que levar comsigo para se sustentar, nem parentes de quem se valer; deixarse ficar na mesma casa, era naõ temer o perigo; & ultimamente causavalhe grande compaixaõ, & lastima desemparar a hum homem, que (sobre ser seu pay) estava viuvo, só, & taõ pobre que naõ tinha com que pagar a quem o servisse: nestas perplexidades, & angustias lhe occorreo, que só por via de hum confessor poderia achar algum recurso seguro, & secreto com que salvar o credito, & honra de ambos: assim o fez, & buscandome o confessor, me deu conta deste apertado lance, pedindome que pois eu tinha particulares segredos muito efficazes, quizesse applicarlhe algum para aborrecer o vinho. Muítos foraõ os que me occorrèraõ, todos bons, & mui celebrados todos pelas experiencias de grandes Medicos, (t.) como saõ o vinho, em que se affogarem duas enguias vivas; ou o em que misturarem hum pouco de esterco de homem; ou o suor dos companhões de hum cavallo, quando estiver suado; ou o emque deitarem de infusaõ hum ovo de huma coruja mal assado, & feito em talhadinhas miudas; ou o em que deitarem huma fatia de paõ que estivesse duas horas no sovaco de hum agonízante; ou o vinho que se deitou por meya hora dentro nos çapatos do mesmo bebado, quando os descalçar, estando ainda quentes; ou o vinho em que misturarem os pòs do rabo, ou espadana da pescada, cortado no mesmo instante em que se acabou de tirar do mar estando ainda viva; ou o vinho em que estiverem deitados os pós daquelle pintaõ, que morreo dentro na casca; ou os pós do pardal Francez torrado no formo com pennas, & carne; ou o em que deitarem boa quantidade de bagos de uvas podres; ou o pó das rosas balaustias ; ou o pò do coraçaõ do corvo; ou o pò da flor do trigo, que le acha em Mayo nas pontas das arestas das espigas; ou outros mil remedios; que ha para aborrrecer o vinho: mas ainda que todos os referidos saõ bons, naõ quiz usar de algum delles, porque tenho hum raro segredo, do qual usei por ter delle superior conceito, & foy taõ prodigioso seu effeito, que naõ bebeo mais vinho, nem pode sofrer o cheiro delle: & por meyo desta diligencia ficou a pobre donzella segura na sua honra, & livre dos perigos, que taõ repetidas vezes a tinhaõ ameaçado.

2. Advirto aos Leytores, que se os remedios, que aqui aponto, naõ bastarem para fazer o que se pertende, saibaõ que eu reservo em ninha casa hum segredo, que excede a todos, & naõ quero ensinar aqui, porque he razaõ que o Author saiba mais que o seu livro; nem o quero ter embotica alguma, para que conste que se naõ for de minha casa, he falsificado, como hoje succede ao meu cordeal Bezoartico, aos meus trocifcos de Fioravanto, ao meu segredo de estancar sangue, ao meu lenimento das almorreimas, que por ambiçaõ de alguns boticarios andaõ contrafeitos, & se vendem com o nome de meus, seguindose destes enganos tres grandes perdas. A Primeira he, a das vidas dos doentes, que cuidando que tomaõ os remedios verdadeiros para ter saude, os tomaõ falsos. A segunda he a do dinheiro mal levado. A terceira he a da injuria, que fazem à minha Pessoa, porque se os fucceslos saõ desgraçados, mos attribuem os parentes, & amigos dos defuntos, entendendo, que os remedios saõ meus, devendo attribuirse aos que os falsificaõ. serve esta advertencia para desenganar ao mundo, & para que saibaõ, que os medicamentos particulares, que eu preparo por minhas mãos, só se achaõ verdadeiros, & sem escrupulo em minha casa; nas outras partes, ainda que a algumas os dou para se venderem, temo com fundamento que a ambiçaõ possa mais que a verdade, & confciencia.

3. Rogo muito aos que lerem esta Obfervaçaõ, se naõ escandalizem de tantas advertencias que faço sobre se falsificarem os meus remedios; porque como a saude he o mayor dos bens temporaes, he razaõ, que quando se perde, se lhe busquem medicamentos seguros, & verdadeiros para a recuperar, & escapar da morte, & será disgraça comprallos falsificados para se despenhar na sepultura: nem deixaõ de ser beneficio estas admoestaçóes; porque affim como he costume, quando se perde alguma embarcaçaõ, porse hum final naquelle lugar, para que os que navegarem por aquelles mares, naõ cayaõ no mesmo perigo: da mesma forte os que ouverem de tomar os remedios, lhes advirto que sejaõ verdadeiros, pois delles depende muitas vezes a vida, ou a morte.

OBsERVAÇAM XCII.

De huma senhora, a quem estando sobre parto faltou a evacuaçaõ do puerperio, & logo lhe deu febre acompanhada com muitos cursos, & de tudo a livrei dandolhe oito sangrias nos pés.

I. HUma das cousas que faz grande embaraço aos Medicos principiantes, he como se haõ de aver quando saõ chamados para alguma mulher parida, a quem achaõ com febre, camaras, & faltas de purgaçaõ lochial; porque como tem lido em varios lugares de Galeno, (I.) que avendo febre juntamente com camaras, naõ sangrem, porque se sangrarem, & as camaras continuarem, cahiraõ os doentes em tal fraqueza, que morreráõ: à qual sentença definitiva se ajunta, que a natureza naõ poderá soportar duas evacuações juntas sem perigo da vida, isto os acovarda de maneira, que naõ ousaõ a sangrar; por outra parte estaõ vendo a falta da purgaçaõ do puerperio, & que esta por nenhum caminho se póde suprir melhor, que com as sangrias dos pés: daqui vem o embaraço, & perplexidade no que haõ de obrar; porque para naõ fazer remedio algum, sobre arguir ignorancia, he impiedade, porque he deixar a natureza desemparada, & entregue nas mãos do inimigo; para applicar purga, he impropria sobre parto, aonde ha muitas camaras acompanhadas com febre; para sangrar, ha grande temor de perder forças sem alivio da doença, & com risco da vida: para que pois o Medico se naõ veja embaraçado, & contuso, direi nesta Observaçaõ o que tenho feito em casos semelhantes com prospera fortuna. Em

2. Em 14. de Outubro de 1702. fuy chamado para visitar a senhora Dona Violante Casimira & saldanha, a quem Deos tinha feito merce de dar hum filho desejado com ancia, & conseguido com grande alegria; mas como as felicidades temporaes sejaõ mui pensionadas, & cheyas de sobresaltos, ao gosto do feliz nascimento se seguio o temor, & tristeza, com humas camaras, febre, & falta da descarga devida ao puerperio: perturbàraõ muito estes symptomas naõ só aos pays da recem nascida criança, mas aos parentes, & familiares da casa, porque tinhaõ ouvido dizer, que camaras sobre parto eraõ muito para temidas: para se desatar este nò Gordonio, naõ obstante que na visita da tarde tinha dado ordem a que pela manhãa sangrassem a dita senhora, o naõ quizeraõ fazer sem que eu a visitasse primeiro, porque entendèraõ que os cursos eraõ hum grande impedimento para a sangria; porèm como eu visse que a febre naõ aliviava com os cursos, conheci que eraõ symptomaticos, & improporcionados com a ideia da doença, procedidos de oppressaõ, & angustia da natureza, a qual tomou aquelle caminho errado, porque naõ se descarregou por onde convinha; mandei que logo logo se sangrasse no pè, porque a experiencia de muitos annos me tinha ensinado, que nenhum remedio era taõ efficaz, & seguro, em casos semelhantes, como as sangrias: naõ só porque com ellas se suppre a falta da legitima, & devida descarga dos partos; mas se diverte a natureza do erro, que tem começado nos cursos: por tanto animosamente mandei abrir a vea, tendo por infallivel que as camaras se aviaõ de suspender: & naõ me enganei; porque ao mesmo passo que as sangrias se foraõ fazendo, foraõ as camaras aplacando, & a febre diminuindo, até que huma, & outra cousa se desvaneceo totalmente, & ficou salva, & segura de huns symptomas, que sempre ameaçàraõ grande perigo.

3. O fruto que desta Observaçaõ espero colhaõ os principiantes he, q/ naõ se atemorizem com os cursos nas mulheres de sobre-parto para deixarem de sangrar grar, se ouver febre, ou falta da purgaçaõ loquial; porque ainda que Galeno, (I.) & Avicenna (2.) digaõ que avendo camaras naõ sangremos; isto se entende, quando as camaras forem criticas, & indicadas da mesma doença, ou capazes de vencer a enfermidade; mas quando forem symptomaticas, & taõ camaras para supprir a purgaçaõ dos loquios, naõ prohibe as sangrias, nem os varões doutos, que florecèraõ depois de Hippocrates, & Galeno, as condemnaõ; antes as louvaõ muito, como se póde ver em Agostinho de Laurencio (3.) na disputa segunda fol. 51. o qual fallando das mulheres paridas, a quem faltar a purgaçaõ do parto, & lhe daõ camaras, diz as seguintes palavras: As paridas, a quem falta a purgaçaõ dos loquios, & tem camaras, se devem curar com sangria, tanto para supprir a falta do sangue devido ao parto, quanto para suspender as camaras symptomaticas, que damnificaõ a natureza. O mesmo diz Mercado (4.) pelas seguintes palavras: Todos os achaques, & symptomas que sobrevivierem às mulheres, que sobre parto purgaõ pouco, ou nada, se devem curar sangrandoas nos pés copiosamente, se as forças o puderem sofrer. Zacuto Lufitano (5.) tambem aconselha as sangrias dos pés para remedio das camaras, que tem por causa a falta da purgaçaõ mensal, ou loquial. Valerio Martins (6.) refere oito paridas, a quem deraõ camaras, & a todas curou com sangrias dos pès, & certifica, que naõ perigou alguma. Tambem eu posso certificar por mui seguro este modo de curar, porque depois que sou Medico, tenho livrado da morte a muitas paridas, às quaes faltou a purgaçaõ dos loquios, tendo juntamente febre, & copiosas camaras, & só com as sangrias as curei com grande felicidade, como consta pelo presente caso.

4. A outras paridas tirei da sepultura, naõ com sangrias; mas purgandoas cinco dias depois do parto: & as razões que tive para assim o fazer, foraõ duas urgentissimas, & as quero dizer em serviço do bem comum & para encaminhar aos Medicos principiantes, que que curaõ em terras aonde não ha outros Medicos, com quem tomem conselho em caso taõ duvidoso.

5. A primeira razão porque purguei a algũas paridas (estando taõ visinhas do parto) foy, porque lhes faltava totalmente a purgaçaõ loquial, & mandandoas sangrar, para supprir com a Arte, aonde faltava a natureza; em humas sahio soro, que não tingio a agua da bacia, em outras se naõ pode fazer a sangria pela disforme inchaçaõ dos pés, & pernas.

6. A segunda razaõ porque purguei (tão chegado ao parto) foy porque estas taes paridas (pelo muito barro, & depravados mantimentos que comèraõ em quanto andàrão prenhadas) estavão tam cheyas de cruezas, soros, & viscosidades, que seria impossivel livrallas da morte sem as purgar, mayormente quando pela experiencia que o sangrador fez com a lanceta, constou qua nas taes mulheres não avia sangue; mas só reynavão soros, & humores cacochymicos, cuja verdadeira descarga se deve fazer por via de purga, & naõ de sangria, & por estas razões as purguei com felicidade.

7. Nem as resoluções que tive para purgar a algumas paridas astando cinco dias depois do parto, forão tão desamparadas de padrinho, que não tivessem em seu favor a authoridade do doutissimo Mercado, (7.) o qual fallando neste caso diz as seguintes palavras: se a mulher sobre parto purgar pouco, ou nada, deve o Medico considerar, se na tal mulher ha mais finaes de cruezas, & de humores cacochymicos, que de enchimento de sangue, porque neste tal caso faltando a purgaçaõ do parto, ou sendo muito diminuta, ou avendo perigo urgente, deve purgar com medicamento que respeite a natureza do humor peccante: nem deve o Medico acovardarse para dar a purga, avendo necessidade, & perigo, ainda que a mulher deite alguma migalha de purgaçaõ pela via do parto, com tanto que naõ seja sangue, porque se for outra qualquer casta de humor, naõ deve ter medo de dar a purga; porque naõ poucas vezes temos visto, que muitas paridas morrèraõ, ou chegàraõ a grande perigo, porque que os Medicos medrosos naõ ousaraõ a purgallas, esperando a que totalmente parassem aquelles resquicios, ou pequenas nodoas da purgaçaõ; pela qual razaõ (diz o Doutor Mercado) me parece conselho mais seguro; se a purgaçaõ loquial parecer que naõ he bastante, receitar logo purga; porque he mais seguro purgar o humor, que for necessario para remedio da doença, que contentandose com a pouca evacuaçaõ que a natureza faz, dilatar o remedio, até que a natureza se deixe render aos assaltos do inimigo, ou se applique taõ tarde, que naõ aproveite.

OBsERVAÇAM XCIII.

Dos grandes damnos, que faz o leite muito grosso, & como por causa delle morràaõ em huma casa cinco filhos, & só escapáraõ, os que mamàraõ leite mais delgado, & seroso.

Com muita razão se disvelaõ os pays de familias em examinar o leite das amas, que hão de creae a seus filhos, porque da sua bondade, ou malicia procede ser a creação feliz, ou desgraçada; porèm he necessario advertir, que não basta só o exame que se faz no leite; he tambem necessario examinar se a ama he pacifica, ou soberba; se he honesta, ou lasciva ; se he fraca, ou robusta; se he bem temperada, ou muito calurosa; porque he taõ grande a efficacia q o leite, & se naturaliza tanto com as crianças, que por meyo delle recebem os mesmos costumes, vicios, ou virtudes das mulheres que as crião. Infinitos exemplos pudera refletir em confirmaçaõ disto que digo; mas porque a razão, & a verdade saõ tão poderosas que não necessitão de armas para defenderse, he escusado cansar aos Leytores, contandolhes casos, que a confirmem; porèm como escrevo com o zelo do gèral aproveitamento, não serei condemnado por referir hum hum caso, que testifique com evidencia o muito que importa a escolha, & exame das amas, & do seu leite; porque se he muito grosso, he damnosissimo, porque tem tanta quantidade de queijo, que indurece a camara, & não deixa ourinar as crianças a quantidade necessaria, & da total falta, ou diminuição destas duas evacuações se seguem humas vezes tosses secas, porque os soros, que avião de sahir pelas ourinas, regurgitão, & sobem para cima, & offendendo o peito, excitão a tosse, como tenho visto, & acudido a muitos no actual aperto das tosses, fomentandolhes as verilhas com oleo de lacrais, & manteiga crua; outras vezes da dureza da camara; & falta della se seguem accidentes de gotta coral, dos quaes vi dar mais de oitenta a hum menino recem nascido, filho de João Tavares Moniz; & vi dar mais de cincoenta a outro filho de Tristão Mendonça; & finalmente vi dar mais de noventa a hua filha do Doutor João Bernardes de Moraes, sem aver mais causa para os taes accidentes, que a muita grossura do leite, como conheci certamente, porq mudando eu as sobreditas crianças para as amas de leite mais delgado, fizerão camara, & ourinàrão copiosamente, & não tiverão mais accidentes. se o leite he muito delgado, tambem he damnosissimo, porq como quasi todo he soro, não tem substancia para criar forças robustas, & muitas vezes he causa das crianças terem tantas camaras, que vem a morrer dellas. se o leite he de mulher soberba, lasciva ou tola, he o leite prejudicialissimo, porque se naturaliza tanto com as crianças, que lhes imprime, & caracteriza (como sineze) os mesmos costumes, & inclinações das amas q os crião, como me consta de alguas pessoas, que sendo geradas de pays muito discretos, pacificos, & virtuosos sahirão tolos, bravos, & lascivos, tomando os máos costumes de quem lhes deo o leite. Finalemente se o leite he muito quente, he damnosissimo, porque as crianças não medrão, nem engordão, antes se myrrhão, & emmagrecem de sorte que morrem tisnados, & feitos hus esqueletos, como observei em certa casa aos- aonde morrèrão oito filhos, porque mamarão o leite de sua mãy, que era hum Mongibelo de fogo, & sendo, eu chamado para ver o sexto filho, que estava myrrhado. atrophico, & quasi morto, por aver mamado o mesmo leite, & como pelos maos sucessos antecedentes, & pelo temperamento da mãy, & pela grandissima sede que o menino tinha, & finalemente por huns carocinhos avermelhados q por todo corpo estavaõ espalhados, a que Daniel-senerto chama (Asera) conhecesse que tudo eraõ effeitos do leite quentissimo, mandei logo logo mudar a criança para a ama que tivesse leite fresco, & mais delgado, dandolhe para isso alimentos frescos, mandandolhe juntamente que duas vezes no dia lhe fomentassem as costas com unguento rosado ; ordenando que tambem banhassem a tal criança com cozimento feito de malvas, malvaisco, mãos, & cabeça de carneiro, a que fiz a juntar boa quantidade de leite, e foy Deos servido, que com estes remedios livrarse da morte não só a esta criança, mas a todas as outras que mevieraõ à mão, sem lhes fazer outro remedio mais que darlhes amas bem temperadas; & escolhidas com todos os requisitos acima declarados.

Desta Observaçaõ espero que os Medicos principalmente colhaõ dous frutos taõ importantes ao secredito, como à vida dos innocentes meninos. O primeiro he, que quando forem chamados para ver alguma criança de leite, que tenha accidentes de gotta coral, ou quaesquer outros movimentos convulsivos, examinem logo se a tal criança faz camara muito dura, ou mui de tarde em tarde, porque se assim a fizer, naõ tem que duvidar que os taes accidentes procedem da retençaõ, & dureza dos excrementos, & que a tal dureza procede do leite ser muito grosso, & cheyo de queijo; como se poderaõ certificar vendo, & examinando o mesmo leite, & nestes termos todo o remedio consiste em mudar a criança para leite mais solto, & delgado, ajudando tambem a mollificar o ventre da crian- criança, fomentado-o todas as noites com azeite da candea de baixo, misturado com unto de porco sem sal, & hum pequeno de fermento, cubrindo por cima com folha de couve quente.

O segundo fruto que espero colhaõ he, que se forem chamados para criança de leite que tenha grande tosse, examinem logo se os coeiros em q a tal criança esta enfaxada, estaõ bem ensopados, & cheyos de ourina, porque se estiverem secos, ou pouco molhados, he sinal infallivel, que os soros, que aviaõ de sahir pela ourina, retrocedèraõ, & caminhàraõ para cima, & offendendo os orgãos da respiraçaõ, & o peito, fazem a tosse, & nestes termos todo o remedio consiste em provocar as ourinas, fomentando para isso as verilhas, o pentem, & o lugar dos rins com oleo de lacrais misturado com manteiga fresca, & oleo violado. Peço muito aos Leytores, que não desprezem estes conselhos, porque se fundaõ na experiencia de muitos annos, & no zelo do gèral aproveitamento.

OBsERVAÇAM XCIV.

De huma Ictericia, acompanhada com grandes amargores res de boca, & fastio, curada com hum vomitorio de agua benedicta vigorada, com sangrias na vea d’ Arca ca, ptisanas, soros de leite de burra, & agua cozida com folhas de morangãos, & alterada com pedras de cananor.

1. A Ictericia he huma doença mais facil de conhecer, que de curar; humas vezes se naõ cura, porque a causa saõ algumas pedras, que se criaõ dentro da bexiga do fel, & para esta naõ soube a Medicina remedio até o dia de hoje, como me consta naõ só pelo que dizem grandes Medicos, que viraõ abrir brir alguns corpos de pessoas, que morréraõ de ictericias cias, & acharão a bexiga do fel cheya de pedras tamanhas nhas como ameixas; o mesmo posso eu affirmar como testemunha munha de vista; porque morrendo Francisco Malheiro lheiro de huma ictericia triennal, oabriraõ para o embalsamar balsamar, porque tinha o seu jazigo fóra de Lisboa, & lhe acharaõ na bexiga do fel tres pedras, huma das quaes era como huma grande tamara, & as duas eraõ quadradas mayores que duas ginjas garrafais.

2. Outras vezes se naõ cura a ictericia, porque se desconhece a causa, & do desconhecimento della se segue applicaremse remedios taõ improporcionados com a enfermidade, q muitas vezes a acrescentaõ, como mo tenho visto, & farei manifesto pelo seguinte caso.

3. João Gonçalves de Matos, morador ao arco dos Espinhos, teve hua ictericia muito grande, acompanhada panhada com excessivo fastio, fraqueza, & amargores res de boca; para curarse de todas estas queixas chamou mou a dous Medicos de boa opiniaõ, hum dos quaes assentou (como se fosse ponto de fé) que a ictericia procedia de obstrucçaõ do poro cholidoco, & da via biliaria, que vai do figado para a bexiga do fel, ou das vias, que da dita bexiga vaõ para os intestinos, & que sendo isto assim, convinhaõ purgas, apozemas, pilulas de aço, vinho branco serenado com cascas e rabão, o oleo de alambre, o tartaro vitriolado, o espirito de sal armoniaco, o pò dos mille-pedes, & quaesquer outros remedios volatizantes aperitivos, & deobstruentes truentes. Dizia outro que ainda que as ictericias pela mayor parte procediaõ muitas vezes de quentura do figado, & entranhas naturaes, que gérando mais colera lera da q era necessaria, se misturava com o sangue, & por meyo da circulaçaõ se espalhava pela superficie do corpo, & fazia a cor amarella, & q sendo isto assim, seriaõ riaõ damnosos o aço, as purgas, as apozemas, o vinho dos rabãos, o pó das minhocas, do alambre, & da pedra do fel da vacca, & outros remedios quentes; & q só seriaõ riaõ convenientes sangrias, sanguisugas, ptisanas, agua de cananor, julepos refrigerantes, agua cozida com folhas lhas de morangãos, & os mesmos morangãos comidos na primeira mesa: Nesta duvida, & contenda me chamaáraõ máraõ para desempatar votos taõ encontrados. Para responder com acerto, &vir em conhecimento da causa da enfermidade, foy preciso fazer ao doente as seguintes guintes perguntas: se andava facil na camara, se o excremento cremento q deitava era branco como alva de caõ; ou se era amarello como açafraõ; se tinha algua dureza, ou inchaçaõ no hypocondrio direito, ou no esquerdo; se lhe amargava a boca; se cançava muito com qualquer quer exercicio. A estas perguntas respondeo que fazia todos os dias camara com facilidade, & brandura, & que dita a camara era tingida de cor amarella, & que nos hypocondrios naõ tinha dureza nem inchaçaõ, antes os tinha muito brnados, & só tinha grandes amargores na boca; mas sem embargo de eu ter ao doente por muito verdadeiro, me quiz certificar, se a informaçaõ era conforme ao que me tinha dito, & por isso palpei os hypocondrios, & vi os excrementos, & achei que tudo muito conforme à informaçaõ que tinha dado; daqui fiquei conhecendo que naõ avia obstrucçaõ çaõ em parte alguma das entranhas, porque se a tivera ra, naõ faria camara sem ajuda, & seria muito dura, & branca, porque lhe faltava a colera que a tingisse, & servisse de espora aos intestinos, para que os irritasse, & obrigasse a deitar fóra os taes excrementos; & por consequencia entendi, que a sobredita ictericia tinha por causa efficiente a destemperança quente do figado do, & entranhas, que requeimando, & esturrando os humores dava causa à dita enfermidade, & occasionava va os insoportaveis amargores, & fastio que tinha; & nesta supposição comecei a cura, fazendolhe tomar dous dias alternados tres onças de agua benedicta vigorada gorada; porque em toda a sorte de ictericia tem admiravel ravel prestimo os vomitorios, (1.) principalmente os antimoniaes; porque despejada a colera, & limpo o estomago com elles, surtem melhor effeito os remedios dios attemperantes do figado: assim se fez com eu o mandei, & com taõ bom successo, que o doente sentio grande alivio, & descançando hum dia, ordenei que tomasse seis sangrias na vea d’Arca do braço direito, & duas na costa da maõ na vea chamada salvatella, dando depois disso oito ajudas, fazendo cada hua dellas las de duas onças de agua de claras de ovos, & quatro onças de caldo de grangaõ cozido com cevada pilada, farelos lavados, & folhas de malvas, de alface, & de enfayaõ; ordenando, que em quanto durasse a ictericia cia, bebesse agua cozida com huma maõ cheya de folhas lhas de morangãos, & que nas madrugadas tomasse doze dias ptisanas ferenadas em pucaro de barro de Estremoz, porque àlem da virtude bezoartica, que Aldrovando (2.) attribue ao tal barro, consta pela experiencia periencia, que sendo bem fino esfria muito a agua, & lhe communica hum cheiro taõ agradavel, que bem mostra naõ ser esteril de virtudes. Tambem aconselhei que nas ditas ptisanas naõ deitassem assucar, por naõ acrescentar a colera, & os amargores, como costumaõ fazer os doces, & os caldos gordos aos febricitantes, & esquentados do figado; mas q em lugar do assucar deitassem tassem em cada ptisana doze gottas de espirito de vitriolo triolo, ou as que fossem necessarias para que ficassem agradavelmente azedas, & deleitaveis ao palato. Ordenei denei finalmente q acabadas as doze ptisanas, lhe dessem sem quarenta dias quartilho & meyo de leite de burra ra, ou foros do mesmo leite: digo quartilho & meyo; porque o leite, ou os foros pequenos, ou poucos dias dados nada aproveitaõ; & observandose este meu conselho selho, naõ só ficou bom da ictericia, mas com este remedio o preservei de cahir em crueis dores de ventre, chamadas Ictericas, ou Pictonicas, de que já estava ameaçado, porque de quando em quando sentia picadas das agudas em todo o ventre, & hypocondrios.

4. Desta Observaçaõ se colherá por fruto, que nem sempre as ictericias procedem de obstrucções, & por consequencia que nem sempre se devem curar com remedios medios aparientes, nem purgantes, porque estes faraõ mal grande, se a doença proceder de intemperança ça quente, porque não fó esquentaráõ mais o figado, & entranhas; mas chamaráõ os humores para o estomago go, & causaráõ nelle grandes dores, como tem succedido dido: o que pois convem (nas que procedem de quentura tura) saõ sangrias, já na vea d’Arca, já na salvatella da costa da maõ direita, já sanguisugas, ptisanas, soros de leite de burra, em que levemente tenhaõ fervido vinte folhas de morangãos, já amendoadas de pevides de melancia, abobora, & de pepino, feitas em agua de cananor. Pelo contrario nas que procedem de obstruçaõ çaõ, ou dureza das entranhas, naõ convem sangrias, nem ptisanas, nem remedios muito frios, porque acrescentaraõ as obstrucções, & facilmente degeneraraõ em hydropesias mortaes, como diz Hippocrates tes, (3.) & a experiencia o tem mostrado.

5. O que convem nas taes ictericias procedidas de opilações, saõ as seguintes apozemas. Tomai de cascas de raizes de rubia tinctorum duas oitavas & meya, de cascas de raizes de salsa das hortas, de borragem gem, de grama, & de espargo, de cada cousa destas seis oitavas, de folhas de sene de Lapata seis oitavas de ruibarbo escolhido duas oitavas & meya, de palha do Meca, a que outros chamaõ esquinanto, huma oitava, de açafraõ bom, & de erva doce, de cada cousa destas hum escropulo de tudo se faça cozimento em vazo de barro para quatro apozenams, & a cada seis onças deste te cozimento se ajuntem dous escropulos de cremores res de tartaro verdadeiros, & mostrarà o effeito, que saõ remedio maravilhoso. No caso porèm que taõ admiraveis raveis apozemas naõ acabem de curar a ictericia, tomem dez dias o caldo de hum frangaõ recheado, ao qual depois de coado, & bem espremido, ajuntem quinze graõs de tartaro vitriolado.

6. Estas advertencias saõ muito necessarias para os Medicos principiantes, porque se se desconhecem as causas das doenças, maç se podem applicar os remedios dios com acerto. daqui se seguem desgraçados successos sos, como já vi em certo doente, que tinha huma ictericia ricia procedida de entranhas abrazadas com muito vinho, & rosa-solis, & como o Medico, que assistsa ao tal doente, era principiante, cuidou que a tal ictericia procedia de obstrucções, como muitas procedem, & poz todo o empenho da cura em purgas, apozemas, & aperientes, quando avia de sangrar, dar ptisanas, leites tes, soros, & cordeaes srescos; mas porque desconheceo ceo a causa, errou o remedio, & deu com o doente na sepultura com grande perda de sua casa, & de seus filhos lhos.

7. Quando os senhores Medicos modernos encontrarem contrarem alguma ictericia taõ obstinada, que naõ queira obedecer aos remedios que aqui tenho apontado do, fallem comigo, que eu tenho hum segredo de taõ relevante virtude, que tornarei o dinheiro em dobro, se dentro de hum mes naõ curar o achaque. As razões porque naõ descubro este, & alguns outros segredos, & os reservo para deixar a meus herdeiros, podem ver os curiosos na minha Polyanthea da segunda impressaõ pressaõ na folha 409.num 15. & na folha 860 do num. 84 até 88 & espero que me achem razaõ.

OBsERVAÇAM XCV.

De humas almorreimas taõ doloroass, & inchadas, que nem lhe permittiaõ mittiaõ algũ sossego; & depois de se lhe terem applicado do mil remedios inuteis deitou duas pedras pelas veas hemorrhoidnes, & no mesmo dia se desvanecèraõ as dores, & a inchaçaõ, & teve saude.

1. Porque ha homens taõ reimosos, & assertados tados ao que disse Galeno, (1.) que negaõ com elle criaremse pedras no corpo fóra dos rins, & da bexiga ou do intestino Colon, os quero desenganar, mostrandolhes com evidencia que naõ tem o corpo parte alguma interior, ou exterior, aonde se naõ possaõ saõ crear, & se tenhaõ visto sahir: assim o assirmaõ gravissimos Authores. (2.) Na glandula pineal da cabeça beça as vio Matheus Pausenio (3.) referido por Bonero ro. Na garganta se criaõ: assim o diz Avicenna. (4.)

Debaixo da lingua se criaõ, & as vio Riverio, (5.) & fazem algumas vezes fluxões à garganta; outras vezes embaraçaõ a lingua de tal modo, que se naõ entendem as palavras, que os taes doentes dizem. No coraçaõ se criaõ: assim o diz Hollerio. (6.) No estomago se criaõ, & causaõ nelle grandes, & perpetuas dores: assim o diz Gentil referido por Nicolao, (7.) & o confirma Gilberto referido pelo mesmo Nicolao, dizendo que as vio sahir por vomito. Na tunica do figado se criaõ, & naõ só o endurecem, & fazem dor nelle; mas causaõ iƐtericias: assim o diz Benivenio. (8.) No mesenterio as vio Dureto. (9.) Na bexiga do fel se criaõ: assim o diz Benivenio, (10.) & causaõ humas vezes fastios invenciveis, outras vezes iƐtericias mortaes, como foy a de Francisco Malheiro, a de Fr. Joaõ Freyre, Religioso da Trindade. Na madre se criaõ, & as viraõ sahir della Aecio, (11.) & o Doutor Francisco da Fonseca Henriques, (12.) como elle relata em huma observaçaõ sua. Nos intestinos se criaõ, & fazem nelles algumas vezes dores como de colica, que se naõ tiraõ, em quanto naõ sahem com a camara: assim o dizem Joaõ Henriques Brechtfoldi, (13.) Guainerio, (14.) & Fernelio. (15.) Também eu vi sair pela via da camara pedras brancas da dureza de gesso, & as deitava huma mulher de casa de Antonio Correa de Lacerda; padecia a dita enferma muitas vezes no anno dores de colica taõ apertadas, que cuidava perder a vida, & naõ aliviava em quanto naõ deitava algumas misturadas com a camara, & só passava bem em quanto naõ criava outras. Nas juntas das maões, & dos pès as criaõ alguns gottosos; assim o dizem Platero, (16.) & Gordonio, (17.) & eu as vi em o Conde do sabugal Dom Joaõ Mascarenhas, & em o Doutor Diogo Carvalho de siqueira, Desembargador do Paço. Nos abscessos, & tumores se criaõ, & as vio sahir misturadas com sangue Feliz Platero, (18.) & Boneto, (19.) & eu as vi tambem sahir em huma sangria q~ se deu a Manoel Rodriguez sangrador del Rey D. Affonso VI. Jacobo sachs (20.) diz q~ vio a hũ leproso, q~ deitava arcas misturadas com o sangue das sangrias. No bofe se criaõ, & se fazem humas vezes Asthmas secas, outras vezes tosses taõ rebeldes, que mataõ, ou perseveraõ em quanto se naõ lançaõ algũas: assim o dizem Benivenio, (21.) & Fernelio, (22.) & eu as vi deitar a dous homens, que depois de padecerem alguns annos tosses, & escarros de sangue, deitaraõ pedras misturadas com os escarros, & nunca mais tussiraõ; hum destes enfermos era natural de Villa-Viçosa, chamado Antonio Rodrigues o Bicho verde; outro se chamava Domingos Gonçalvez morador às Fontainhas.

2. Ultimamente criaõse pedras nas almorreimas assim o diz Realdo Columbo, (23.) & eu o digo tambem, porque as vi deitar a hum doente, que padeceo muito tempo dores, & inchaçaõ de almorreimas, & naõ alliviando com mil remedios que se lhe fizeraõ, só com deitar algumas pedras, ficou saõ, como pelo seguinte caso farei manifesto.

3. O Muito Reverendo Padre Fr. Joaõ de saõ Domingos, Religioso da Ordem dos Prégadores, & Qualificador do santo Officio, padeceo muito tempo dores de almorreimas taõ intoleraveis, que naõ podia sossegar de dia, nem de noite, & sem embargo que (por razaõ do mesmo achaque) tinha continuos desejos de cursar, eraõ tam grandes as ancias, que sentia quando chegava ao tal aƐto, que via a morte diante dos olhos, & se lhe seguia depois da camara hum fluxo de sangue taõ copioso, que o enfraquecia muito; viase o dito Religioso apertadissimo entre a scylla, & Carybdes de taõ penosa enfermidade; porque se estimulado das dores, & picadas das almorreimas queria cursar, lhe sobrevinha logo hum fluxo de sangue que o prostrava muito de forças; & se se fazia surdo aos brados das ditas dores, se endure’ciaõ, & resecavaõ as fezes de tal forte, que quando hia a evacuar lhe era preciso fazer muitas forças, com que se assanhavaõ, & inchavaõ mais as ditas almorreimas, & se seguia mayor copia de sangue.

4. Neste aperto me deo conta o affligido efermo do do que padecia; & presumindo eu que tinha a doença vencida, porq~ me achava com o meu grande segredo, ou lenimento das almorreimas, lho appliquei logo, untandoas por fóra, & por dentro; mas sem embargo q~ o dito remedio costuma (quasi sempre) obrar effeitos portentosos; assim em aplacar as dores, & impedir os puxos, & os cursos importunos, q~ dellas costumaõ proceder, como em desfazer a inchaçaõ dellas; comtudo, como he remedio humano, teve sua fallencia; mas nem por isso perdi a esperança de curallo, porque ainda restavaõ por fazer outros medicamentos, de q~ naõ tinha menor conceito, como era seringarse muitas vezes no dia com tres onças de leite de burra; ou applicar sobre o lugar doloroso hũa camoeza assada pizada, & misturada com huma gema de ovo crua, & meya colher de çumo de meimendros, & hũas fevaras de açafraõ, ou quãdo isto naõ bastasse, applicarlhe as raspaduras muito subtilissimas do verdete, que tem os sinos de bronze, fervidas com huma colher de azeite commum; ou fomentallas com azeite em que primeiro se fervesse a bella dona, porque qualquer destes remedios he capaz naõ só de aliviar muito as dores; mas de as tirar totalmente, & deixar ao enfermo saõ. Porèm naõ voy hecessario ussar de algum dos remedios apontados, por quanto a mesma natureza próvida, & fagaz deitou pelas veas hemorrhoidaes duas pedras pequenas, que tenho em meu poder para memoria de taõ raro, & novo caso; & daquelle dia por diante naõ teve dores, & logra boa saude, passa já de quatro annos.

5. Desta Observaçaõ se tira por fruto o saber que as pedras se podem tambem criar nas veas hemorrhoidaes, assim como se criaõ em outras partes do corpo, como affirmaõ os Authores allegados; & eu o affirmo tambem, porque as vi no sobredito Religioso.

OBsERVAÇAM XCVI.

De hum Principe Ecclesiastico, que estando com saude, & em seu perfeito acordo, quando tomava nas mãos hum pucaro cheyo de agua nevada, ou qualquer outra cousa muito fria, sentia taõ grande quentura, como se tomasse brazas de fogo; & pelo contrario quando tomava nas mãos huma tigela com caldo, ou agua fervendo; sentia tão grande frialdade, que a naõ podia sofrer, porque lhe parecia que tinha neve dentro.

I. ADmiraveis saõ os segredos da natureza; (I.) nella vemos alguns effeitos taõ raros, & encontrados com a razaõ, que nos parecem fabulosos, ou impossiveis; naõ porque na realidade o sejaõ; mas porque o naõ alcança o nosso entendimento, a quem Deos poz certa baliza donde naõ pudesse passar; & daqui procede que quando vemos algumas cousas taõ novas, & estranhas q̃ lhe não sabemos dar as causas, as attribuimos a qualidades occultas: nem podemos deixar de o dizer assim,.sem por isso encorrermos em alguma injuria, ou discredito: pois Aristoteles sendo o exemplar do engenho, & agudeza, & mestre de toda a Filosofia, quando encontrava questões taõ profundas, que naõ as podia resolver, as passava em silencio, & naõ se envergonhava de confessar, que eraõ mayores que a sua capacidade: & porque Pelopp foy tão presumido que intentou assinar a causa donde todas as cousas procedião, o reprehendeo Galeno asperamente. A’vista deste exemplo naõ acho razão aos que dizem q̃ he asylo da ignorancia recorrer ás qualidades ocultas, porque o negallas ou he teima, ou parvoice; & senaõ, estimarei me digaõ porque causa hũa fonte, que está na Villa de Ouguella, abunda com inundações de agua nos abrazados incendios, & securas do Estio; & naõ tem hũa só gotta nas enchentes, & inundações do Inverno. Digaõme a razão porque a Rémora sendo hum peixe tão pequeno (como todos sabem) suspende o curso, & movimento de hũa nào no mayor impeto da sua carreira. Apontem-me a razão porque as verrugas, que nascem nas mãos, & em outras partes do corpo, não querendo despegarse, nem renderse à efficacia dos mayores remedios, se desapegão & cayem dentro de seis dias, se as esfregarem com ametade de huma maçãa até aquecer, & entaõ pendurarem a dita maçãa ao fumo de huma chaminè: & ainda cahiraõ com mayor brevidade, se as tocarem com huma gotta do sangue mensal de qualquer mulher casada ou donzella. Apontem-me a causa, & a razaõ porque certo homem, (que não nomeyo por modestia) sendo tão valeroso que não teme os bacamartes, nem as espadas, treme, & se cobre de suor frio vendo a qualquer gato, de tal sorte, que mais facilmente se deitará por hũa janella fóra, do que ter à sua vista o dito animal. Dem-me a razão porque certa Religiosa do Convento de Jesus de Evora lhe falta a respiraçaõ, & se suffoca tanto que vè huma rosa; & o que mais he para admirar, que desde o tempo em que começão a brotar as rosas, até o dia que acabaõ, vive com a respiração tão presa, como se tivera algurn accidente asthmatico, & não he necessario que veja roasas, nem cheire alguma, para padecer a sobredita falta de respiração; basta que aja rosas no campo. Digam-me porque razão certo homem posto ao sol nos dias dos Caniculares sente tão grande frio, & treme de maneira, que he necessario porse junto do fogo, & nem com isso póde cobrar quentura: & mesmo homem nos dias de frio mais riguroso, sente abrazarse de tal sorte, que não tem outro refrigerio, nem alivio mais, que meterse em banho de agua gelada, & nem com esta diligencia se resfria. Destes effeitos tão contrarios não será facil dar a causa, nem eu apontarei outra mais que dizer, que saõ qualidades occultas, pois não as alcançamos com o juizo, aindaque praticamente as vemos com os olhos. Mas darei por testemunhas de effeitos tão incompativeis (nos tempos amigos) ao Doutor Marcello Donato (2.) o qual diz que hurn copeiro de Alexandre Magno, chamado Demophoon, quando estava ao sol tinha grande frio, & pondose à sombra ardia em Mongibelos de fogo: & nos nossos tempos darei por testemunha ao Doutor Francisco da Fonseca Henriques, (3.) o qual vio a hum homem, que no rigor dos Caniculares (quando o mundo se abrazava em Vesuvios de fogo) padecia frios tão rigorosos, que era necessario aquentarse em hum brazeiro; & nos dias mais nevados do Inverno, ardia em taes Mongibellos de fogo, q̃ só achava refrigerio metendose em agua de neve, & nem com essa diligencia sentia frescura. Ultimamente na nossa Corte de Lisboa darei por testemunhas de semelhante caso ao Doutor Joaõ Bernardes de Moraes, que comigo foy muitos annos Medico do Eminentissimo senhor Cardeal Luis de sousa, cujo tacto das mãos estava tão pervertido, que se tomava nellas hum prato, ou qualquer outro vaso com huma iguaria fervendo, o sentia tão frio, como se estivesse cheyo de neve; & se pelo contrario tomava hum pucaro cheyo de agua nevada, o sentia tão quente, como se estivesse cheyo de agua fervendo. Estes tão encontrados, & incriveis effeitos nos derão tanto em que cuidar, que com o desejo de sabermos a causa de tão inauditas contrariedades consultamos não só no nosso Reyno, mas tambem fóra delle,.aos mayores Medicos que entaõ florecião; porèm nenhum deu razão tão cabal e concludente, que convencesse os nossos entendimentos: se nos tempos vindouros, ou ainda nos presentes, ouver algum Medico de engenho tão subtil, ou de discurso tão perspicaz, & illustrado, que saiba dar a verdadeira razão, & causa disto, estimarei que no la ensine, & em quanto não, devemos estar pelas qualidades occultas.

OBsERVAÇAM XCVII.

De huma Hernia intestinal, a que sobrevieraõ tantos vomitos de esterco, que todos os Medicos que os viraõ, entendèraõ que eraõ mortaes, por causa do grande volvulo de que procediaõ; e porque conheceraõ o evidente perigo em que a enferma estava, lhe naõ applicàraõ outro remedio mais que a sancta Unçaõ: neste aperto fui chamado, (como cada dia succede,) e sem embargo que a doente estava toda fria, e desanimada, lhe appliquei dous remedios, com que a livrei da morte. O primeiro foy, por lhe sobre a quebradura hum caõ vivo, com cujo calor setiràraõ as dores, se resolvèraõ os flatos, se abrandou a dureza, se desinchou a parte, e com branda diligencia das mãos se recolhèraõ as tripas. O segundo remedio, depois dellas repostas em seu lugar, foy darlhe a beber tres onças de azougue, misturado com huma chicara de caldo de gallinha; porque entre os remedios que inventou a Arte, nenhum se achou até: este dia de virtude tað efficaz para destorcer, e indireitar o intestino como o azougue: assim o mostrou o effeito, pois com estes dous remedios livrei a dita mulher da sepultura.

1. POrque naõ tem numero as pessoas, que saõ quebradas, e saõ poucos os remedios efficazes, com que as quebraduras se curaõ, e os intestinos se recolhem, e eu tenho por industria do meu estudo alcançado alguns, que até hoje nem se sabem, nem estão escritos, por isso me pareceo que faria hum grande serviço à Republica se os ensinasse, para que os necessitados se valessem delles em semelhantes apertos; e para abono do sobredito referirei o seguinte caso, que me passou pelas mãos.

2. Maria Rodrigues, moradora na rua da Paz, era quebrada de muitos annos, e não lhe lembrando que tinha semelhante doença, tomou inadvertidamente hum grande peso, e repentinamente lhe cahiraõ as tripas até o joelho; a este grande trabalho se lhe seguiraõ outros mayores, como foraõ dores insoportaveis de ventre, resfriamento de pès, e excessiva dureza na quebradura; e o que foy, peyor, deulhe hum volvulo, e começou a vomitar muita quantidade de materia estercorosa, e fedorenta; para este tropel de queixas se chamarão varios Medicos, e informandose elles da doença, e observando a qualidade dos vomitos reconhecèraõ o perigo, e naõ quizerão tomar sobre si a cura, naõ por falta de sciencia, nem de caridade; mas por sobra de temor que lhes imputassem a morte, que certamente se podia esperar de finaes taõ formidaveis; e como neste mào mundo, aos Medicos, como diz Hippocrates, (1.) se attribuem todos os perigos das doenças, por mais que ellas sejaõ incuraveis de sua natureza, naõ he para admirar que os sobreditos Medicos nem os olhos quizessem pòr na doente, nem entrar no aposento em que estava, aconselhandolhe sómente que tratasse de se confessar, e ungir, porque daquella doença, sobrevindo a algũa quebradura, ninguem escapava. Neste aperto me chamàraõ, e sem embargo, que achei a miseravel mulher cuberta de suor frio, e quasi espirando, me animei a fazer o que soubesse: porque se os Medicos ouverem de fugir dos grandes perigos, escusados eraõ no mundo; porque para os casos leves, e faceis de vencer qualquer barbeiro basta: pareceome comtudo que antes de lhe applicar algum remedio, seria conveniente segurar o meu credito, manifestando aos assistentes o evidentissimo perigo da enferma, a quem eu (de mera piedade vendoa naufragar entre as ondas da morte) queria acudir com hum remedio, que lhe servisse de taboa, em q̃ pudesse salvar a vida. Agradecèraõme todos o bom zelo, e a constancia com que me resolvi a naõ fazer caso do que poderiaõ dizer de mim, se o successo naõ correspondesse ao desejo; mas como eu faço o que entendo, e a consciencia me ensina, naõ me fazem aballo os dicterios da maledicencia. (2.)

3. Entendi pois, que para livrar a esta mulher da morte, era necessario recolher primeiro os intestinos, e metellos em seu lugar, porq̃ sem esta diligencia seria impossivel curar o volvulo, e os vomitos, nem salvarlhe a vida, mas como a parte estivesse muito fria, e por isso muito dura, inchada, e retezada, era preciso aquentalla, abrandalla, e desfazerlhe os flatos, para que desta sorte se fizesse a parte tratavel, e capaz de recolherse. Para remediar com huma só medicina a tantos symptomas juntos, não quiz usar de pannos de baeta quentes, nem de borras de azeite fervendo, nem de meadas de linho ensopadas em agua ardente, nem dos redenhos, e tripas de carneiro acabado, de matar, nem da violencia, e compressaõ das mãos, (como ordinariamente costumão fazer todos;) usei sómente de pòr sobre os intestinos caidos hum caõ vivo, fazendo-o estar duas horas sobre o lugar queixoso, para que com o calor daquelle animal se fossem desfazendo os flatos, e se fosse desinchando a tumorosa elevaçaõ da hernia, e do ventre; porque todas as outras formentações, e lenimentos, (de que o mundo usa) saõ infrutuosas, e de pouco proveito, porque se se applicão muito quentes, crestão a carne, assanhaõ a quebradura, e escandalizaõ ao doente; e se saõ pouco quentes, nada valem: o que naõ succede com a quentura do cão, que àlem de ser natural, e semelhante ao nosso calor, he branda, e persevera sempre com a mesma igualdade, e por isso faz nesta doeça hum taõ grande proveito, que muitas vezes se recolhe a quebradura, sem necessitar de que a ajudem com as mãos, como o observei nesta doente, em Joaõ Vanzitar, em Pedro da Costa Leal, e em algũs outros, que estando quasi moribundos por causa deste achaque, usaraõ do caõ, e em breves horas se recolhéraõ as tripas, e ficàraõ capazes de se indireitarem, porque sem isso pouco aproveitaria o tellas recolhidas; e como para as endireitar, (depois de recolhidas) só tres remedios aja efficazes; o primeiro he, o odre de vento, o segundo, as ballas de chumbo, o terceiro he o azougue; a este escolhi por mais efficaz, e seguro, porque àlem de ser mais pesado, e esferico, naõ embarra em cousa alguma, por ser molle; o que naõ succede nas ballas, que como saõ duras, em qualquer cousa podem encalhar, e naõ fazer o effeito desejado: mandei pois que levantassem a doente, e a puzessem em pè, e lhe dessem a beber tres onças de azougue, misturadas com huma chicara de caldo de gallinha, e no mesmo instante se destorceo, e indireitou o instestino, parou o movimento peristaltico erroneo dos mesmo intestinos, (3.) cessáraõ os vomitos, e se seguiraõ varios cursos, e livrou da morte, com grande credito da Arte, e gosto meu.

4. Naõ faltaráõ pessoas, a quem a resoluçaõ de dar a beber azougue, e o valor de naõ fugir dos casos desesperados, mais parèceraõ temeridades, que commiserações: eu digo que ou parecessem bem, ou mal, que nem por isso hei de deixar de fazer o que puder, por remediar aos doentes, porque me consolaõ muito os muitos que livrei da morte, porque os soccorri, sem embargo de ver que estavam agonizando; os quaes certamente morrerião, se me acovardasse o seu grande perigo: nem he menor o gosto, que tenho de saber que a muitas pessoas agradaõ tanto os meus conselhos, que não só os observaõ; mas os estiamõ, e agradecem, imitando nisto as boas terras, que pagaõ com usura de copiosos frutos o beneficio, que recebèraõ de quem as cultivou.

5. Pelo contrario tambem sei que ha sujeitos, a quem nem os meus dictames, nem os meus remedios parecem bem, pois me consta que os reprovaõ, depois que delles se aproveitaõ; fazendo o mesmo que a hera, que ajudandose de alguma arvore para se levantar do chaõ, lhe paga o beneficio do arrimo com o secar, e dstruir: não he queixa minha, he de Baconio. (4.)

6. Perguntaráõ os curiosos: e quaes saõs os remedios naõ escritos de outrem? Digo que saõ tres. O primeiro he, a fomentaçaõ, e applicaçaõ do caõ vivo sobre a hernia intestinal, porque esta facilita (melhor que tudo) o recolhimento da quebradura. O segundo remedio ( sendo a quebradura em criança recem nascida) saõ os pòs daquellas lebrezinhas, que se tiraõ do ventre de huma lebre prenhada, secos em forno, e dados cinco, ou seis dias em quatro colheres de leite. O terceiro remedio (até aqui naõ escrito) se achará neste livro na Observaçaõ 36. fol. 219. aonde os curiosos o podem ver.

7. Àlem destes remedios, quero apontas outros, que supposto sejaõ já escritos, andaõ espalhados por taõ diversos Authores, que será necessario ser o Medico muito curioso, e versado na liçaõ dos livros, para ter noticia delles; e porque lhes quero poupar este trabalho, ajuntarei aqui os mais experimentados, em serviço do bem commum.

8. A conserva que se faz de cabellos de lebre cortados com tisoura taõ subtilmente, que fiquem hum pò impalpavel, ajuntando-o com outra tanta quantidade de raiz de pè de Leaõ, e de esterco de lebre, formando tudo com mel, e tomando cada dia oitava e meya, solda maravilhosamente a quebradura. O emplastro que se faz de partes iguaes de azevre, incenso, almecega, sangue de Dragaõ, e mumia, misturando todas estas cousas com o ferrado de qualquer criança; posta sobre a quebradura bem ligado, estando o doente na cama de costas quinze dias, faz effeitos estupendos.

9. se deitarem doze folhas de papel tres dias de infusaõ em agua fria, e no fim dos ditos tres dias pizarem o dito papel em hũ gral de pedra, até que se faça huma massa, e depois da quebradura recolhida puzerem a dita massa sobre a quebradura, e ligarem bem a parte, dentro de quatro ou seis dias sarará o doente.

10. Tambem he remedio mui decantado, pòr sobre a quebradura o seguinte lenimento. Tomem de balsano de enxofre duas onças, de oleo de almecega hũa onça, de crocus martis meya onça, de barro de Estremoz feito em pò subtilissimo duas onças e meya, de caparrosa examinada hũa onça, de coral vermelho, e pedra de cevar preparados, de cada cousa destas meya onça, tudo misturado, e estendido em couso de luva se faça emplastro. se derem ao doente quebrado vinte dias em jejum huma chicara de vinho tinto bem cuberto, (a que chamamos vinho cascarraõ) no qual estiverem doze horas de infusaõ huma onça de raiz de carlina, e pé de Leaõ secas, vereis effeito milagroso.

11. se no mes de Mayo colherem seis bolsas que se criaõ nos choupos, em se criaõ os mosquistos, e as meterem em hũ vaso de vidro, e o puzerem ao sol, destillaraõ de si hũa agua, ou licor com que untando a quebradura se achará o doente saõ. se pizarem a erva chamada herniaria, e com ella misturarem farinha de favas, de sorte que fique hũa massa, e a puzerem sobre a quebradura bem ligada, e fizerem estar ao doente deitado quinze dias de costas, infallivelmente sarará. se depois recolhidas as tripas derem ao doente vinte dias hũ escropulo de crocus martis misturado com assucar, bebendolhe em cima huma chicara de vinho tinto, se conseguirá a saude desejada.

12. se as tripas estiverem fóra de seu lugar muito tempo, e por essa razão incharem, ou se resfriarem tanto, que se naõ possaõ recolher, será o seu remedio fazer beber ao doente hum copo de bom vinho, em que levemente tenhaõ fervido era doce, funcho, e alcorovia, porque desta sorte se desfaráõ os flatos, se desinchará o tumor, e com grande facilidade se recolherá a quebradura. Quem tomar quinze, ou vinte dias huma oitava de pò de maçãa acipreste, e as applicar por fóra com a herniaria, fará grande proveito. Quem tomar noventa dias em jejum huma oitava de pò de raiz de resta-boy, misturado com hum copo de vinho de losna, certamente sarará das hernias carnofas.

13. se a hum quebrado derem seis dias successivos, hum coraçaõ de toupeira feito em pò, o curará, e fará recolher as tripas.

OBsERVAÇAM XCVIII.

De humas camaras hepaticas que certo homem dous annos, em cujo discurso de tempo se fizeraõ imunes a seis remedios sem proveito, e estando o doente desconfiado da vida, tomou por meu conselho, depois de outros remedios que lhe fiz, huns femicupios de agua tibia do poço do Borratem; naõ bebendo outra mais que do dito poço; e foi Deos fervido que o que naõ puderaõ fazer os melhores remedios da Arte, fizesse só a dita agua, assim bebida, como exteriormente applicada.

1. MAnoel sutil, morador da Gibetaria, padeceo dous annos humas camaras de sangue acompanhadas com puxos taõ mordazes, que o faziaõ perder a paciencia: para livrarse desta enfermidade consultou a certo Medico bem opinado, o qual, fez toda a diligencia possivel por curallo, mas depois de muitos meses de trabalho, vendo que nenhum remedio bastava para conseguir a saude, se despedio, porque entende que a doença era incuravel. Recorreo o enfermo a outro Medico de boa nota, o qual se empenhou tambem muito por conseguir a vitoria, porem nada foi bastante para ter algum alivio. Perdeo o doente as esperanças da vida de maneira, que nao cuidou mais que em dispose para morrer, neste aperto lhe disseraõ que eu preparava com minhas maõs algus remedios mui singulares, que poderia ser tivesse algu com q o curasse; & movido desta noticia me mandou chamar, & fallandome me disse, que no meu cuidado, punha a esperança da saude, que se a conseguisse, a mim lo a deveria, pois estava ja deixado ao arbitrio da natureza, que me pedia muito lhe dissesse se nos remedios que se lhe tinhaõ applicado ouve algum erro, pois em lugar de melhorar com elles estava em tanto perigo. A esta pergunta respondi que era cousa mui Aaa difficultola julgar obras do entendimento alheio cujas acções naõ podem ser comprehendidas menos que de outro superior, & que como eu conhecia a pobreza do meu cabedal, estava desobrigado de ser juiz em materia, aonde escaçamente podia ser parte, mas que eu lhe prometia naõ perdoar a trabalho, a fim de o socorrer, e encarregandome da cura, foi a primeira diligencia ver o excremento, como condiçaõ essencialmente necessaria para conhecer a natureza do humor, e a causa de que procediaõ os cursos, & o lugar donde manavaõ; porque conforme a isso, saberia (I.) se avia de empenharme em deitar ajudas; ou se avia de empenharme em dar remedios pela boca; ou se avia de applicarlhos por huma, & outra via. Observei pois que o excremento, demais de ser ensanguentado a maneira de lavaduras de carne, era misturado com colera muito retinta, & açafroada; e por estes sinaes vim a conhecer que o figado naõ só estava muito esquentado, pois gerava tanta quantidade de colera; mas tambem estava muito debilitado, pois naõ fazia boa sanguificaçaõ, nem boa separaçaõ do sangue, pois o deixava sahir misturado com os excrementos. Tambem conheci pela grande mistura, que o sangue trazia com a colera, que o lugar donde manava era distante, & mais recondito, porque se assim naõ fora, nunca se misturaria tanto uma cousa com outra. Oderneilhe pois que para temperar o incendio do figado, tomasse quattro sangrias pausadas na vea salvatella da costa da maõ direita: & q para rebater a mordacidade da colera, que irritava os intestinos, tomasse todos os dias duas ajudas frescas lavativas, feitas de meyo quartilho de caldo de frangaõ cozido em hum punhado de farelos bem lavados, & tres onças de assucar rosado ordinario, ajuntando a cada ajuda onça & meya de sumo de tanchagem: & que todas as vezes que fizesse curso, se lavasse por baixo com cozimento de rolas, folhas de canchagem, assucar branco: & que bebesse agua de beldroegas, misturando em cada canada della meya oitava de pò de alquitaria branca, & tres oitavas das minhas pilulas antifebriles, chamadas tambem absorbentes: & que para os puxos metesse muitas vezes dentro da via huma mecha de fios remolhada em humas papinhas de alvayade, clara de ovo, & sumo de tanchagem; ordenandolhe que algumas vezes no dia tomasse bafos de agua cozida com linhaça gallega, folhas de verbasco, & cabeças de cardo penteador: ou tomasse muitas vezes no dia fumos de cerol de çapateiro, ou os bafos de vinagre forte cozido com esterco de burro; ou finalmente os bafos de huma pinha acesa apagada em vinagre, porque com qualquer destes remedios tinha eu curado semelhantes camaras; tudo isto se fez, mas com taõ pouca sorte, que de tudo zombou a doença.

2. Naõ foy pequeno o cuidado que me deo huma taõ grande resistencia, mayormente depois de ter aplicado tantos, & taõ efficazes remedios; nesta perplexidade naõ tive para onde recorrer mais, que para considerar que as ditas camaras deviaõ proceder de qualidade gallica, porque alem de serem mais continuas no tempo da noite, (indicio bastante para assim o presumir] o naõ obedecerem aos bons remedios acabava de confirmar que a causa era gallica: assim o diz Mercurial, & assim o certificou o mesmo doente, dizendo que elle havia tido um bubaõ que se lhe recolhèra e que daquele dia por diante vivera sèmpre achacoso: com esta noticia me resolvi a purgar enfermo tres vezes (em dias alternados) com a celebre purga de ruybarbo myrobalanos citrinos, & xarope das nossas rosas, cuja receita de achará na minha Polyanthea da segunda impressaõ tratado 2. cap. 56. fol. 372. num. 6. & 7. ordenandolhe depois disto huns caldos de frangaõ medicados com salsaparrilha, & morangãos, folhas de epatica, chicoria, agrimonia & morangãos; mas nada aproveitaraõ. Naõ falton quem aconselhasse que em dias alternados tomasse huns suores de estufa brandos, tomando por fundamento desta resoluçaõ que extinguindose com os suores a qualidade gallica que naõ só se presumia, mas que o doente Aaa 2 confessava, se extinguiraõ os cursos, & e os puxos & e que com o mesmo remedio se divertiria para o ambito & superficia do corpo o errado movimento que os humores faziaõ para os intestinos, & partes sedaes, donde se seguiaõ tam porfiados cursos, & puxos. A este voto, & conselho me oppuz dizendo, que naõ avia no tal sujeito qualidade gallica, porque se a ouvera, teria melhorado, ou ao menos aliviado com trinta frangaõs de salsa parrilha, & raiz da China: que eu tinha por mais certo serem os sobreditos cursos, & puxos e puxos procedidos de hum grande incendio do figado, & que se assim era, (como eu presumia) seria mais acertado applicar sobre a regiaõ do figado alguns epitomes refrigerantes de cerralhas pisadas, misturandolhe farinha de cevada, sandalos citrinos, vinagre rosado, & meya oitava de alcanfor; e que sobre tudo julgava por hum admiravel remedio o uso dos banhos de agua doce & principalmente os da agua do poço do Borratem. E naõ me enganou este discurso; porque com os ditos epitomes, & cincoenta banhos da dita agua tibia sarou naõ só este doente, mas outros muitos camarentos, cujos nomes se acharaõ apontados na minha Polyanthea da segunda impressaõ trat. 2. cap. 57 fol. 374. do num. 13. até 19.

3. semelhante caso a este observei em Antonio da Rocha de Magalhães, morador junto da porta travessa da sè. Teve o dito sujeito camaras sanguinolentas, vinte meses, & depois de se ter esgotado com elle a Medicina, & o sofrimento, sem conhecer o alivio, só com beber agua do poço do Borratem, & com huns semicupios da dita agua teve perfeitissima saude, estando já sem esperança de remedio.

4. Tres frutos muito proveitosos ao bem comum espero colhaõ destas Observações os Medicos modernos. O primeiro he, saber que nem sempre que virem que as doenças, ou os seus symptomas crescem de noite, assentem (como se fosse verdade infallivel) que procedem de qualidade gallica; pois vemos que estas camaras se curaraõ com beber, & banhar em agua agua taõ fria como a de hum poço; e seria impossivel que aproveitassem tanto, se os cursos procedessem da sobredita qualidade.

5. O segundo fruto he, saber que a agua do tal poço tem grande virtude de curar, ou ao menos de moderar muito os achaques, que procedem de demasiada quentura do figado: assim o tenho visto em infinitos doentes, principalmente em dous leprosos com comichões taõ rebeldes, q não obedecendo (no discurso de muitos annos) a repetidas sangrias, sanguisugas, ptisanas, soros, frangãos recheados, unguentos, epitomes, femicupios, fomentações de mera, & outros muitos remedios taõ experimentados, como applaudidos dos Authores antigos, & modernos, sararaõ perfeitam~ete com beber muito tempo da agua do dito poço, & com os banhos della; com tal condiçaõ, que a demora dentro do banho era no principio de tres quartos de hora, & passados os primeiros, era de cinco quartos: naõ he só experiencia minha, he preceito de Galeno (2.) que assim o manda fazer.

6. Naõ allego testimunhas em abono da agua do tal poço, assim para bebida, como para banhar aos leprosos, ou muito esquentados do figado, porque naõ tive licença dos taes doentes para os nomear; mas se ouver alguem taõ incredulo que duvide do que lhe digo, falle comigo, que debaixo de segredo natural lhe direi os nomes dos doentes, a quem curei com o uso da tal agua, já bebida, já dada em banhos.

7. O terceiro fruto he, que a dita agua bebida largo tempo tira a esterilidade, que proceder da muita quentura de algum dos casados, como o tenho observado em pessoas, que naõ tiveraõ filhos muitos annos, & depois que bebèraõ da dita agua, os tiveraõ. E que o demasiado calor seja algumas vezes o principal impedimento para ter filhos, se deixa conhecer por mil exemplos; baste por todos o que observei no Excelentissimo senhor Conde de Vimioso. Avia cinco anos que este Principe era casado, sem ter sucessão na sua casa; & porque entendi que o muito calor do Conde era a causa de faltarem os filhos, lhe dei banhos de agua commua, porque só assim os esperava: & naõ me enganei; porque tomados elles concebeo a senhora Condeça, & tem já dous sucessores da sua Ilustrissima casa, & espero que Deos lhe dará muitos.

8. Jà que nesta Observaçaõ fallei em banhos, quero em serviço dos Medicos modernos fazerlhes com Galeno (3.) tres advertencias muito importantes para o bom uso deste remedio. A primeira, que naõ dem banhos aos febricitantes com tal frio, ~q não só acrescentem a febre que de presente tem; mas que exeitem alguma que não tinhaõ. A segunda, que não dem banhos aos doentes, que tiverem algum membro nobre fraco, porque cahiráõ sobre elle todos os humores, que o banho adelgaçou, com mais facilidade do que cahirião antes de adelgaçados. A terceira, que naõ dem banhos aos doentes, que tiverem as primeiras vias cheyas de humores crus; porque por causa do banho se communicaráõ as taes cruezas a todo o corpo; mas se no doente não ouver algum impedimento destes, se poderáõ dar confiadamente, porque se seguiráõ delles dous proveitos: o primeiro, porque abrindose os póros, se evacuarà, & exhalará alguma parte do humor peccante; o segundo, que transpirará muita parte do calor febril: mas se alguma das partes menos nobres estiver fraca, como saõ os pès dos gottosos, se seguirá do banho grande melhoria ao doente, recebendo as taes partes os humores superfluos, como vemos cada dia succeder, pois ainda sem tomarem banhos, cahem os humores nas partes debilitadas, & por este modo se livraõ de outras doenças de mayor perigo.

OBsERVAÇAM XCIX.

De hum menino, que metendo na boca hum feijaõ, lhe entrou pela aspera arteria, & o afogou repentinamente.

1. COmo seja impossivel conservarse a vida sem a continua entrada, & sahida do ar; que naõ só he necessario para o refrigerio do coraçaõ, mas para se fabricarem os espiritos vitaes; he precisamente necessario que as partes por onde o tal ar entra frio, & sahe quente, naõ tenhão impedimento para que a obra da respiraçaõ se continue, & a vida se conserve serve, porque avendo qualquer cousa que embarace a dita obra, logo a vida se acaba. Muitos exemplos pudera allegar em confirmaçaõ desta verdade; referirei só o que vi em hum menino, que metendo hum feijaõ na boca, o engulio; & em lugar de entrar para traca arteria, que he destinada para ir por ella ao estomago tudo que comemos, & bebemos, entrou pela aspera arteria, que he a via por onde entrar o ar ao coraçaõ, & fechado, ou entupido o tal caminho com o dito feijaõ, naõ pode entrar o ar frio, nem sahir o ar quente & por esta causa abafado o coraçaõ, morreo o menino em dois instantes. Nem para huma pessoa se suffocar, he precisamente necessario, que a espera arteria se encha, ou entulhe por dentro, (como succedeo ao sobredito menino) basta que se aperte por fóra, como já vi em outro menino, que por golodice, ou ignorancia engulio huma fruta nova inteira, a qual como era muito mayor do que a largura do esophago, recheou de tal sorte a traca arteria, que apertou tambem a aspera que lhe fica por baixo, donde se seguio não poder sahir, nem entrar ar, & por isso esteve quasi suffocado, & certamente morreria, se com hum pedaço de rolo encurvado lhe naõ empurrara para baixo a dita fruta, & lhe desapertàra a dita aspera arteria, & deste modo ficasse

56O Observações Medicas Doutrinaes.

livre a entrada, & saida do ar, & a vida salva.

2. Desta Observaçaõ se podem colher muitos frutos, & boas advertencias para evitar as desgraças que succedem por falta dellas. O primeiro fruto he, que quando comermos, mastiguemos muito bem as iguarias porque desta sorte ficaõ os bocados mais brandos, & pequenos, & por consequencia incapazes de encalhar, nem apertar a traca arteria, de tal sorte que se aperte tambem a aspera, & se feche o caminho, & entrada do ar necessario para viver. O segundo fruto he, que quanto mais se mastigar o comer, tanto mais se mistura com a saliva, que he hum grande formento com que se ajuda a levedar, & digerir o que se come, & por isso dizem gravissimos Authores, que na boca se faz a primeira alteraçaõ dos mantimentos. O terceiro fruto he, que quanto mais se mastiga o comer, tanto em mais pequenas partesse divide; & por consequencia tanto melhor, & mais facilmente se coze. O quarto fruto, ou advertencia he, que quando comermos, naõ tenhamos tanta pressa, nem tal voracidade, que escape alguma cousa pela aspera arteria, porque se o que escapar for cousa grossa, infallivelmente afogará no mesmo instante; & se for cousa delgada, & tiver pontas, ou for cousa aspera, offenderá, & escandalizará de tal sorte ao bofe, que o inflammará, & da inflammaçaõ se seguirá chaga, & da chaga purgaçaõ, & materia purulenta, & acre, & desta naõ só se fará o doente tisico; mas misturandose com o sangue se irá o doente emmagrecendo, & myrrhando até morrer. E se me disserem que já se tem visto escapar algũas pessoas, a quem entrou alguma cousa pela aspera arteria: direi que o naõ nego; mas que o escaparem algumas pessoas foy, ou porque com alguma grande tosse deitáraõ fóra o que lhes tinha entrado pela aspera arteria, como observei em Felix da Costa, a quem tendolhe entrado um ossinho pela aspera arteria, o obrigava a tossir de dia, & de noite, & o naõ deixava sossegar, & se hia emmagrecendo até que (comadecendose Deos delle) deitou o dito ossinho com huma grande tosse, &

Observaçaõ XCIX. 56I

nunca mais tussio, nem emmagreceo. semelhante caso a este em termos identicos observou Cornelio s talparte, como os curiosos poderáõ ver nas suas Observações raras, Observaç. 23. fol. 97. Ou podem escapar, porque o que enguliraõ naõ tinha pontas, nem era muito duro, nem aspero, & com o tempo se gastou, & desvaneceo: o certo he, que sempre, ou quasi sempre succede mal or entrar alguma cousa na aspera arteria, porque quando naõ fira o bofe, ao menos naõ entra o ar taõ livremente àquella arte aonde está a cousa que lá entrou, & por consequencia naõ recebe o sangue (que por alli passa) as particulas nitro-aereas sufficientes para se refrigerar, & temperar, & andando o tempo adquire huma certa acrimonia, que mais serve para ferir, que para nutrir, & sustentar ; porque para sustentar, & nutrir deve o sangue ser oleoso, pingue, & naõ ter acrimonia, & se a tem, myrrhaõse, & secaõse pouco a pouco os doentes, até que altos de carnes, & de espiritos morrem atrophicos, & tisnados

.3. Nesta Cidade conheci a certo Clerigo, que por descuido, ou voracidade engulio hum bocado grande, & mal mastigado, & por esta razão naõ podendo passar para baixo, nem sahir para fóra, ficou encalhado na traca arteria, & apertou a aspera de tal modo, que naõ deixava entrar ar para o coraçaõ, por cuja causa esteve quasi morto; neste grande perigo naõ avia, nem se achará remedio mais prompto para desimpedir o caminho, que empurrar para baixo o tal bocado, para que desapertandose a traca arteria, se desaperte logo a aspera que lhe fica por baixo, & para fazer esta obra serve melhor que tudo hum pedaço de rolo encurvado metido pela garganta abaixo, mas como naquelle conflicto, & grandissimo perigo se naõ achasse em casa o tal rolo, se valèraõ de hũa vela de cera, que era muito mais grossa do que convinha, & sem embargo que se logrou bem o intento, porque o bocado se empurrou, & desceo para o estomago, & consequentemente a aspera arteria se desapertou; comtudo como a vela

562 Observações Medicas Doutrinaes.

era muito grossa, escandalizou a garganta de tal sorte, que se naõ morreo afogado com o bocado, morreo do remedio, porque nunca mais teve saude; antes de dia em dia se foy consumindo, & emmagrecendo, até que exhaustos os espiritos vitaes acabou a vida. Daqui fiquem advertidas as amas que criaõ, que naõ lhes aconteça para acallentar, & cõtentar as crianças, darlhes, ou meterlhes nas mãos algumas cousas que sejaõ capazes de as levarem à boca, porque como saõ innocentes, & naõ sabem o que fazem, engolem aneis, didais, castanhas, dinheiro, alfinetes, & outras cousas semelhantes com que se afogaõ, ou vem a morrer no discurso de quatro, ou seis mezes, como já vi, & Estalparte o vio em algumas crianças que abrio, para se saber a causa porque morrèraõ, & achou hum anel em huma, em outra huma casta de avelãa

OBsERVAÇAM C.

De huma fraqueza de nervos, & tremor de mãos taõ grande, que naõ deixavaõ fazer cousa alguma a certo homem em quanto estava em jejum, & só depois que comia, aliviava algũa cousa, & valendose do meu conselho foy resistituido à saude com grande credito da Arte.

1. CErto homem, cujo nome he licito fique em silencio, porque bebia muito vinho assim em jejum, como no discurso do dia, bebendo tambem muita agua de noite, por cuja causa debilitou de sorte os nervos, que naõ só lhe tremiaõ muito as mãos; mas tinha huma taõ grande fraqueza nellas, que naõ podia escrever, nem pegar em cousa alguma, q logo lhe naõ cahisse dellas: vivia este enfermo muito desconsolado, porque o sustento de sua

mulher, & filhos dependia dos lucros de seu trabalho, & como estava incapaz para o fazer pela excessiva fraqueza das maõs,

Observaçaõ C.

mãos, se via tempos de pedir esmolas: mas Deos que se quiz apiedar desta miseria, permitio lhe chegasse à noticia que eu preparava em minha casa algũs remedios especificos , com que curava algumas doenças tidas por incuraveis, & deixadas ao desamparo. Alentouse o doente muito com esta boa nova, & começou a ter esperanças de se ver com saude, & buscandome me deo conta do que padecia: & conhecendo eu pela sua informaçaõ, que a causa dos tremores das mãos, & fraqueza de nervos procediaõ naõ só da muita agua que bebia todas as noites depois do primeiro somno, mas de beber agua ardente, rosa-solis, & vinho em jejum porq naõ ha cousa que tanto enfraqueça aos nervos, & os faça tremer tanto, como saõ estas bebidas tomadas fóra de tempo, ou com excesso; por isso lhe intimei que se quizesse ter saude, & recobrar a força dos seus nervos, avia de deixar totalmente o vinho, a agua ardente, & rosa-solis: naõ avia de beber agua depois de estar na cama, & ter dormido; porque a experiencia de muitos annos me tinha ensinado que os que faziaõ semelhantes absurdos, vinhaõ a parar todos semelhantes tremores: & porque observei que os tremores se moderavaõ muito depois de comer, entendi que no tal doente reynavaõ muitos flatos, que vagavaõ por todo corpo em quanto o estomago estava em vazio, como se verificava pela experiencia, pois tanto q comia, se sentia mais ligeiro, & quasi sem tremores; por tanto, tendo respeito a esta taõ bem fundada consideraçaõ, lhe ordenei que naõ comesse peixe, nem legumes, nem ervas, ou outras cousas flatuosas, nem bebesse agua depois de estar na cama, & ter dormido; como tambem lhe aconselhei que em quanto vivesse, naõ bebesse agua ardente, nem vinho, nem rosa-solis, porque estas cousas costumaõ ordinariamente ser a causa dos tremores, ou sastios mortaes; & que depois de purgado quatro, ou cinco vezes, em dias alternados, com as pilulas de hyera de Pachio, entrasse a tomar pelas manhãs, & às noites maua oitava do pòs nervinos, cuja descripçaõ he a seguinte.

564 Observações Medicas Doutrinaes.

2. Tomar de cinabrio nativo (o melhor he o de Ungria) huma onça, fazendo - o em pó se moa em hũa pedra de pintor com agua de cereijas negras, até que fique huma massa, ou polme impalpavel, & entaõ se deixe secar, & se torne a fazer em pò, & entaõ se lhe ajuntem duas onças de assucar fino reduzido a pò impalpavel, misturandolhe tambem de oleo destillado de salva, de Angelica, & de páo de salsafrás, de cada cousa destas hum escropulo, & destes pós daraõ ao doente quantos couberem em hum vintem, sem lhe misturarem outra cousa, porque tendo - os na boca se irão desfazendo por si; & para segurar mais a saude se fomentará a nuca, & o espinhaço duas vezes cada noite com oleo do espasmo do Grão Duque de Florença, ou com o seguinte balsamo nervino, que he maravilhoso para semelhante doença.

3. Tomai de oleo de noz noscada feito por expressaõ duas oitavas, de oleo de alambre hum escropulo, de alfazema, de engos, de minhocas, & de arruda de cada cousa destas huma oitava, de sebo de caõ, & de homem esquartejado, de cada cousa destas meya onça, de balsamo de copaíba, & de pó subtilissimo de castoreo, de cada cousa destas hum escropulo, tudo se misture de modo que fique hũ unguento com que as partes se fomentem, ordenando que o carneiro, a vacca, ou gallinha que comesse, cozessem sempre com seis folhas de salva deitadas na panella, já depois de estar tirada do fogo; & que o paõ fosse amassado com agua cozida com salva, & que com a mesma agua lave o rosto; porèm as mãos as lave com ourina fervida com salva, mangerona, segurelha, engos, & iva artetica: finalmente lhe aconselhei, que quantas vezes pudesse, comesse os miolos da lebre assados nas brazas, porque tem mui particular virtude para confortar os nervos, & curar os tremores das mãos, & da cabeça; & se o tempo fosse frio, comesse todos os dias em jejum tres nozes com paõ; mas quando o tempo estivesse calmoso, usasse de tomar todos os dias hum escropulo de pò do esterco do Pavaõ macho, desatado em huma

Observaçaõ C.

chicara de agua cozida com cardo santo, & cabeças de hyssopo, ou misturados com tres onças de agua de cerejas negras destilladas em lambique de vidro, que são muito capitaes, & confortativas dos nervos; & que de quando em quando trouxesse na boca hũa migalha de noznoscada: & foy Deos servido, que com estes remedios se confortassem os nervos, & se desvanecessem os tremores de maneira, que nunca mais os teve, & ficou livre de taõ penosa enfermidade: naõ foy necessario passar ao uso daquellas pilulas mui celebradas, que se fazem de meya onça de castoreo, outra de piretro, & outra de canela, a que se ajunta de serapino, & de trociscos de Alandal, de cada cousa destas tres oitavas, de azevre succotrino duas onças, dando oitava & meya em dias alternados. semelhantes tremores de mãos padereo muito tempo hum Francez morador no topo da Calcetaria, que vive de fazer pentes de osso para as cabelleiras, & depois de mil remedios, que se fizeraõ sem proveito, só com tomar todos os dias em jejum hũa chicara de agua cozida com folhas de salva, & com lançar algumas folhas della no vinho que bebia, conseguio tanta melhoria, que pode continuar com seu officio, cousa que havia muito tempo naõ podia fazer.

OBsERVAÇAM CI.

De varios doentes enfeitiçados, & ligados por arte diabolica de tal sorte que huns ficáraõ incapazes de cohabitar com suas mulheres; outros as aborreceraõ de modo, que nem podiaõ vella, nem estar na sua companhia; & por industria da Medicina os curei, & fiz capazes de ter filhos, & de viverem com muita amizade, & em serviço de Deos

I. Pudera a malicia humana darse por satisfeita com as muitas doenças, afflicções, & trabalhos que os homens padecem, sem que maquinassem novas traças, & arficios para atormentar mais a nossa miseria; mas como o diabo he inimigo commum dos homens, envejoso da paz, & sossego que lograõ na terra os que bem vivem, & das felicidades que haõ de lograr no Ceo os que bem morrem, trata de enredar as consciencias de muitas pessoas para que offendaõ a Deos, & as suas creaturas, & deste modo se condemnem, & se precipitem no inferno, & para conseguir este intento usa de varias traças, & differentes laços; a huns leva pelo caminho da soberba, & vaidade; a outros pela ambiçaõ, & avareza; a outros pela inveja; & a outros (mais que tudo) pela luxuria, & concupiscencia; ensina odios, urde enredos, dispoem enganos, & ensina feitiços; & todas estas cousas faz só para prender as almas. se me fora licito contar aqui os lastimosos casos que visto de alguns homens enfeitiçados, a quem suas concubinas temerosas de que elles as largassem, & se apartassem de seus torpes amizades, quiseraõ segurar, & prender com diabolicos encantos, & feitiços, dandolhos já misturados em differentes iguarias, & bebidas, já disfarçados em varios manjares, já em notaveis fervedouros, dos quaes se seguio ficarem huns tontos, & mentecaptos em quanto viveraõ ; outros cegos, & aleijados, outros ligados, & incapazes dos actos matrimoniaes, outros inchados como odres, outros secos, & myrrhados como páos, outros fugindo da gente, huns sempre rindo, outros chorando sempre, & finalmente outros com taõ grande odio, & aborrecimento a suas mulheres, que nem as podiaõ ver, nem ouvir fallar.

2. seria cousa impossivel referir aqui os infelices successos que neste particular tenho visto, & observado de muitos annos a esta parte; mas porque se offenderiaõ muito os aprisionados de seus vicios, & do demonio, se eu descobrisse aqui as suas saltas, & illicitos tratos, quero passar em silencio os seus nomes, contentandome só com ensinar os remedios, com que por merce de Deos, & insdustria do meu estudo livrei a alguns de semelhantes perigos.

3. Primeiramene aquelles que sendo moços, & robustos, & de muito vir-potentes para com suas mancebas, me fizeraõ queixa que casando se acháraõ repentinamente incapazes de consummar o matrimonio, mandei que defumassem duas, ou tres vezes as parte vergonhosas com os dentes de huma caveira, & sem outra diligencia ficàrão logo bons, & desligados, & capacissimos dos atctos conjugaes; destes tive tres.

4. Aquelles que avendo sido bem casados, & muito amantes de suas mulheres, passarão a hũma tal metamorphosi, ou mudança odiosa, q̃ nem as podião ver, nem deitarse na mesma cama com ellas, fiz reconciliar em amizade, mandando que às escondidas untassem a palmilha dos çapatos do homem amancebado com o esterco da manceba; & palmilha dos çapatos de manceba com o esterco do mancebado, & daquele dia por diante se converteo em desagrado, & aborrecimento de ambos, o que até aquelle tempo tinha sido cegueira de amor lascivo occasionado de algum feitiço.

5. Aquelles que sendo discretos, prudentes, & bem procedidos, passaraõ repentinamente a ser tolos, ou furiosos, ou fugiraõ da companhia das gentes andando sempre rindo, ou chorando, ou fallando comsigo, curei entendendo que alguma mulher enganada pelo diabo, ou por algumas feiticeiras que saõ os seus ministros, lhes aconcelhàra que para conciliar a amisade do tal homem lhe desse o seu sangue mensal, & como o dito sangue naõ tenha tal effeito, antes seja taõ venenoso, & prejudicial, que causa os sobreditos efeitos de loucuras, furias, taciturnidades, medos, lagrimas, & mil outros symptomas lastimosos, me deliberei a curar aos taes queixosos, dandolhes primeiro que tudo, em dous dias successivos, tres onças de agua benedïcta vigorada, ou onça & meya de vinho branco de infusaõ, o regulo do animonio, que Joaõ Agricola louva por hum admiravel segredo, dandolhes depois disso por quatro meses a infusaõ do elleboro negro feito em agua de erva cidreira, ou de borragens destiladas em alambique de vidro. Algum maniaco tive por occasiaõ do sangue mensal, a quem depois dos vomitorios de agua bendicta, ou do regulo do antimonio, fiz tomar por tempo de hum mes meya oitava de aljofar preparado, & desatado em quatro onças de agua de borragens, ou de erva cidreira. Henrique ab Heers louva muito a agua de borragens, ou de erva cidreira para curar aos enfeitiçados, ou doudos por causa do amor, & succo do nastruicio aquatico, ou a agua que delle se destilla, se se misturar com o pò das pedras, que os homens deitaõ pela via da ourina. Joaõ Vvalterio louva por grande remedio para os enfeitiçados a infusaõ do elleboro negro feita em agua de erva cidreira.

6. Aos que vi emmagrecer, & secarse sem terem febre, nem frio, nem dor, nem fome, nem desgostos, ou cousa alguma manifesta donde lhes pudesse vir a tal magreira, entendi que eraõ enfeitiçados, & por esta razaõ lhes dei ouro da vida, descripçaõ de Hartmno, ou de Burneto, & ao depois lhes dei por tempo de dous meses, leite de agua, em que desatava todos os dias meya oitava de aljofar bem preparado.

7. A hum que tive taõ inchado como huma pipa, dei, depois do quintilio, meya onça de çumo de nastrucio aquatico, misturandolhe huma oitava de trociscos de myrrha; & lhe pudera dar hũa oitava de theriaga magna, desatando tudo em tres onças de agua de cardo santo. Naõ falta Author da primeira grandeza, q̃ conselha por remedio singularissimo dar ao enfeitiçado duas, ou tres vezes hũa oitava de pò da parreira secca, de que se aja tirado primeiro a tunica exterior.

8. Por fim desta Observaçaõ quero advertir aos Medicos principiantes, & às mulheres depravadas, q̃ o sangue mensal está taõ fóra de conduzir para grangear amor, & affeiçaõ dos homens, q̃ antes os faz tontos, loucos, & furiosos, & os mata; porq̃ he tal a maldade do dito sangue, que até nas cousas insensiveis faz effeitos, & damnos lamentaveis; se chega a qualquer arvore, planta, erva, ou flor, a murcha, & seca; se chega ao leite, o corrompe; se chega ao vinho, o perde; se chega ao ferro, o embota, & enche de ferruguem; & atè a vista dos olhos das mulheres que estaõ no actual fluxo mensal, he taõ venenozo, que embota a gala, & resplandor dos espelhos das mulheres, que neste tempo se enfeitaõ a elles; & he taõ notorio este damno, que era prohibido no Levitico que os homens naõ tivessem ajuntamento com suas mulheres nos dias da menstruação.

9. Alguns enteitiçados, ou endemoniados vi que se queixavaõ de que viaõ varias visagens, fantasmas, ou figuras de cavallo, elefantes, peruns, sepentes; a alguns destes curei fazendolhes trazer ao pescoço, & nos pulsos dos braços alambres brancos; & a outros mandando-os defumar com a semente da erva antitthino, trazendoa tambem ao pescoço: assim o dizem schrodero, Crolio, & outros Authores.

. Os que quizerem mais noticias dos remedios com que se curaõ os enfeitiçados, vejaõ a Pedro Borelo centur. 1. observ. 66. mihi fol. 68.

Lentilius Miscellaines Medico-practicis, mihi fol. 13 // Ligatio, Graanem de homine cap. 164 // Nom tamen possumus, Henricus ab Heers lib. rar. Observ. observ. 130. Carolus Musiranus li. 1. Trutinae Medicinae cap. 14 de Philtro, mihi fol. 192. col. 2. Joannes Agricola Commentar. in Popium tract. de ANtimónio, mihi fol. 55.

FINIs, LAUs, DEO, Virginique, Matri.

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